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A Prisão de Monsatã: haverá torturas boas?
António Pedro Dores,
2007-06-22
“A multiplicação de intervenções
judiciais, quer na área da administração pública quer no domínio da
sociedade civil, por questões de ordem financeira e económica, e ainda o
agravamento da perigosidade e gravidade das violações da lei penal, não
apenas económicas mas sobretudo contra os valores da vida e dignidade
humanas, apontam para reconhecer que a sociedade europeia de confiança tende
a não ser o modelo em vigor: (…) [vive-se uma] deriva das sociedades de
confiança para a instabilidade crescente”,
Adriano Moreira, “A Sociedade de
Confiança” em Diário de Notícias 2007-06-19:10.
Da tortura quer-se distância suficiente, de
modo a ser visível o esforço público para a sua erradicação, conforme é
obrigação internacional do Estado português por via da ratificação da
Convenção contra a Tortura da ONU. Não deve haver nenhuma ambiguidade,
controvérsia ou ténue demarcação entre o que seja ou não tortura. Porém, a
recente abertura da cadeia de Monsanto traz para a actualidade portuguesa a
discussão miserável e decadente das fronteiras legais da tortura. Em vez de
se estimularem as instituições e os funcionários a manterem distâncias
suficientemente claras e inequívocas de situações que possam aparentar
tortura, é-nos imposta a questão sobre os tipos de torturas toleráveis.
Será tortura impor a sujidade como regra? A
lavandaria em Monsanto só trabalha de quinze em quinze dias. Será tortura
impor um regime de permanência em cela durante 23 horas? Esse é o tempo
máximo de fecho, segundo os padrões internacionais. Será tortura impedir o
contacto físico entre os detidos e as visitas? Nos países mediterrânicos as
pessoas cumprimentam-se tocando-se, com apertos de mão, abraços e beijos.
Será tortura impor algemas sempre que o detido sai da cela, por exemplo para
telefonar com uma mão atrás da outra a segurar o auscultador? Será tortura
impor a solidão radical, incluindo na hora do magro recreio? O mórbido
definhamento físico e moral por insuficiência de exercício – incluindo a
impossibilidade de trabalhar – é um crime contra a integridade física?
A solidão foi regra primeira utilizada no tempo
de Alexis de Tocqueville para assegurar a penosidade das penas de prisão:
concorriam com as penas de degredo e de estigmatização física, ao uso na
época. A doutrina da solidão foi abandonada posteriormente, uma vez
assegurada a hegemonia da prisão como pena de referência e quando se
tornaram evidentes os resultados monstruosos da sua aplicação na saúde dos
detidos. Facto é que se considerou, mais recentemente, o uniforme prisional
uma forma de humilhação desnecessária, a evitar. Será tortura fazer abrir
sistematicamente a boca dos reclusos para supostamente assegurar não se
esconder aí nada de ilícito, na hora das visitas, separadas dos reclusos por
vidros inquebráveis? Desconfiarão de que a oportunidade possa ser usada
pelos próprios guardas vigilantes dos reclusos nessas audiências? Será
tortura vasculhar o interior do corpo do recluso quando a uma autoridade
administrativa qualquer lhe apeteça? É isso feito nas alas livre de droga?
Porque se chamará de alta segurança uma cadeia
para onde se levam detidos para serem sujeitos à experimentação dos limites
da tortura? Percebe-se a segregação dos presos mais odiados pelos serviços.
Para organizar a retaliação covarde contra quem dá mais trabalho, por
incapacidade de adaptação ou problemas mentais, segundo o critério arbitral
de quem seja encarregue de encher a nova cadeia, em tempo de sobrelotação.
Tais castigos, na prática – atenção – também afectam guardas e outros
funcionários, cujo equilíbrio emocional – como seres humanos – fica afectado
por situações de terror, ainda que nelas colaborem impunemente. Na
realidade, como mostram as experiências dos campos de concentração alemães,
todo um povo fica afectado quando admite às instituições a aplicação de
políticas imorais, mesmo quando não são assumidas publicamente.
A arbitrariedade dos castigos informais (sem
registo) passou a estar (ilegalmente) institucionalizada em alas de (in)segurança
em diversas cadeias pelo país fora, desde o ano 2000. Foi um prelúdio do que
se passa agora em Monsanto. A lei permite castigos de isolamento com um
máximo de 30 dias. Nas alas de segurança pode ficar-se anos, sem nunca se
saber quando dali se sai porque, malvadamente, não são informados os
reclusos de quando lhes acaba a pena. É um castigo diário de expectativas
frustradas: será tortura?
As alas de (in)segurança não impediram os
homicídios nem os suicídios. Pelo contrário: há registo de denúncias de
tortura em alas de segurança que valeram ao denunciante ameaças de morte: só
não foram concretizadas – como aconteceu noutros casos – porque as
autoridades foram informadas da situação a tempo e decidiram proteger a
pessoa dos denunciados. Encontrámo-la, entretanto, mentalmente fragilizada e
doente no Hospital Prisional. Pudera!
Vale de Judeus era, até agora, a única cadeia
de alta segurança portuguesa. (A criminalidade e as condenações são baixas,
como as penas previstas por lei, limitadas ao máximo de 25 anos. Da
inexplicavelmente longa duração média efectiva das permanências na prisão –
3 vezes a média europeia – resulta uma das mais altas taxas de
encarceramento da Europa Ocidental). Monsanto inaugura – fora da lei – uma
época de terror ameaçador para os presos contestatários das ordens e
arbitrariedades da administração. Tal estratégia jamais funcionou em
pacificação nem das prisões nem da sociedade.
Foi precisamente em Vale de Judeus que
ocorreram uma séria de homicídios no Outono de 2001. Quiçá por causa da
segurança ser alta, o julgamento dos casos ainda não foi feito, mais de
cinco anos depois. Porque “a PJ nunca descobre nada nas prisões”, como
explicou um antigo alto responsável dos serviços prisionais. Também na China
não é por se condenarem à morte pessoas acusadas de corrupção que a
corrupção vai acabar, como é evidente a esta distância. É portanto certo:
além do terror, mais nada restará desta triste iniciativa do Estado
português, a não ser a nossa vergonha colectiva por termos aceite os dedos
pelo corpo a dentro. Segurança resultará, antes de mais, de transparência,
da assunção de responsabilidades e da viabilização da confiança nas
instituições.
Quando o primeiro-ministro português referiu,
em Moscovo, não querer dar lições de Direitos Humanos a ninguém, tinha em
mente a autorização para Monsanto funcionar em regime penitenciário falhado
faz cem anos? Que mais se prepara sem anúncio ou debate público? Terá algo a
dizer a comissão parlamentar fiscalizadora dos direitos, liberdades e
garantias em Portugal?
António Balbino
Caldeira
2007-07-21
António
Balbino Caldeira alimenta um blog contra o sistema.
Impressionado
com o processo Casa Pia e as (ir)responsabilidades do Estado neste caso foi
levado a procurar respostas. E a incomodar muita gente poderosa.
Pelo que foi
tratado de forma intolerável e impune, que julgávamos improvável depois da
PIDE ter sido denunciada.
Sobre isso
vale a pena ler
http://doportugalprofundo.blogspot.com/
Tal
correspondência sugere a possibilidade de haver processo causa-efeito, que
apontaria para a confirmação da sua tese principal: a pedofilia não é apenas
uma excrescência do sistema. É um dos cancros do sistema.
Quando
surgiram dúvidas públicas sobre o percurso “académico” de Sócrates,
investigou o assunto. Persistentemente. Passados alguns meses tinha
conseguido fundamentar as suas dúvidas na incapacidade de respostas do
primeiro-ministro. A ponto de ser secundado pelos meios de comunicação de
referência, permanecendo actualmente a questão nebulosa e alvo de processos
judiciais para eventual esclarecimento – se alguma vez vier a ser possível
tal coisa.
O anúncio
público da iniciativa política do PM de instaurar um processo-crime contra
António Balbino Caldeira é um acto de instrumentalização política do poder
judiciário que não é próprio de um democrata com princípios. Como têm
chamado a atenção vários sectores sociais, a democracia e a liberdade que
lhe é suporte, estão em causa nesta fase da vida nacional. O medo dos
advogados instigado institucionalmente, o medo dos empresários em
participarem na vida pública, como veio a lume a propósito da contestação à
Ota, o medo de existir do José Gil. O sebastianismo estimulado pelo
voyeurismo televisivo sobre os supostos radicais, que tem promovido o
salazarismo e o neo-nazismo na praça pública.
É melhor
prepararmo-nos para lutar pela Liberdade.
A censura do chefe da oposição
2007-04-19
A novela da atribulada vida
académica do primeiro-ministro está a ser secundada por um debate
despoletado pela acusação de falha de carácter que lhe lançou o chefe da
oposição. E se foi preciso os jornais insistirem na tecla da vida
académica de Sócrates para que o líder do PSD levantasse a questão de
carácter dos políticos – como o tinha feito anteriormente a respeito das
eleições autárquicas, para dentro do seu partido – talvez isso venha a
valer a pena, isto é, possa ter consequências práticas na política
portuguesa.
Ouvi dizer na televisão que a
questão do carácter dos políticos não deveria estar a escrutínio público
ou político. O que me parece inaceitável em democracia é que os dois
argumentos (a censura do debate e a censura do político) sejam alegados
conjuntamente. Das duas uma: o debate está na praça e quem não gosta
abstém-se; se não se abstêm, que sentido faz estar no debate para dizer
que o debate não deve existir, sem explicar porquê?
Este problema tem a ver,
nitidamente, com a prática dos órgãos de comunicação social de
destacarem políticos para o seu serviço (como acontece com outras
empresas do campo financeiro, energético, etc.), para animarem fora de
comentários políticos. Como tem a ver com a qualidade da democracia
portuguesa, autista e cada vez mais isolada da vida a que falta
cidadania. Quando quem comenta não o faz desinteressadamente, produz-se
uma enorme confusão entre a tentativa de fazer pedagogia – fazer opinião
para povos livres e democráticos, bem formados – e a tentativa de
controlo da opinião pública e publicada. Esta rede de conspirações entre
partidos e meios de comunicação social faz e desfaz primeiros-ministros
e governos, gerando a instabilidade política que emerge da falsa
estabilidade produzida nas urnas pela mesma cumplicidade da comunicação
social e os políticos, denunciada entre outros por Santana Lopes.
Vivemos em Portugal a instabilidade política estabilizada e pouco
democrática.
Voltámos à noção de que o povo
português não está preparado para assistir e participar em certas
discussões, como as do carácter dos políticos, que por isso devem ser
censuradas? Ou o que é democrático é organizar a discussão política de
forma racional, ampla, participada e inteligível, em liberdade? A
promiscuidade entre poder político e direcção dos media, que
alegadamente deveria ser combatida pela privatização dos meios de
comunicação, deve ser combatida ou auto-regulada?
Pessoalmente entendo a censura da
censura de carácter como uma atitude política que pode até ser racional.
Mas isso mesmo, a sua racionalidade, precisa de ser melhor debatida,
entre comentadores independentes dos partidos/media de preferência,
independentemente das suas preferências partidárias.
É racional evitar a demagogia e é
fundamental combater o ódio na política. Mas se assim é, como se dá o
caso dos cartazes no Marquês? Como fica de pé a mensagem de ódio –
entretanto combatida pela polícia judiciária – e é apeada a mensagem
humorística? Porque é que os tribunais não estão expressamente
mandatados, nestes casos e noutros de emissão de mensagens sociais de
ódio, para intervirem preventiva e pedagogicamente? Porque é que os
cidadãos justamente indignados e disponíveis para agir civicamente
contra o ódio estão democraticamente desarmados, à mercê da
disponibilidade dos partidos políticos ou dos dirigentes das
instituições – Câmaras Municipais, Procurador Geral da República – para
lidarem com a serpente ainda no ovo? É que se os tribunais tivessem
poderes para acolher de forma expedita petições contra o ódio e em
defesa da democracia, também no caso das conspirações contra o
primeiro-ministro certamente teria havido uma ou mais iniciativas de
cidadãos a argumentar o inverso do que acredito: não é legítimo aos
media levantar o problema de carácter do primeiro-ministro a propósito
da vida académica, pelo menos enquanto este não sair de funções. Se um
tribunal pudesse pronunciar-se sobre esta questão, qualquer decisão que
tivesse tomado, desde que fundamentada na lei e na constituição – que é
democrática – seria um acto político útil e de primeira relevância. A
falta de capacidade dos sistema judicial em intervir politicamente lá
onde faz falta à democracia, como é manifestamente o caso, por
desconfiança e/ou inépcia dos partidos, sequiosos de poder, de todo o
poder, faz com que Portugal esteja nesta situação ridícula na véspera de
uma presidência da União Europeia, desnecessária e antecipadamente
frouxa e desacreditada, qualquer que venha a ser a evolução dos
acontecimentos.
O que parece vir dar razão aos que
entendem que é melhor acabar com a liberdade para que os políticos
possam, ainda mais tranquilamente, prosseguir os seus negócios que faz
deste país ao mesmo tempo o mais pobre e o mais desigual e o mais
economicamente comprometido da União. Mas de facto é o inverso que se
passa: os partidos devem ser capazes de seguir o exemplo dos militares
de Abril e, democraticamente, abrir mão dos seus poderes exagerados e
imorais e entregá-los ao povo, nomeadamente formando um sistema de
justiça que possa ser uma instância de recurso às fraquezas de carácter
dos responsáveis políticos – que se manifestou em José Sócrates sob a
soberba de insistir, sabe-se lá porquê, em assegurar ao mundo (ou a si
mesmo?) o valor das suas credenciais académicas, manifestamente tão
miseráveis como os indicadores de literacia do país.
O que falta ao povo português é
liberdade. Falta-lhe um sistema judiciário que defenda, como lhe cumpre
mas não é capaz, a liberdade de todos e de cada um, incluindo o governo
e o seu primeiro-ministro. Isto porque os partidos portugueses (todos,
incluindo os que estão fora do arco do poder) se entendem como
sorvedouros de poderes públicos e privados à custa da inibição de órgãos
de soberania deficitários, como é manifestamente a judicatura e como
passou a ser também, a meio do mandato, o governo.
É claro que a felicidade não está
à nossa esquina. A persistente e cada vez mais profunda crise da
justiça, que o Presidente da República significativa e
surpreendentemente resolveu desvalorizar, deixou os tribunais a pender
mais ainda para a tese da ditadura e do ódio, como o demonstram os
extraordinários acórdãos legitimadores da violência doméstica e da
censura jornalística em caso de eventual ofensa à honra de entidades
poderosas com a verdade (outra vez a verdade no caminho dos poderosos
que pretendem manter-se irresponsáveis). A falta de preparação e de
auto-responsabilização das magistraturas portuguesas e a recorrente
chocante irracionalidade do sistema judicial e das decisões que profere,
possível pela manutenção persistente de uma situação que atravessa e
mina toda a II República, não se ultrapassa de um dia para o outro, nem
se ultrapassa subtraindo competências a este pilar da democracia
política. Nem é ultrapassada por políticos que desvalorizam a moral e a
ética, como gostam de fazer os economistas mas não devem fazer os
políticos.
Voltando à vaca fria, como é
possível que, no mesmo governo, um ministro despeça um assessor por ter
usado um fax do seu gabinete para enviar uma mensagem pessoal para a
comunicação social, por alegada incompatibilidade de mistura de funções
públicas e actividades privadas, e outro ministro alegar comportamento
exemplar do primeiro-ministro que usou timbres e fax públicos para
trocar correspondência com um influente professor de uma universidade
durante a realização do seu curso superior? Como é possível quem apoie o
primeiro-ministro vir censurar a censura de carácter do seu primeiro,
sem se ter indignado – ainda que menos intensamente – com a atitude do
ministro que despediu o assessor? Há aqui, de facto, questões de
equidade e balanços morais e éticos que são relevantes de ver
esclarecidos: haverá duas classes de cidadãos em Portugal? Os assessores
cujo comportamento ético escape ao controlo dos ministros podem
tornar-se primeiros-ministros impolutos? Os últimos ficam autorizados em
partilhar livremente e a seu bel-prazer os recursos naturais e
institucionais do país e os primeiros devem ser mantidos envergonhados e
condenados, excluídos do debate político, reduzidos a fiéis
funcionários? Não é por isso que alguns concidadãos perguntam, cada vez
mais abertamente, que no tempo do Salazar, como agora, onde está a
diferença? Não será melhor para a democracia afirmar, confirmar e
defender essa diferença? Não será de dar prioridade ao combate ao medo,
à auto-censura e à desmobilização de operadores judiciários, jornalistas
e cidadãos perante o poder desmesurado da partidarite portuguesa?
Viver bem a
liberdade
para o 25 de Abril de 2007
A liberdade é um sentimento descontente que nos exige a
co-libertação de terceiros para aumentar o património comum.
Alexis de Tocqueville, pai do liberalismo, contraponha o
valor da impetuosa paixão democrática dos povos (a proclamação do direito à
imitação dos comportamentos dos mais poderosos) à sabedoria subtil dos
aliados dispostos a evitar o despotismo (a vocação dos políticos liberais).
Ao calor da fusão emocionante de nos impormos uns aos outros como
formalmente iguais, independentemente da origem ou da condição social, opôs
o autor clássico a racionalidade das práticas da Antiguidade, do “cuidado de
si” com que eram formados os príncipes helénicos de que nos falou Michel
Foucault na Hermenêutica do Sujeito, segredo do sucesso da primeira forma de
democracia política.
A democracia é uma forma de convívio social, mas a
liberdade é responsabilidade de se conduzir a si próprio e se projectar para
cima de tal convívio, em nome de si mesmo: o ser humano livre. A democracia
estabelece-se e defende-se, a liberdade exercita-se e afirma-se.
Dos valores emblemáticos da Revolução Francesa, foi a
democracia que impôs o Terror aos aristocratas? Ou terá sido a liberdade que
ordenou o Terror? E na luta contra o terrorismo? Se o custo da implantação
da democracia no Iraque é o que se vê, terá sido a liberdade que encomendou
tal serviço?
A liberdade filosófica representa o esforço espiritual,
mental, intelectual, racional (há várias maneiras) de se elevar o sentido
das vidas singulares a níveis de realidade superiores, entendidos por
poucos. Essa liberdade pode ser traduzida em termos cognitivos, como nas
Luzes. Outros preferem fixar critérios bélicos ou económicos ou estéticos,
admirando conquistadores e opressores ou especuladores e exploradores ou
artistas e profetas. Desde que sejam bem sucedidos, a história tende a
desvalorizar os métodos de exercício de tais liberdades e a enaltecer as
heranças recebidas, em património, pela humanidade. Frequentemente, na
história, os fins justificam os meios.
Por isso, temos que agradecer pessoalmente aos militares
que, na Revolução dos Cravos, fizeram equivaler aos olhos do povo português
democracia e liberdade, ao entregarem o poder conquistado pelas armas, aos
civis, mais preparados para exercerem e desenvolverem formas de liberdade
menos abrasivas.
A levarmos a sério as críticas, nem sempre subtis, à
nossa frágil democracia política, que foi também a oportunidade de
libertação social, podemos suspeitar – e asseverar ser certa – a
inconsciência popular sobre o valor da liberdade. Que lhe foi oferecida.
Porque lhe foi oferecida?
Um terço de século recorrido sobre a libertação política,
não só os jovens que têm dificuldade em entender os perigos do despotismo
que se entrevê no ressuscitar da libertação das ideias do Estado Novo.
Também o geriátrico Supremo Tribunal de Justiça deixa sem voz, de
estupefacção, a liberdade de imprensa, condenada por dizer a verdade
mesquinhamente inconveniente. Decisão tomada nas piores circunstâncias
históricas, quando o estado de direito está em causa não apenas em Portugal
mas no mundo.
O fim surpreendente da Guerra-fria tornou vitorioso, sem
batalha final, o partido da liberdade. Mas estará as liberdades asseguradas?
Que tipos de liberdades são prosseguidos, além da liberdade de circulação de
capitais? A de procurar da sabedoria? A de ter garantias de solidariedade na
doença e na velhice? A de ver reconhecida a dignidade social do labor de
cada um, conforme as suas possibilidades? Digam lá, oh leitores livres!
Os segredos da
administração: quem tem interesse em mantê-los?
2006-11-16
Sucedeu-me entrar em estado de ansiedade no dia anterior
à visita da repartição pública. Pior do que a ida a um dentista! Enchi-me de
toda a calma do mundo, com o único fito de procurar perceber como me poderia
desenvencilhar da embrulhada em que estava metido, disposto a aceitar passar
por cima de todas as enormidades que me pudessem meter no caminho. Não vale
a pena por em causa a saúde e a sanidade mental por causa de um registo de
um apartamento. Tinha decidido. Estava decidido.
A questão é “complexa”: quando encontrei, por acaso, um
amigo advogado, levantei-lhe a questão, só para ele se aperceber de como eu
era infeliz. Só a mim é que me acontecem coisas destas! “Tenho uma decisão
judicial que me é favorável e a administração recusa-se a cumprir a
decisão.”
- “Isso não pode ser! Onde já se viu?”
Explico-me melhor. Paguei ao tribunal o valor legal do
apartamento para durante oito anos apreciar todos os ângulos (imagino) do
meu direito de preferência, na qualidade de inquilino, sobre transacções que
os sucessivos proprietários fizeram do direito de propriedade, sem me darem
oportunidade de exercer tal direito. Ganhei o processo. Durante todo este
tempo o proprietário voltou a vender o apartamento, sem informar o
inquilino, que estava à espera do tribunal. Pode registar a transacção,
porque a reserva do registo – que é indispensável para dar início ao
processo judicial – caduca automaticamente ao fim de uns meses. Longe dos
oito anos.
- “Ah! O trato sucessivo!” Diz o meu amigo, feliz por ser
competente na matéria – “É que os registos também obedecem a leis próprias.”
Que não podem ser ultrapassadas? Também para o Zé a
questão era oblíqua. Afirmar que uma decisão judicial deve ser acatada pela
administração, não pode seguir-se um ponto final. É que a lei administrativa
também é lei. Quiçá uma lei superior, já que entra em vigor assim que a lei
comum acaba.
Esta “dialéctica” enfureceu-me: que será que esta gente –
simpática, de resto – aprende na escola? Será que ficam mais confusos de
tanto aprenderem? Ou será que estou a simplificar demasiado os princípios? E
os princípios devem ser como que moldados à comodidade dos funcionários?
Explico-me melhor: será que até os advogados aprenderam e interiorizaram que
os regulamentos internos de cada departamento do Estado são foros de
autonomia, prioritários no seu próprio território relativamente a todas as
outras leis? Face à contradição entre a decisão de tribunal e a lei
administrativa vence (será exagerado dizê-lo) não obstaculizar o cumprimento
da primeira.
O resultado prático é este: o tribunal assegura-me o
direito de preferência e fica-me com o dinheiro da transacção para garantir
que ela se processa a meu favor. O registo predial não aceita fazer o
registo sem que o actual e proprietário registado seja chamado à liça, não
se dispondo a própria conservatória a fazê-lo, visto estar aparentemente
fora das suas funções. Como caso transitado em julgado não pode voltar a
tribunal, estou na posição do estudante que terminou o secundário mas não
pode seguir para a universidade por falta de vagas. Ou o desempregado de
quem o patrão fugiu, sem subsídio de desemprego. Fica no limbo: nem pode
(nem lhe interessa) voltar para trás. Mas também não pode ir para a frente.
Faz então como em informática. Desliga tudo e arranca do início. Só que ao
contrário dos computadores, a sociedade não funciona assim. Ou melhor: uma
sociedade que funciona assim é Portugal.
Reclamei da posição insustentável da conservatória, que
para mais me atendeu como minha adversária nesta questão, dando-se ao
trabalho de me amesquinhar com pequenos truques que só o poder
administrativo é capaz de engendrar, na sordidez kafkiana dos ódios
degenerados que alimenta aos incómodos utentes dos serviços monopolistas.
Por resposta às minhas queixas recebi missivas simpáticas de diferentes
tutelas, evasivas e minimalistas. Não sei se por acaso, quando passados uns
meses voltei a ter coragem de enfrentar a besta, para minha surpresa a
conservadora tinha mudado. Parecia, esta última, uma pessoa normal. Capaz de
perceber o que eu lhe dizia. Preocupada em evitar esforços vãos. Capaz de
reconhecer as deficiências do serviço e as dificuldades da situação, sem
mostrar ostracismo ou procurar vingança em truques baixos. Não estava a ser
atendido por uma dentista. Prova-se que é possível, sem reformas, viver de
outra maneira.
E aqui chego à questão que me traz à escrita. As reformas
estruturais. Portugal não deixou de ser um país governado por quintas e
quintais. Na conservatória, acontece que, eventualmente, as coisas tenham
voltado à normalidade depois de uma experiência psicossocial. Ou será que a
rotação de funcionários resolveu por acaso o problema? Não sei. Mas não
deveria saber? Não deveria o queixoso ser informado de todas as implicações
da sua conduta? Basta que suspeite, sem saber, que uma queixa – sem exemplo
– teve resultados práticos? Quem tem interesse em esconder do público a
avaliação dos serviços públicos?
Estão a ver onde quero chegar? A quem interessa (ou não)
que um comportamento censurável e penalizado de um funcionário não seja
público?
Os utentes – muitos, como é o meu caso, são funcionários
públicos também – confrontam-se com a retórica política da necessidade de
avaliação rigorosa e com consequências dos desempenhos. Mas na prática, para
que a dança das cadeiras se faça sem interferências e com um mínimo de
critérios, e principalmente para que o público não se habitue a que as
reclamações podem (e devem) ter consequências, a administração – não são os
funcionários – fazem segredo das avaliações que fazem das (raras) queixas
dos utentes. Preferem manter a ideia de que não há consequências das
queixas, que é o que alimenta o espírito de resignação das pessoas, tratadas
como estúpidas, sentindo-se estúpidas, ficando estúpidas de facto e na
prática. Como aquelas funcionárias que terão (espero) sido castigadas por me
terem tratado mal. Muito mal.
Estilos de vida radicais, mesmo!
2006-11-14
Na vida prisional o dinheiro não pode ser exibido. Deve
ser escondido. Nisso contrasta com a vida no exterior, em grande medida
vivida para trocar formas de exposição de posses, reais ou virtuais, de bens
cujo valor é monetário mas principalmente simbólico.
Na sociedade líquida, de Bauman (2000), os formalmente
todos iguais perante a fluidez fiduciária encontram-se de facto todos
diferentes perante apelos de consumo funcionalmente similares – ainda que
com comodidades e efectividades diversas. O horror à normalização
burocrática, às tradições, às instituições, é culturalmente manifestado pela
manipulação da apresentação radical dos corpos, que alguns tem a
coragem de manipular de forma irreversível, com piercings ou
tatuagens, nomeadamente através dos ditames da moda e dos gangs juvenis do
momento. Nas prisões, os cortes e o excesso de suicídios e de mortes em
geral radicalizam o uso do próprio corpo, como manifestação e reclamação
contra o isolamento social. Ser igual quer agora dizer fazer para ser
diferente: ser capaz e competente para manter o puzzle sempre em
reconstrução das identidades tradicionais roubadas, pela recusa de
considerar a memória, pela desconsideração da autoridade, pela experiência
de viver o momento pelo momento, como se fosse único. Como se tivesse que
ser anti-social.
Do mesmo modo que chamamos ao acto de adquirir um Jaguar
ou um Panda, comprar um carro, da mesma maneira que dizemos comprar uma casa
tanto quando uma família prescinde de se alimentar convenientemente para
apostar num futuro melhor, através da aquisição de uma casa com um mínimo de
dignidade, como quando se investe especulativamente em empreendimentos de
luxo (ver Bourdieu 2001), é na qualidade dos negócios que fazemos nos
diferentes mercados que se define o nosso estilo de vida. Fora dos mercados
somos todos virtualmente iguais. É na nossa atitude perante os
mercados que nos tornamos diferentes.
Estilos de vida referem-se, como sempre na sociologia, a
duas realidades (ideo)logicamente contraditórias, combinadas de certa forma
prática no dia a dia: as baias de classe no acesso aos recursos sociais de
apropriação, que condicionam as potencialidades de participação nos
diferentes mercados de cada pessoa, e as intencionalidades mobilizadas por
cada pessoa para orientar a sua própria vida. O sistema e a agência. A
urgência e o direito.
Uma parte importante das pessoas prefere jogar pelo
seguro e fazer da modernização tradição, enquanto pode. Que a urgência da
transformação do sistema, induzida por outros (os tecnocratas ou os
revolucionários, por exemplo) seja moderada: que a resistência à mudança
possa evitar a erosão mais radical das sociedades e das pessoas que nela se
consomem. As expectativas sociais estabelecem-se muitas vezes aspirando a
serem capazes de manter os níveis de consumo já conhecidos, ao mesmo tempo
imaginados como únicos e iguais para todo o mundo (ver ideologia da classe
média norte americana, ou o conforto da macdonaldização do mundo). Mas todas
as pessoas aspiram, com medo e em sonhos, na perspectiva de virem a ser
verdadeiramente iguais a todas as outras, isto é aos seus modelos de
referência, que podem ser os pais, os professores, actores de cinema,
personagens poderosos na sua tranquila sapiência ou na sua invencibilidade
física ou na sua esperteza prática. Os estilos de vida são o resultado
prático, singular e massificado, da construção social ao mesmo tempo
imaginária e real, capaz de reunir explorados e exploradores, dominados e
dominantes, ignorantes e sábios, chefias e subordinados, em torno de uma
modernização igualitária e diferenciada, conforme a capacidade de luta
social e consoante a capacidade de capitalizar os processos de fechamento
social.
A precariedade destes resultados é compensada pela
constante aceleração – da moda, da economia, da produção de informação, da
propaganda, do medo e da insegurança – que transforma a tradição em museu, a
esperança em ideologia e o presente em alguma coisa que precisa de ser
explicado como se tivéssemos todos 4 anos … que é o que abre espaço à
produção sociológica.
Os estilos de vida são, ao mesmo tempo, uma reacção de
adaptação à (im)possibilidade de iniciativa com que nos provocam e humilham
quotidianamente e a manifestação da nossa disponibilidade de participar no
jogo da competitividade. Como disse Bush: “para reagir às adversidades da
guerra vamos às compras para os centros comerciais” (tradução de memória).
Estar preso numa sociedade em processo de modernização
significa a exclusão administrativa deste jogo de construção por medida de
estilos de vida chave-na-mão. Isso é evidente na gestão dos dinheiros do
preso, que são retidos pelas administrações prisionais. A vida do preso é a
resistência contra essa exclusão, através da aquisição de roupa de marca, de
produção de tatuagens, de exercícios físicos tipo body-building, e, mais
frequentemente, do ócio radical. No extremo, a greve de fome. Para ver se o
Estado é imune ao desaparecimento de um preso. Mas como com todos os outros,
o estilo de vida do preso é intimamente contraditório: não há fome que não
dê em fartura. À exclusão mais radical que se pode imaginar contrapõe-se a
disponibilização por parte de serviços apropriados das maiores tentações:
álcool, telemóveis, tabaco, medicamentos, drogas. Em segredo. Parece que
ninguém sabe. Sim, porque é proibido?!?
Na prisão aprendem-se estilos de vida radicais. Tal como
naquele elástico que nos suspende numa ponte, ora estamos a ser abandonados
pelos mercados, ora descobrimos que estamos, afinal, agarrados pelos
tornozelos.
Bibliografia:
Bauman, Zygmunt
(2000) Liquid Modernity, Cambridge, Polity Press.
Bourdieu, Pierre (2001) As
Estruturas Sociais da Economia, Lisboa, Piaget.
Kaminski, Marek
M. (2004) Games Prisoners Play - The Tragicomic Worlds of Polish Prison,
Princeton University Press.
Observatórios de política ? o caso da segurança
2006-11-01
João Correia propôs instituir observatórios de
política. Ora aí está uma iniciativa que tornaria o MIC um instrumento único
de democratização da sociedade portuguesa, na condição de não pretender ele
próprio beneficiar disso ? aliás, porque o faria, já que não é um partido
político e não tem aspirações à governação?
Tomemos o exemplo das questões de segurança. Perante a
ofensiva securitária global, desde as prisões extra-territoriais, as
colaborações extra-institucionais entre serviços de inteligência, a
legalização da tortura, os voos secretos em aviões particulares de
prisioneiros por todo o mundo, a negação de direitos fundamentais a
estrangeiros, a pressão da guerra contra o terrorismo que tanto impressiona
certos governos desejosos de estarem nas boas graças dos poderes fácticos,
que podem os partidos políticos fazer?
No caso português, se nas políticas prisionais há
ténues sinais de estarem a mexer-se sectores anti-securitários, por exemplo
com consequências visíveis na tendência de queda do número de presos e, de
forma mais voluntarista, no fim do regime inconstitucional de
inacessibilidade dos detidos ao Serviço Nacional de Saúde, já no caso das
polícias, ao invés, os sinais de agravamento das tendências securitárias são
evidentes ? nomeadamente nas queixas públicas dos titulares da
Inspecção-Geral da Administração Interna, ambos, um à saída e outro à
entrada, queixosos do alheamento sobranceiro da tutela perante as suas
funções, cujas consequências práticas se medem no número de mortos por
agentes da autoridade em serviço (dito pelos próprios).
Seja nas prisões, seja no comportamento das polícias
está muito mais em causa do que a repressão dos bandidos. Se fosse só isso,
não haveria tantos bandidos à solta e até próximos das benesses do poder!
Está a causa a ética da nossa civilização, a legitimidade das instituições,
a moral social, os alicerces da sociedade moderna, sem o que nem a economia
mais neo-liberal poderá funcionar (aliás, é por aí que ela está a fraquejar,
à custa de muitas vítimas).
Geralmente, a propósito de direitos humanos e de
moral, somos muito bons e observar e condenar terceiros, seja os EUA ou a
China, a Rússia a Colômbia, países africanos ou asiáticos que consideramos
distantes.
Porém, provavelmente por boas razões, quando se trata
de tomar conhecimento das misérias que se passam no nosso país, preferimos
meter o assunto debaixo do tapete. Alguém que nos diga que isso foi um caso
excepcional é suficiente para justificar a nossa desatenção e até
compreensão. Não nos é possível, a cada um, estar a pôr em questão todo um
modo de vida por causa de um incidente que, se fixado, nos destrói a imagem
positiva que temos de nós próprios e do nosso viver. Como não é possível a
um partido político que queira ter hipóteses eleitorais trazer à campanha
temas repugnantes, ainda que sejam (de facto são) as bases da legitimação do
próprio exercício da política e da democracia.
E aqui reside a contradição: a democracia, para se
defender, deve esconder de si própria a mão dura do securitarismo, que, por
sua vez, procura escapar-se ao controlo democrático, beneficiando das nuvens
de fumo que a repugnância natural das pessoas e das sociedades produzem
sobre a violência que em seu nome é desenvolvida. Um dos observatórios da
política a organizar seria um observatório da segurança dos cidadãos e da
democracia, dos direitos e das liberdades. Uma das tarefas a organizar
imediatamente seria a de se informar e organizar o acompanhamento da
implementação a nível global, mas principalmente nacional, do protocolo
adicional à Convenção contra maus-tratos, tratamentos degradantes e tortura
já subscrito por Portugal, mas suja implementação exige, de acordo com o
tratado, entidades independentes do Estado capazes de, numa base regular,
proceder a recolha de informações e a inspecções mais regulares que as
instâncias internacionais actualmente creditadas para fazer isso já fazem. O
próprio observatório deveria ser capaz de mobilizar organizações e pessoas
para cumprirem em Portugal o protocolo adicional e manter sobre elas, bem
como sobre o Estado, uma pressão crítica e democrática pelo respeito pelos
direitos, liberdades e garantias legalmente estabelecidos e tantas vezes
incumpridos. Haverá actualmente tarefa preventiva mais urgente?
Prisão, loucura,
morte
2006-10-11
A política penal é tolhida de forma cruzada pelo
segredo de Estado e pelos preconceitos sociais mais profundos, de modo que
se torna, por um lado, num tabu político e, por outro lado, num tema
fracturante, isto é: divide os partidos políticos segundo o que se costuma
chamar, de forma evasiva, critérios de consciência.
Face à recente legalização da tortura nos EUA, à
menos recente política global de raptos de seja quem for que os serviços de
informações possam entender poder ter informações sobre terrorismo
(cinicamente chamadas “rendições extraordinárias”), à tolerância ou mesmo
instigação de regimes penitenciários desumanos e degradantes, como em
Guantanamo e Abu Grahib, que mais não são do que exemplos eventualmente mais
desenvolvidos de a) políticas internas de intimidação das populações
desfavorecidas através do encarceramento massivo, a pretexto do tráfico de
drogas ilícitas, e b) da negação do curso do direito internacional (seja a
Convenção de Genebra sobre o direito em condições de guerra, sejam os
tratados internacionais sobre Direitos Humanos, seja o Tribunal Penal
Internacional) sempre que interesses ou cidadãos norte-americanos sejam
alvos, há que concluir pela necessidade política de retomar, como no século
XIX, intensa e publicamente, o debate sobre a utilidade, os custos e a
moralidade dos regimes penais existentes e praticáveis. Com base na
experiência prévia dos Gulag, dos tratados internacionais sobre Direitos
Humanos, das Convenções internacionais para a prevenção da tortura.
Seguindo o conselho de Manuel Alegre, quando
citou no seu discurso de apresentação do MIC Homi Bhabha, um pensador
indiano, em 2006-10-10 no Altis, a melhor maneira de pensar politicamente
questões globais é pensar de que forma elas nos afectam no dia-a-dia, aqui e
agora. Faz dez anos que o Provedor de Justiça publicou o seu primeiro
relatório sobre o estado (deplorável) das prisões em Portugal. Várias
ameaças de reformas depois e muitos mais escândalos mais tarde, apesar dos
esforços que certamente muitas pessoas e instituições terão feito, o
Professor Freitas do Amaral escrevia que seria preferível dar um prazo de 12
a 15 anos para que daquilo que são as prisões actualmente em Portugal as
pudéssemos transformar em alguma parecida com a média europeia. Fevereiro de
2004. Foi a primeira e última vez que se falou publicamente de política de
execução penal, qual pedrada num charco de silêncios ensurdecedores. Antes e
depois.
Sabemos que discutir, anunciar ou legislar
reformas seja do que for, para mais em Portugal, frequentemente não resulta
em melhorias. Temos um problema crónico de capacidade de levar à prática as
decisões políticas, que não é um traço pouco relevante da vida nacional, já
que prejudica fortemente a credibilidade das decisões democráticas e
desautoriza os órgãos de soberania. Ainda assim, ou por isso mesmo, merece
toda a atenção, apoio e acompanhamento o relatório do grupo de trabalho
Justiça/Saúde, (despacho conjunto nº72/2006) com o título “Plano de Acção
Nacional para o Combate à Propagação de Doenças Infecciosas em Meio
Prisional”, presidido por Graça Poças da Direcção Geral dos Serviços
Prisionais e a principal intenção política que o suporta: o reconhecimento
do direito constitucional dos presos a terem acesso aos mesmos recursos e
cuidados de saúde de todos os outros cidadãos, acabando com o serviço
especial que lhes tratava da saúde, e oferecendo aos prisioneiros acesso ao
Serviço Nacional de Saúde em pé de igualdade com os restantes cidadãos, como
é de Lei desde que há democracia.
É preciso que Portugal não alinhe nas políticas
de destruição da independência das instituições judiciais em Portugal, na
Europa e no Mundo, como alguns pedem e esperam que aconteça em breve, a
reboque das políticas globais securitárias. Mas não basta resistir-lhes: é
indispensável afirmar políticas alternativas de manutenção da divisão de
poderes de soberania em nome do Povo – sob pena de os fundamentalistas, de
lá e de cá, ganharem a guerra. Isso passa pelo mais rigoroso respeito pela
Lei, contra a corrupção, contra a falta de avaliação de resultados práticos
das políticas, contra a subversão administrativa das decisões políticas,
contra alegações formalistas contradizendo a realidade dos factos e as
evidências.
No caso das políticas penais, há que perguntar o
seguinte: que guerra é esta da Lei contra a droga que prende massivamente os
doentes, os alimenta clandestinamente dentro dos estabelecimentos prisionais
aumentando os preços e diminuindo a qualidade do produtos proibidos,
deixando abandonados e a morrer por falta de tratamento adequado aqueles que
estão à guarda do Estado (Portugal mantém níveis de morbidade prisional 4
vezes e mais acima da média do Conselho da Europa), subvertendo a linha de
comando no sistema prisional, impenetrável às políticas reformistas
imaginadas pelos políticos, contra quem se viram as macabras forças vivas
das prisões?
Credibilidade da classe política e corrupção
2006-10-05
O PR, depois de acusado de
se ter esquecido de integrar a corrupção no pacto de justiça que apadrinhou,
vem aproveitar a onda da ética republicana para chamar a atenção da
importância da luta contra a corrupção.
Pode ser por a minha
irritabilidade já ter passado o prazo de validade e ter-se tornado crónica.
Mas pode ser também por a hipocrisia dos nossos políticos não ter limites.
Tudo me parece uma farsa. Senão vejamos:
a)
A justiça não funciona e,
alegadamente, espera-se que o novo procurador a ponha a funcionar? Com
certeza que não: espera-se, isso sim, que não chateie os senhores deste
país, organizados em Pacto secreto, mas democrático a seu ver.
b)
Constou que o apito dourado não
pode ter efeitos práticos porque os legisladores tropeçaram num óbice
invisível, que ficou lá à espera de quem o descobrisse. Se fosse a primeira
vez, agente encolhia os ombros e olhava de lado. Quando é coisa já vista,
como foi no caso das facturas falsas ou dos fundos sociais europeus, quem me
pode convencer que isso não é resultado de um processo prático intencional e
manipulado?
c)
Se fosse eu que tivesse a mania
das conspirações estava descansado. Mas sendo o procurador cessante quem
descreve a sua vida no cargo como um jogo de tiro ao alvo, como não admitir,
ainda que apenas como hipótese, que a vida portuguesa é feita, sobretudo, de
conspirações?
Estou farto de ouvir
perguntas feitas ao contrário. Quando se pergunta porque é que os
portugueses se afastam da política, porque não se pergunta, em vez disso,
porque é que os partidos afastam os portugueses da política? A resposta é
simples: como dá muito dinheiro ir para a política – e o próprio não chega
para todos – há que fazer uma selecção: só são aceites na política os
portugueses obedientes e bem comportados, que se orientam pelo cheiro do vil
metal. É uma maneira como outra qualquer de fazer a coisa.
Agora é o PR que vem
manifestar a sua vontade de ver a corrupção combatida? Como? Através da
tomada de consciência dos políticos para deixarem de ser corruptos. É uma
primeira solução avançada. E boa, como se percebe logo. A segunda é que caso
isso se verifique não vir a acontecer, que é pouco natural, nesse caso então
– prova irrefutável da determinação do PR – a polícia será chamada ao caso.
Não fosse o caso do
anterior PR ter passado dois mandatos a falar para os peixinhos, podia ser
credível esta iniciativa. Mas infelizmente para os portugueses, não é esse o
caso. O que falta, então? Falta tudo: políticas sistemáticas de rigor, de
avaliação e de formação dos funcionários e das instituições do Estado. A
transparência deve ser pedra de toque de toda a hierarquia do Estado, a
autonomia técnica garantida e valorizada, a responsabilidade a todos os
níveis estimulada e agradecida. Os meios do Estado devem ser investidos
segundo estes critérios, seja em tempos de vacas gordas ou vacas magras. As
más consciências e as polícias não têm nada a ver com isso. A política sim,
tem tudo a ver.
Teorias da conspiração (I)
2006-10-05
É exemplar o comportamento
da Pacheco Pereira no dia 4 de Outubro de 2006, véspera da comemoração da
implantação da República em Portugal, quando a direita – para mostrar a
esquerda que também é – decidiu dar visibilidade solene à figura de Humberto
Delgado, cuja personalidade tem sido questionada pelos seus aliados da
oposição democrática na campanha eleitoral que ia destronando Salazar.
Activista contra o regime fascista, Pacheco Pereira, solicitado pelo
Presidente da República sem currículo nessa área, disse que Delgado
sentenciou a sua morte quando declarou o célebre “Obviamente, demito-o”.
Uns dias antes, como pude verificar ao ler a
revista semanal onde mantém uma coluna, sem que tivesse sentido a
contradição, vociferava na sua mesa de trabalho – tentando ironizar, mas sem
conseguir realmente – contra as teorias da conspiração alvitradas pelo
Procurado Geral da República cessante e pelo Partido Socialista, que
constituíram o prato forte do mandato de Souto Moura. Portanto: se a Pide e
o Salazar eram capazes de conspirar contra a vida de uma alta
individualidade, na mente de Pacheco Pereira, tais conspirações – apesar de
terem sido, como reconhece, o centro dos problemas jurídico políticos dos
últimos anos – deixaram de existir em democracia. Prova disso? É que o
próprio Pacheco Pereira esteve sempre contra a posição do Procurador e ele –
isso ele sabe de certeza certa – não conspira.
O único problema é que eu voltei a ouvi-lo à
noite, num clássico programa de debate político na televisão, onde, contra
Jorge Coelho, alegava que em tempo de guerra não se limpam as armas e, sem
perder de vista os direitos humano, era não apenas compreensível e
admissível mas salutar que as margens da legalidade fossem bem exploradas:
para que não fiquem dúvidas sobre o que queria dizer, que invadir um país
vizinho era perfeitamente tolerável. O que significa, a menos de melhor
explicação, que as conspirações podem e devem continuar a existir, que ele
próprio está disponível para as encobrir em nome da guerra, na condição de
serem as conspirações do seu lado.
Percebi perfeitamente.
Teorias da conspiração (II)
2006-10-05
No tempo das conspirações da administração norte
americana contra o estado de direito, acompanhado de perto pelos terroristas
seus aliados na guerra de civilizações – é que para dançar, sempre foram
preciso dois – e pelo mundo ocidental, aterrado com a evidente necessidade
de mudar de vida, não tanto por causa dos terroristas mas pela inviabilidade
de continuar a destruir o planeta a ritmo acelerado, de continuar a explorar
petróleo onde ele está a acabar para sempre, de continuar a matar à
descarada milhões de pessoas pelo roubo organizado das matérias primas à
custa das condições de subsistência das populações locais, dá jeito
confundir tudo e criar nuvens de fumaça.
Acredito que haja gente sinceramente crente no
dogma neo-liberal, isto é, que o problema é que as pessoas não tem tendência
para trabalhar e é preciso obrigá-las à bruta, sob pena de se deixarem
adormecer. Acredito mesmo que tal crença leva muita gente a ficar cega
relativamente a tudo quanto possa apontar em sentido contrário às suas
crenças e divinizar – essa é a essência do processo de dogmatização – aquilo
que aparenta dar razão às suas convicções. Mas essa não é a condição do
intelectual, do jornalista, do mentor de meios de comunicação.
Que tomem partido e se assumam na vanguarda da
criação dogmática para consumo social não faz deles necessariamente
conspiradores, já que modernamente existe aquilo que autores clássicos
chamaram divisão de trabalho. Isso permite que um pequeno grupo de
conspiradores assuma toda a responsabilidade, e todo o secretismo de vida
pessoal, que decorre da conspiração propriamente dita, cuja eficácia depende
do funcionamento burocrático das instituições, isto é do nível de abolia
profissional e submissão pessoal praticado na vida quotidiana, nomeadamente
no Estado e nas grandes empresas. Isso mesmo foi demonstrado pelos
comunistas e pelos nazis. Isso mesmo foi recuperado, sob diversas formas,
pelo capitalismo auto-destrutivo que partiu os dentes na grande depressão.
Nem sempre suaves, como o mostra a caça aos comunistas dos anos 50 nos EUA
ou a exclusão artificial dos comunistas italianos da grande conspiração
entre a Democracia Cristã e o mundo do crime, que durou 40 anos.
As conspirações são como as bruxas. Imagino como
elas gozam quando o assunto vem à liça, lançando sobre terceiros a suspeição
que as torna invisíveis a olho nu, ao mesmo tempo que se apresentam
publicamente pudicas. Isso é fenómeno recorrente na política, nos negócios,
nas instituições como no mundo do crime, incluindo polícias. Só que apenas
nestes últimos casos a sobrevida de pessoas está em risco. Pelo que é
precisamente em casos em que a pacificação da sociedade não nos permite dar
garantias de respeito pela integridade física das pessoas que as
conspirações devem ser tão controladas e evitadas quanto possível.
Aqueles que entendem que tais tipos de
conspirações devem ser liberalizadas, a pretexto de estados de guerra reais
ou imaginários, têm necessariamente, ao mesmo tempo, que garantir a
parcialidade radicalizada das forças que usam a violência, legal ou ilegal.
Têm que garantir a eficácia da sua própria conspiração contra os partidos
que entendem estar do “outro lado da barricada”. Qual profecia que se
auto-realiza, não apenas a guerra mas também os inimigos surgirão com toda a
certeza na sua frente, provando aquilo que perversamente queriam provar aos
seus seguidores dogmáticos.
A lição da civilização ocidental é que é
possível, ainda que precariamente, ultrapassar os instintos básicos das
sociedades humanas, através da educação, da crítica e da auto-determinação.
A curto prazo, através da separação de poderes e do respeito pelas oposições
e pelas minorias. Será que vai ser possível salvar o essencial?
Corrupção, Pacto da Justiça e Estado de Direito
2006-09-14
Corrupção, corruptela, poder, indiferença e medo
são os temas destas linhas, provocadas pelo debate sobre o significado
(misterioso) do pacto da justiça e por um pequeno grande evento na minha
vida pessoal. Comecemos por aqui:
Ao fim de oito anos em tribunais, recebi decisão
transitada em julgado que favorece o meu direito de propriedade sobre um
apartamento, num caso simples de alegação de direito de preferência. A
conservatória incumpre, recusando o registo de propriedade, alegando
“dúvidas”. Dúvidas da conservadora. A mesma que se disponibiliza a ajudar-me
a compreender a fragilidade da minha posição legal no seu gabinete.
Não suspeitei da senhora. Simplesmente achei
inacreditável a situação. Só pode ser fruto da maior das incompetências que
haja a possibilidade de as dúvidas da conservadora poderem ser levantadas
através de uma conversa privada com uma das partes interessadas. Irritado,
queixei-me a todas as instâncias que me lembrei. Descobri que o livro de
reclamações é da responsabilidade da conservadora de quem eu queria fazer
queixa. E que as outras três instâncias para que reclamei evitaram tocar no
assunto, demitindo-se de o fazer num caso, enviando o assunto para a
Secretaria de Estado competente noutro, dando razão à conservadora no caso
da Direcção Geral da tutela.
É preciso ser poderoso para manobrar títulos de
propriedade em Portugal? Parece que sim. Pelo menos tem que estar preparado
para tirar dúvidas aos conservadores. Cujo trabalho não tem evitado a
subversão da legislação sobre planos municipais, reservas territoriais ou
outros instrumentos de ordenamento do território. Quer dizer: quem tenha
títulos de propriedade beneficiou da sorte da administração não alegar
“dúvidas”, que por incompetência ou má-fé qualquer conservador poderá alegar
a qualquer altura, certo de que contará com a cobertura corporativa dos
colegas e da tutela, independentemente do que os tribunais possam decidir?
Esta hipótese é arrepiante. Mas é plausível. Explica os factos ocorridos.
Compagina-se bem com declarações de vários
quadrantes institucionais de que falta em Portugal um Estado de Direito, sem
que os órgãos de soberania do Estado se sintam obrigados a responder à letra
a tal alegação, com excepção do Presidente Sampaio, quando disse que a Lei
em Portugal tinha apenas o estatuto de sugestão. Não se tratou de ironia: em
Portugal a administração pode ter prioridade sobre as decisões dos órgãos de
soberania! Ou como diz alguma esquerda: é preciso estripar o que resta do
fascismo. Ou como diz alguma direita: é preciso combater o estalinismo. Ou
como dizem os liberais que têm convicções: é indispensável construir um
Estado de Direito, para que a economia possa subsistir forte e
auto-determinada.
O pacto da justiça recém anunciado tratará desta
profunda enfermidade anti-liberal do Estado em Portugal? Não tem condições
políticas para tal, infelizmente.
O pilar judicial do Estado foi palco, nos
últimos anos, de conspirações cruzadas entre partidos e personagens montados
em partidos. O que revelou a fragilidade profissional, ética e funcional dos
órgãos de justiça portugueses e gerou um imbróglio a que ninguém vê ponta
por onde pegar, a começar pelos agentes judiciais que, reunidos em Congresso
faz uns meses, não conseguiram auto-regular-se, apesar da situação
ameaçadora que vivem. E por isso se agudiza.
A última campanha para as presidências mostrou a
discórdia (todos os partidos foram a jogo sós, preferencialmente a mal
acompanhados), o descontentamento popular (traduzido na presença recorde de
candidatos espontâneos com propósitos políticos, e não apenas folclóricos) e
sobretudo a necessidade de ver atalhada a corrupção, a que todos os
candidatos foram obrigados a fazer referências mais ou menos incisivas e
directas. Por isso, é notícia o facto de a corrupção ficar de fora do pacto
da justiça. O que, todavia, não pode ser surpresa.
Fui dos que senti que o povo português estava
perante a opção de “evolução na continuidade” que o duelo Cavaco-Soares
garantiria – e que tanto agradou à comunicação social dominante – ou de
inversão de rota ética na condução dos destinos da Nação, que ameaçou poder
vir a ser sufragada (independentemente do candidato mais bem colocado vir a
ter, ou não, pernas e coração para a caminhada). Ora, após a eleição do novo
presidente, que mais se poderia esperar, com realismo, que não fosse o
fechamento defensivo e em copas dos interesses instalados, que sabem como
tirar as dúvidas da administração?
Haverá alguma coisa a fazer? Sobre o meu direito
de propriedade, vou falar com a minha advogada para a semana. Sobre os
direitos dos portugueses, o panorama parece-me mais sombrio ainda, já que é
necessário reconhecer a luta judicial dos raros competentes que se dão ao
trabalho de darem o corpo ao manifesto pela sua interpretação do que deve
ser (arriscando e sofrendo perseguições amedrontadoras para os restantes
profissionais-cidadãos). É indispensável revolver de cima a baixo toda a
formação académica de juristas, incluindo a organização de acções de
reciclagem e actualização com vista a pôr em vigor, tão depressa quanto
possível, o respeito pelos princípios gerais do direito, a começar pelo
respeito pela Lei, pela dignidade dos profissionais e dos utentes dos
tribunais. É preciso fazer acompanhar estes movimentos políticos não apenas
de legislação e recursos adequados (poucos mas bons!) mas também estimular
no povo português o apoio a tal política de instalação do Estado de Direito
em Portugal, através da pedagogia liberal no que se refere a direitos,
através da luta contra a corrupção, que manifestamente incomoda muita gente.
A corrupção não é o problema. Ela sempre existiu
e há-de existir. O problema é o modelo de desenvolvimento português fazer da
promiscuidade político-económica, do desenrasca da cunha, dos gestores
avaliados pelos resultados líquidos particulares (hoje bestiais, amanhã
bestas, mas sempre dependente dos amigos que avali(z)am), da desigualdade
social, na continuidade do que acontecia antes do 25 de Abril, critérios
(i)morais de valorização social. Isso não tem que ser assim. Mas é.
Bibi e o desenvolvimento português
“só a verdade é evolucionária”
I.I. Lenine em “O Estado e a Evolução”
2006-05-27
Joaquim Aguiar tem vindo a defender que só a verdade pode servir a política
portuguesa, nesta situação difícil em que nos encontramos. Se assim for,
Bibi da Casa Pia mostra-nos o caminho.
A raiva com que denuncia os senhores abusadores decorre da sua manifesta
inferioridade social se ter tornado, dentro de si, uma superioridade moral
de quem reconheceu e pediu desculpa por crimes inomináveis, de quem se quer
curar do mal, em vez de resistir contra todas as evidências, à custa das
vítimas, gente da sua condição.
As desigualdades sociais abstractas, mencionadas pelo novo supremo
magistrado da Nação no discurso à Nação do 25 de Abril de 2006, foram
concretizadas, na noite televisiva, na imagem grotesca de um homem cercado à
procura de justiça e de um lugar para si mesmo no mundo. Mas quem lhe poderá
fazer justiça? Mas quem lhe apresentará o mundo?
Dos poros suados e palpáveis no ecrã da televisão saia maldade pura, que só
um processo de cura doloroso e raro permite dar a observar, na coragem de o
assumir. Coragem rara, tanto mais por se apresentar em público. Onde foi
buscar a força?
A impunidade criminal com que as classes não inferiores viveram em Portugal
– e em grande medida ainda vivem – era tão certa que as pessoas pensavam
poder dar (e deram) a cara à “criadagem”, sem temor. Afinal, nunca
denunciariam porque estavam eles próprios envolvidos nas teias criminosas. E
com a protecção de pessoas importantes, quem se atreveria a acusar a
“criadagem”?
É claro que esta segurança se revelou falsa. Mas só depois de décadas de
impunidade. É muito simples hoje, sabendo o que se sabe, pensar na estupidez
dos criminosos. Mas tal pensamento não é senão uma desculpa para nós
próprios, observadores estupefactos e traumatizados do que se sabe que se
passou, quando queremos recusar o nosso envolvimento – ainda que indirecto –
nos acontecimentos. Durante todo o regime democrático a Casa Pia foi
apresentada como instituição de educação modelar, e disso mesmo nos
orgulhávamos todos. Mas será que era mesmo? Modelar relativamente a quê? À
caridade assistencialista que se quer tornar paradigma do novo “estado
social” em nome da competição? À pena que gostamos de ter das “viúvas e dos
órfãos”, como um personagem célebre de telenovela brasileira? À indiferença
relativamente aos direitos e deveres dos educadores, dos educandos e dos
portugueses em geral?
Os resultados práticos da educação em Portugal, apesar de terem melhorado
muito em democracia, continuam – como a economia – muito abaixo do
desejável. Há portugueses – muitos – sem nenhum tipo de educação, e mais
ainda cuja educação não dá para verem mais do que as dez pessoas que passam
à sua volta todos os dias, conforme mostraram os estudos de literacia
realizados no país. Essas pessoas, os nossos pobres de que falou o senhor
Presidente da República, e que serão uma minoria quase maioritária, são (ab)usados,
com a cumplicidade (eventualmente activa) de instituições do Estado, para os
fins mais perversos. Por exemplo: se é verdade que o pénis do Bibi está
marcado pelo cordame com que o controlavam os seus abusadores (como noutros
casos observados pelo tribunal também foi possível identificar lesões graves
e evidentes) com que conivências e cumplicidades foi possível tais marcas
terem passado sem sinalização durante dezenas de anos, numa instituição
modelar de internato, a cargo do Estado? Porque é que os casos de abusos
sexuais, que passaram a poder ser denunciados, são considerados
recorrentemente inevitáveis em instituições de acolhimento de menores?
Porque é que o Supremo Tribunal de Justiça entende por bem decretar o
direito (ou será dever?) dos educadores usarem da força como método
pedagógico? De que é que temos medo, quando somos obrigados a pensar nestas
coisas? Que meios foram postos à disposição dos portugueses, assustados com
a recente revelação do mundo dos abusos sexuais de crianças, para se
educarem a respeito deste assunto e tomarem medidas preventivas, em vez de
se esconderem da porcaria que foi atirada na ventoinha?
O tratamento que o Estado reservou para acompanhar o caso Casa Pia provocou
rupturas que pecam por não serem mais evidentes e públicas, como pública e
assumida são as culpas de Bibi. Que implicações teve o escândalo nas
decisões presidenciais de evitamento e de precipitação da dissolução da
Assembleia da República? De que maneira contribuiu para a viragem à direita
da direcção do PS? Quando o PSD reclama por uma justiça diferente da que
temos e considera isso a prioridade primeira da sua política, também se
inspira no choque Casa Pia? A reorganização da Casa Pia, bem como de todas
as casas de acolhimento de órfãos, aí fechados aos milhares, entregues a si
próprios e à violência como regra, e aos abusos sexuais como uma das
oportunidades de tomar iniciativa, é solução ou evolução?
Alguém sabe a verdade? Alguém se dispõe a dizer a verdade? Terá a justiça
portuguesa a capacidade de procurar a cura para a maldade existente na vida?
Quem nos pode responder com factos e testemunhos a estas perguntas?
Continua a morrer-se de mortes violentes nas
prisões portuguesas?
2006-02-20
A violência nas
prisões é, como se sabe inevitável. Os espaços de isolamento, é fácil
demonstrá-lo cientificamente, o que está feito (experiência de Stanford
disponível na Internet), instigam os instintos mais perversos das pessoas.
Viver nessas circunstância por tempo indefinidos ou muito longos deixa de
ser uma punição face a crimes imperdoáveis e passa a ser uma imposição de
poderes abusivos, para quem a justiça é um mero pretexto de abuso de poder.
Infelizmente, é notório
como aquilo que se pode dizer das prisões portuguesas, se poderá dizer com
mais intensidade (e a mesma propriedade) de Guantanamo, Abugrahib (dos
americanos e dos iraquianos), das prisões secretas na Europa e fora da
Europa, nos tratamentos desumanos e degradantes preparados para "resolver"
as investidas dos imigrantes às portas da Europa, de que se conhecem os
incidentes de Ceuta e Mellilla mas não se conhecem muitos outros.
Os guardas prisionais
têm vindo a queixar-se da situação degradante que se vive nas prisões, mas,
claro, são subordinados e, por isso, tem merecido alguma atenção dos
executivos - nomeadamente com aumento de efectivos - para que tudo fique na
mesma: nem a perspectiva hiper-gradualista do relatório do Prof. Freitas do
Amaral escapa à senha securitária do sistema político português. Mas em
Portugal, como em Espanha, Itália, Grécia e noutros países da Europa, os
direitos humanos dos detidos - é preciso dizê-lo com clareza - não estão
garantidos. Não fosse assim nem a ONU tinha programado a convenção de um
Protocolo Adicional contra a Tortura, a que Portugal já aderiu, nem esse
Protocolo preveria uma intensificação das medidas preventivas que, até
agora, apenas serviram para confirmar as suspeitas de que muitas das
denúncias, e as mais horríveis de entre elas, podem estar efectivamente a
passar-se.
Há, pois, dois lados
deste combate de civilização: o dos Direitos Humanos e o da bestialidade de
considerar os mais isolados como objecto de desejos perversos, que no caso
português se podem medir pelos números do obituário cronicamente acima da
média e no topo do que acontece na Europa, do Atlântico aos Urais.
Ao contrário do
prometido pela política prisional em vigência, significativa e tristemente
já integrada num pacto de regime (e de silêncio) de facto entre os partidos
do arco do poder, mais repressão contra os presos não garante nenhuma
segurança. Nunca garantiu em lado nenhum do mundo. Nem garante também o
silêncio, porque ainda não é possível incinerar os presos mortos.
Jornadas contra a tortura em Espanha
2006-02-06
A crise da caricatura do profeta bombista trouxe à baila a liberdade de
expressão na comunicação social europeia. Da falta de bom uso dessa mesma
liberdade se queixaram os participantes nas Jornadas Sobre a Prevenção da
Tortura, realizada em Barcelona no primeiro fim-de-semana de Fevereiro de
2006. Seguir-se-ão acções semelhantes em Bilbau e Madrid. Para um activista
de questões prisionais que acompanha faz muitos meses a Coordenadora para a
Prevenção Contra a Tortura foi uma surpresa a notícia de que a tortura se
pratica em Espanha e que esse facto já foi estabelecido pela ONU em 2004,
através do relator especial para a prevenção da tortura, Sr. Theo van Boven,
que aceitou o convite do governo espanhol do Sr. Aznar para o fazer. O
barulho político feito em redor desse relatório conseguiu com os próprios
espanhóis perdessem de vista essa realidade, que deixa abandonados à sua
sorte as vítimas e os seus familiares, alguns dos quais estiveram presentes
nas jornadas, entre os cerca de 400 participantes. A rara solidariedade que
nesse ambiente se pôde viver é terapêutica, informou-nos Jorge Barudy,
sobrevivente dos torturadores de Pinochet. Mas foi precisa muita coragem e
nervos de aço para testemunhar e rememorar momentos com esses: isso foi
evidente para os presentes e comparável ao comportamento dos que sofrem de
stress de guerra.
Um dos jornalistas presentes explicou que a auto-censura a respeito deste
tema é tão grande que quando mencionou a um colega – geralmente bem
informado, como se diz no meio – ter sido convidado para intervir, o colega,
de boa fé, lhe perguntou: “de que país vão vocês falar?” A ideia de que os
Direitos Humanos são uma característica ocidental que alimentam uma missão
de os universalizar nas outras partes do mundo, mesmo para quem não aprecie
as obsessões bélicas anglo-americanas, persiste, mesmo contra as evidências.
E quem se lhe pode opor?
As ONG com relações com a ONU, duas delas presentes nas jornadas, já
compreenderam, por experiência própria, que é preciso voltar a conquistar os
governos ocidentais para esses valores que nos foram legados, mas que
passaram a ser negados implicitamente a nível diplomático. A oposição à
especificação do que seja tortura nos tratados internacionais foi
prejudicada – ao contrário das expectativas dos activistas da Organização
Mundial Contra a Tortura – por diplomatas ocidentais, cf. Eric Sottas
comunicação às jornadas em breve publicada em <http://www.prevenciontortura.org/>.
Maus-tratos, do ponto de vista jurídico, são um grau de violência abaixo de
tratamentos desumanos e degradantes, que, por sua vez, são um grau abaixo de
tortura, sendo no concreto difícil fazer tais distinções. Todavia, por
tortura entende-se a violência praticada por agentes do Estado ou em nome
destes para obter materiais com valor jurídico, como denúncias ou
confissões, por exemplo. Por tratamentos será atingir objectivos de
humilhação e despersonalização, ainda que não hajam produtos jurídicos
derivados. As avaliações que os juízes fazem das situações concretas, foi
afirmado, também dependem da sensibilidade social à violência, e quanto a
essa, nota positiva, estará a ser cada vez mais aguda.
Quer dizer: parece estar identificado um desfasamento entre a maior
repugnância social ao uso e à irracionalidade da violência e, em sentido
inverso, a mobilização dos representantes políticos pelo menos de alguns
estados ocidentais contra a tradição de respeito pelos Direitos Humanos,
incluindo nos seus próprios países, a pretexto – já se vê – dos riscos de
segurança.
Em Espanha, é preciso usar a liberdade de expressão para o afirmar, porque
isso merece meditação e acção consequente: a Audiência Nacional, espécie de
tribunal especial para tratar das prioridades de segurança do Estado, em
particular do terrorismo, acolhe um corpo especial de polícia e uma
legislação própria que prevê, sem o admitir, a tortura como forma de
investigação criminal. Sim, os juízes podem aceitar denúncias e confissões
feitas sob tortura e ignorar denúncias de arguidos ou testemunhos que alegam
terem sido torturados. Tais alegações raramente são investigadas, mais
raramente levam a acusações formais, mais raramente ainda a condenações e
sempre que tal acontece têm havido amnistias governamentais que libertam os
torturadores. Alguns chegam a ser promovidos e condecorados.
A lei que permite a detenção incomunicada, três dias extensíveis a sete em
que um suspeito pode estar às mãos da polícia para inquirições especiais sem
contacto possível com advogados ou familiares, para que serve? Alegou um dos
participantes: institua-se a possibilidade de um potencial arguido se
recusar a prestar declarações que o possam incriminar, e a
incomunicabilidade deixará de fazer sentido. De facto.
Ciência e democracia
2006-01-22
Mariano Gago é o político a quem Portugal deve
grande parte da dinâmica de afirmação do espírito científico dentro da
comunidade científica e junto da comunidade política. Ninguém lhe tirará
esse mérito. O que não significa que não tenha cometido erros e que não
continue a cometê-los.
Uma das potenciais vantagens da democracia, que o ministro soube e continua
a querer promover, nomeadamente através de processos institucionalizados,
eficazes e credíveis de avaliação, é o escrutínio público das políticas
públicas, aos diversos níveis. Dada a complexidade e o prestígio da ciência,
o público interessado e interveniente nesse escrutínio é muito restrito.
Mas, necessariamente, como resultado prático do sucesso das políticas de
ciência, esse público está a forte alargamento e merece ser estimulado a
participar, ainda que informalmente, pois essa tendência participativa, tão
rara entre nós, é a melhor garantia da perenidade das boas políticas neste
sector, que contam com muitos adversários, como fica visível sempre que
Mariano Gago fica remetido para a oposição política.
A propósito da controversa pergunta de José Tavares ao Primeiro-Ministro
sobre o estado das negociação com o MIT, é importante afirmar que qualquer
?funcionário público? ou outro cidadão, independentemente da sua condição
profissional, tem o direito de intervir civicamente em favor do que entenda
ser o seu interesse pessoal e social, mais do que os políticos e em especial
os políticos em funções de Estado. E deve mesmo ser estimulado quando
entende ser o momento de o fazer, para que o espaço público de escrutínio
político se possa abrir um pouco mais a outros e novos protagonistas ou
simples figurantes.
Foi sem surpresa mas com tristeza que vivemos pelas notícias a reacção
imediata do Sr. Primeiro-Ministro, cujo poder parece tão fragilizado que
sentiu necessidade de o afirmar energicamente, não fosse algum hominídeo
querer desafiá-lo para um duelo. E a continuidade da reacção do governo, em
estilo ainda mais assanhado, pela voz de Mariano Gago:
será a negociação com o MIT um segredo de Estado?
Os fundos europeus para o desenvolvimento português foram mal baratados
durante os últimos 20 anos. O problema é saber porque é que os que há vinte
anos reclamavam contra isso mesmo não foram ouvidos e foram de tal modo
silenciados e afastados da vida pública que só vinte anos depois nos
apercebemos, com a crise política e económica a agudizar-se, que, de facto,
não foram só os crimes da Partex ou da UGT mas também as orientações
políticas que estabeleceram os critérios de utilização prática dos fundos
que os desviaram dos seus objectivos pretendidos.
(De resto os responsáveis máximos pelo silenciamento das críticas e por
essas orientações políticas erradas estão a ser julgados hoje, dia de
eleições para a Presidência da República, benevolamente, qualquer que venha
a ser o resultado). Dizia-se ? e continua a defender-se ? que a quantidade
de então deveria ser separada da qualidade, prometida para agora. Erro
crasso, ignorância inaudita, só possível de vingar tanto tempo e de se
manter como justificação das asneiras por manifesta contenção das oposições,
descrentes da eficácia pública das respectivas acções e sabedoras de aumento
da probabilidade de actos de represália nas suas vidas pessoais.
O que está em causa politicamente neste momento, quando os fundos europeus
são redirigidos para a qualificação dos portugueses, é saber se os mesmos
esquemas de redes em forma de polvo irão predominar nos próximos anos, e
escoar para finalidades sobretudo privadas os fundos públicos. Isso não está
nas mãos do ministro decidir, no campo da inovação, tecnologia e ciência.
Não só porque esse campo mexe com vários ministérios mas também porque os
interesses privados devem ser atraídos ao esforço nacional e os interesses
dos cientistas e gestores de ciência também. A política, nestas condições,
já não é uma tutela singular sobre o campo de actividade isolado, como em
grande medida tem sido a ciência em Portugal. A política científica deve
incorporar, contra a tradição nacional, infelizmente, práticas de
participação política próprias e apropriadas para gente treinada e preparada
para se envolver apaixonadamente com o seu trabalho e com a criação de
condições institucionais de desenvolvimento dos seus próprios interesses
científicos. Essa é a responsabilidade política do governo, para que daqui a
dez anos não tenhamos que voltar a confirmar o alargamento dos tentáculos do
polvo para o campo das ciências.
Para que serve um Presidente?
2006-01-20
No fim da campanha eleitoral é possível dizer-se que todos ficámos a saber
da existência da divisão de poderes políticos, que implica que o Presidente
da República não se imiscua nas competências do Governo, sob pena de mais
confusão, mas não ficou claro para que serve o Presidente, nem se os
diversos candidatos têm a esse respeito ideias diferentes, independentemente
da obrigação de respeito pela Constituição que quem ganhar terá de
submeter-se.
Tem razão Jerónimo de Sousa quando denuncia a hipocrisia reinante em
Portugal sobre o valor relativo e sistematicamente relativizado da
Constituição. Já não adianta muito a queixa se, como foi o caso, não se
oferecer ao eleitorado um programa político – e não um programa moralista –
para ultrapassar a actual situação em que se pode duvidar, com muita razão,
de que estejamos protegidos por um Estado de Direito. A este respeito vale a
pena recordar que foram os dez anos de Sampaio marcados pela denúncia
presidencial da crise da Justiça (que lhe competia) e pela indesejável e
perigosa radicalização da mesmíssima crise (com contribuições do próprio
Presidente e sem soluções eficazes que pudessem tê-la superado). Uma das
dimensões da crise da justiça é, sem dúvida, o desprezo politicamente
organizado, e juridicamente secundado, pela constituição, não apenas nas
suas partes utópicas e económica mas também na parte referente a direitos,
liberdades e garantias, ao reconhecimento práticos dos valores da doutrina
liberal aplicada às decisões jurídicas, na primeira instância como nos
tribunais superiores ou nos Conselhos Superiores reguladores das actividades
das magistraturas.
Este exemplo, que poderíamos estender aos sectores da educação, da
desigualdade crónica ou do direito laboral, por exemplo, serve para mostrar
como o Presidente da República, eleito em princípio para dois mandatos
consecutivos, sendo a principal referência de estabilidade política em
Portugal, deveria ser também uma referência definida, afirmativa, de
políticas nacionais de longo prazo, não apenas onde elas costumam ser
consensuais (como na política externa, com a lamentável excepção da guerra
no Iraque, em que o Presidente Sampaio se comportou como devia embora talvez
pudesse – sabê-lo hoje – ter interrompido aí a carreira (ou o carreirismo?)
dos lideres do PSD) mas também onde elas deviam ser consensuais mas não o
são na prática, o que tem significado, nos sectores referidos, recuos
estratégicos muito comprometedores para o futuro do país.
Queixava-se, com razão, Pacheco Pereira de a longa campanha eleitoral ter
fugido de temas fundamentais para o Presidente e para os portugueses, como
as crises nas Forças Armadas, nas forças de segurança, na política criminal
(e nas prisões, acrescento eu). Sem dúvida. Visitar prisões e não ligar o
que lá se passa com os desconchavo do Estado de Direito é mais fácil mas não
é cumprir o papel do Presidente. O governo tem responsabilidades executivas
de curto prazo. O Presidente têm responsabilidades estratégicas – nos mesmos
campos –, de mais longo prazo. Por exemplo, em vez de se aceitar as
tendências demográficas como fatalidades, é possível pensá-las
politicamente, seja através de políticas de emancipação das mulheres
(através da integração do trabalho doméstico na classificação de trabalho de
que tem sido excluído) seja através da integração de imigrantes (por
natureza, mais prolíficos como progenitores). Organizar o pensamento
estratégico político no prazo mais longo, sem ofender a agenda governativa
aprovada em eleições (e não as agendas particulares que são introduzidas
pelos governantes), é tarefa de Presidente.
Voto Manuel Alegre na esperança de que ele possa fazer recuar a
partidocracia, faça avançar as iniciativas cívicas participativas e combata
as fontes da corrupção. Eis um programa sensato de moralização da vida
política portuguesa que nenhum outro candidato pode representar.
Media e presidenciais
2006-01-12
Parece-me que
há uma confusão neste debate que opõe pré-candidatos e as
TV ou media em geral. Essa confusão decorre de e prolonga uma profunda
tradição anti-política (no fundo tradicionalista) que caracteriza Portugal.
1. Nas sociedades modernas (ao contrário das outras) os poderes de
Estado são separados e juridicamente independentes (embora obrigados,
para auto-perpetuação) à famosa solidariedade institucional.
2. O 4º poder diz-se assim porque, com a liberdade de imprensa (de
opinião e de expressão, o que é tudo a mesma coisa), goza de uma larga
autonomia jurídica, desde que adira à solidariedade institucional.
3. Alternativa e doutrinariamente, no campo moderno temos o modelo
totalitário - em que a solidariedade institucional subverte a autonomia
por submissão de todos os outros poderes do Estado a um só, que pode
ser Presidente ou Primeiro Ministro ou Chefe militar - e fora do campo
da modernidade temos os fundamentalismos religiosos ou
étnico-patrióticos, como em África acontece muito, mas também noutros
continentes, incluindo o europeu (cf. Balcãs, recentemente com a
desagregação da Juguslávia).
Em resumo: o direito à livre expressão dos cidadãos não é, nunca foi,
julgo que nunca será, uma oferta, uma dádiva, uma saída de um concurso
de um reality-show. Como a reclamação de um direito de expressão não é
a declaração de uma vítima: é um empreendimento político, que usa a
ambiguidade entre a realidade e a norma, entre o que é e o que se diz
que se desejaria que fosse.
Já agora deixo a minha opinião: a) desta vez muitos expontâneos
sentiram necessidade de dar a cara pela Presidência da República: isto
é um sinal de qualquer coisa; b) o efeito de eucalipto que a política à
portuguesa tem acarinhado deixa a intervenção cívica voluntarista -
aquela que sai das entrenhas, sem preparação - numa posição
ridicularizável; c) a modernização do país (e da Europa, noutro nível)
passa por superar este "gap" entre os cidadãos e a política, pelo que,
independentemente dos erros, pessoas como o Luís Botelho Ribeiro (com
quem sei que discordo politicamente de opções fundamentais) fazem
falta; d) os erros são a única forma de aprender a fazer política:
lutando por isso, como ele fez. Tiro-lhe o chapéu!
O que significam os votos nas presidenciais?
2006-01-11
O carácter do povo português ficará identificado nos próximos anos com os
resultado das próximas eleições. Quererá o povo português mostrar-se
reaccionário ou quererá tomar nas suas mãos o seu próprio destino?
Preferiremos esperar para ver onde isto vai parar, na esperança que ao menos
não regressemos às origens? Ou estaremos disponíveis para começar uma
reorientação geral, social e institucional, com vista à determinação de uma
aposta de futuro?
Basta ter em conta o papel da constituição portuguesa, ignorada na prática
das escolas de direito, dos tribunais e da política, e o “europeísmo”
pedinte de que somos campeões europeus – e cuja símbolo mais bem sucedido é
o jardim da Madeira – para nos darmos conta como temos sido reaccionários.
No duplo sentido de contra-revolucionários, o que foi uma coisa boa, dado o
rumo que as coisas estavam a tomar em 1975, e de oportunistas na Europa
desenvolvida, o que tem sido uma má coisa: para a educação, para o fisco,
para a formação profissional e principalmente pela a nossa ética colectiva,
completamente desorientada pela chuva de casos de corrupção evidente e
impune, de manipulação judiciária nos sentidos mais gravosos que imaginar se
podem, depredação dos valores patrimoniais e ecológicos, colonização da
política pelos futebóis e pela economias paralelas das mais reles até aos
contratos mais estratégicos, a ponto de haver dúvidas sobre o patriotismo
dos protagonistas políticos.
Foi neste embalo, em particular do crescimento económico induzido pelos
nossos parceiros europeus, que nem nos demos conta das principais discussões
do tempo: que fazer com o Estado-Social, perguntavam-se os países que dele
beneficiavam. Enquanto por cá, em contra-ciclo, lá se ia aproveitando a
sabedoria das políticas “para inglês ver”, os deputados se iam entretendo a
dar letra de forma aos princípios mais modernistas, na certeza que nada
seria para levar a sério: “meras sugestões” como disse o Presidente Sampaio.
Serviam as leis, isso sim, para arrumar nas diversas prateleiras do Estado
as clientelas arrogantes, com a justificação paternalista da eterna
incapacidade profissional e técnica (fabricada pelos dirigentes) das
instituições, que assim se multiplicaram.
Cadilhe confessou: Cavaco agitou o papão do “monstro” que seria o Estado ao
mesmo tempo que o criava ele próprio. Tem sido assim a política à
portuguesa: todos mentem sem nenhuma ética que não seja o foguetório e a
prestidigitação. “Bom, se é para bem do País, se é assim que a CEE quer …”
pensámos durante todos estes anos. Afinal são eles que pagam, não é. Por
isso quem estranhou que o Cavaco anti-europeísta que ganhou as eleições no
PSD se tivesse tornado, sem cambalhota, em pró-europeísta no governo? Sim:
lembram-se? Foi assim que o Cavaco tirou das mãos de Soares – que batalhou
forte e feio pelo “cheque” europeu – o pão para a boca. A que, de resto,
Soares acedeu com fair-play, tendo-se vingado com Macau, qual árvore
das patacas cuja história recente está ainda por contar, mas cujo impacto
político-económico é inegável na vida portuguesa.
Perante os factos, os portugueses adoptaram uma postura de normalização,
cuja principal orientação é apresentada classicamente em Pangloss de
Voltaire: temos que ser optimistas porque por si isso levanta o astral e
traz bons augúrios. As campanhas políticas pela positiva estão aí para o
provar. Face à actual situação, perante o beco sem saída e a pouca vergonha
que anda à solta, perante a incapacidade das instituições de fazerem sentido
e de se entenderem entre si – muito em particular o judicial, o militar, as
forças de segurança e os políticos, para só falarmos das bases
institucionais do Estado – qual vai ser a atitude dos portugueses nas urnas?
Reaccionários, é a aposta dos economicistas e principalmente dos que já
pedem o branqueamento da fuga organizada aos impostos através da sugestão
política de IRC a zero. “Discriminação positiva” para o capital no país da
desigualdade é, evidentemente, uma postura reaccionária por mérito
indiscutível. Disso mesmo se vem queixando Soares, que diz aos “banqueiros”
que pelo caminho da luta de classes que parece estarem a organizar, pelo
revanchismo mais oportunista e irresponsável, pela instabilização política
que Cavaco trará, não tanto pessoalmente mas por a sua eleição ser um sinal
de rendição do povo português, os negócios em Portugal vão ser prejudicados.
As sondagens mostram-nos como esta é uma inclinação forte dos votantes.
Esperam que os problemas se resolvam por si: “deixem-no trabalhar: ele nunca
se engana”, todos estarão a pensar, mesmo que nisso não acreditem: “afinal,
todos mentem, não é?”.
Se a alternativa fosse Mário Soares, que resposta poderiamos dar que não
seja: “pois é!”. Perito em dizer a cada um o que cada um gosta de ouvir,
dizendo-nos ao mesmo tempo aquilo que não queremos ouvir mas em canto de
sereia, isto é, como se isso fosse secundário, lá vai querendo levar a água
ao moinho. A divisão do PS a seu respeito é um sinal positivo: quer dizer
que “há sempre quem diga não!”. Chega de conversa fiada: queremos (pelo
menos gostaria que assim fosse) poder discutir a verdade sem interferências
do “manto diáfano da fantasia” com que sistematicamente nos temos deixado
afastar das responsabilidades cívicas, que são as nossas, a dos eleitores.
José Mourinho, por chamar vigaristas aos adversários, vai ser multado em
Inglaterra: lá, espantem-se, isso é um insulto. Porque será? É porque os
ingleses – apesar do Blair que têm – no futebol, que é uma coisa séria, é um
negócio, penalizam moralmente éticas que desconsideram a honestidade das
discussões. Isso marca uma diferença relativamente ao que é possível exigir
neste país.
Vamos matar o Pangloss que há em nós?
Há duas candidaturas que trabalham nesse sentido. Lamento, mas Jerónimo de
Sousa não é um desses. Essa de “cumprir e fazer cumprir” a nossa esfarrapada
Constituição só pode ser piada, no país em que as leis são uma “sugestão”.
Este candidato é favorável à política para “inglês ver” que nos tem
atazanado, que tem excluído da vida e dos debates políticos todos os que não
se submetem às lógicas partidárias, e de que é grão-mestre Soares. A
preferência para Soares manifestada por Jerónimo é a preferência pela
politiquice profissional, que infelizmente não tem dado provas em Portugal.
A República e o Estado, como diz Manuel Alegre, não tem (ou não devia ter)
donos. E a apatia da cidadania em Portugal, em contraste com Espanha e
outros países da União, mostra o colete-de-forças em que, conscientes ou
não, estamos metidos. E com o que é preciso vir a romper, um dia.
A eleição de Manuel Alegre, cuja primeira e principal batalha é a da
passagem à segunda volta, representará a vitória da vontade do Povo
português de assumir as responsabilidades do espírito de iniciativa e
liberdade, sem tutelas, com verdade, de que será preciso dar mostras para
encontrarmos colectivamente não apenas a confiança em nós próprios mas
também o consenso possível em torno de um projecto nacional apropriado à
nossa situação actual e aos rumos belicistas, depressivos e repressivos que
nos ameaçam globalmente.
Não ao abuso sexual de crianças – outra vez e sempre!
2005-12-16
Uma criança de 50 dias foi abusada sexualmente, em princípio pelo pai, e
selvaticamente batida por alegadamente “não comer”. A comissão de protecção
de menores acompanhou o caso, assim como os serviços de urgência de um
hospital, sem que tenham recolhido a informação policial disponível de que o
pai era suspeito reiterado de abuso sexual de crianças. Os responsáveis
máximos das comissões de protecção de menores afirmam publicamente que a
comissão em causa e eles próprios fizeram tudo o que estava ao seu alcance
fazer para defender a criança, embora tal defesa não tenha sido eficaz ou
sequer existente. Uma médica envolvida no caso faz declarações duras contra
as práticas e as competências dos profissionais ao serviço das comissões
(infelizmente, não ao serviço das crianças). O ministro da tutela lamenta,
declara haver necessidade de melhorar formação (como tudo o resto) e pede
para que o pessoal médico não faça declarações perturbadoras.
A Plataforma Não ao Abuso Sexual de Crianças reúne associações e pessoas
indignadas e alertadas para a necessidade de ultrapassar o estado de choque
em que ficou Portugal quando se deu conta da existência maciça de abusos
sexuais a menores, inclusivamente os que estejam à guarda directa do Estado.
Manifestámo-nos em diversas ocasiões no sentido de não abandonar ao sistema
de justiça as responsabilidades de lidar com o nosso embaraço, que são
principalmente executivas e cívicas. Infelizmente, passados tantos meses,
apesar dos esforços feitos principalmente na perseguição policial de casos
já perpetrados de crimes de abuso sexual, não apenas não podemos estar
satisfeitos com os resultados produzidos, como principalmente não podemos
aceitar a resignação nem a indiferença do Estado português,
pela voz daqueles que até agora se tem apresentado em
sua representação, a propósito de mais este caso brutal que veio ao
conhecimento público.
Temos consciência, todos, da extensão insuportável dos maus-tratos a
crianças que se verificam no nosso país. Há ainda quem imagine que os
malfeitores vêm de fora, que são estrangeiros ou alienígenas. É preciso
dizer que não é assim! Apesar dos abusadores votarem a as crianças não o
poderem fazer, o Estado português responsabilizou-se através de legislação
interna e de compromissos internacionais a respeitar e fazer respeitar os
direitos das crianças, consignados em documentos legais onde se reconhece a
sua particular fragilidade precisamente relativamente àqueles a quem a
sociedade entrega as responsabilidades de tutela. É insuportável o laxismo
nesta matéria, bem como a resignação das declarações oficiais ofensiva dos
sentimentos dos portugueses que não se vêem representados na indiferença
moral. Filhos de pobres ou de ricos, de pais jovens ou de pais velhos, vivam
com casais casados
, em união de facto, em
famílias monoparentais ou outros modelos de famílias informais, no Norte ou no Sul, as
crianças não podem ser batidas e abusadas sexualmente. É responsabilidade
formal do Estado assegurar-nos de assim acontece. Não cabe à
discricionariedade do sentimento dos responsáveis deixarem-se abater pela
inevitabilidade dos acontecimentos, nem lhes é permitido socorrerem-se da
alegada desresponsabilização permitida por eventuais contratos de partilha
de tutela das crianças com familiares ou vizinhos e muito menos,
evidentemente, pela responsabilidade criminal dos abusadores macabros.
Apelo aos leitores que se manifestem, nomeadamente através da subscrição da
petição ao Primeiro-Ministro e ao Ministro da Solidariedade em
http://new.PetitionOnline.com/nasc02/petition.html
Agente não vive duas vezes: é de aproveitar!
2005-12-16
Um jornal faz capa com os milhões que a União Europeia já garantiu que vão
chegar diariamente a Portugal. Tal notícia refere-se às negociações sobre o
futuro orçamento da União para os próximos anos e revela como, apesar do
estado a que se chegou – de amoralidade pública – uma parte relevante do
público (e da opinião pública) continua a aceitar (ou exigir) reduzir a
política e a ideologia ao mínimo denominador comum: o vil metal.
Os leitores que estejam à espera de poder continuar as suas actividades de
saque nos próximos anos – parece dizer a manchete – podem continuar à
espera, porque a administração e os políticos vão ter um bom osso para roer,
que é o de saberem como distribuir a dinheiro de modo a que seja possível
cumprir as condições de formação de despesa para captar fundos europeus e
satisfazer apetites pouco claros, que são sempre os que se fundam na
esperteza saloia ou no amiguismo, encostados à ideologia de que os
portugueses não têm o cromossoma do planeamento e da organização. São, por
natureza, membros de uma desorganização muito bem organizada.
Já houve quem dissesse que os fundos europeus eram dos factos mais
responsáveis pelo atraso relativo do desenvolvimento português, na medida em
que uma parte importante dos melhores esforços de organização – com excepção
do Euro 2004 – são feitos para canalizar os fundos para os lugares certos.
Ou incertos? O que nos leva a pensar que a causa da crise actual em Portugal
pode muito bem ser um problema estocástico: um engarrafamento nos acessos
aos dinheiros comunitários. Vejamos mais de perto o problema:
a) Portugal
tem acesso aos fundos porque é um país atrasado.
b) Enquanto
o atraso herdado foi suficiente para manter o nível de desenvolvimento
abaixo dos 75% da média europeia, a região de Lisboa pode manter a dianteira
do desenvolvimento português;
c) Quando
o desenvolvimento da região deixou de ser inferior a 75% da média da União,
Lisboa e Vale do Tejo “perdeu” fundos, a que deixou de poder concorrer;
d) Como
mostra a teoria aplicada ao pagamento de impostos, mais importante do que
viver é saber viver: há que meter travões a fundo e descolar dos 80% em que
já se ia. Lisboa reivindica os fundos! Aliás, como repararam, toda a
economia europeia abrandou, precisamente para evitar a estratégia de Lisboa.
e) Mas
conseguimos. Não podemos desvalorizar a moeda, desvalorizamo-nos a nós
próprios: ser pedinte lá fora é ser reconhecido cá dentro.
f) Isso
explica o carácter esquerdizante do espectro político português, com tantos
partidos à esquerda que todos os cinco candidatos a Presidente da República
são de esquerda, pelo menos três deles radicais.
g) Isso
também explica porque é que as leis não se cumprem: têm vindo a fazer de
Portugal um reality show. Que é de onde têm origem as políticas
“realistas”. À moda de Pangloss.
Viva Portugal! Vem aí o Mundial, a praia e os fogos são para os bombeiros,
que agente não vive duas vezes!
Temas marginais
2005-12-04
“É muito interessante trabalhar temas marginais!” Foi mais ou menos assim
que um amigo um dia de me dirigiu para elogiar o trabalho que desenvolvia
sobre assuntos prisionais e de direitos humanos.
Passado poucos anos, eis-nos confrontados com a dura realidade das prisões
secretas da CIA um pouco por todo o mundo, e também na democrática União
Europeia, e com as notícias recorrentes de que a tortura é, faz anos,
prática corrente integrada na cultura das profissões prisionais
norte-americanas, não apenas no Afeganistão e no Iraque, não apenas face a
terroristas, mas no território nacional e perante presos comuns e
inclusivamente crianças. Quem denuncia a situação é perseguido e vive em
risco de vida.
Será este um tema marginal? Há quem pense que o fundamental é os temas
económicos e que tudo o resto é secundário. O direito, embora seja o próprio
fundamento do Estado – democrático ou não democrático – , parece não
incomodar. Basta ver a tranquilidade com que se vive a crise da justiça em
Portugal faz anos, sem que nada esteja sequer planeado para melhorias, a não
ser a intensificação do passa culpas. Basta ver o escândalo público que o
livro de Freitas do Amaral provocou quando comparava as práticas contra o
direito da administração Bush pós 11 de Setembro e as práticas dos nazis. O
escândalo foi por Freitas ter, eventualmente, ofendido os donos do mundo,
não o facto de a mais poderosa nação ocidental estar a falhar em questões de
princípio, note-se.
Será que podemos estar mais seguros de que o Estado português está atento à
nossa segurança colectiva, na defesa dos princípios do direito, pelo facto
de Freitas do Amaral ter a pasta dos Negócios Estrangeiros? Ou será que esse
facto apenas levou à neutralização de uma das raras vozes que denunciou os
riscos de recuo civilizacional graves? Os dados que temos até agora são os
seguintes: o Ministério dos Negócios Estrangeiros garantiu que aviões da CIA
não passaram por aeroportos portugueses durante a vigência do governo
actual, que seja do seu conhecimento oficial. O mínimo que se pode dizer é
que é preocupante. Em linguagem diplomática, parece que Freitas do Amaral
estará a pedir socorro. E haverá alguma alma disponível para gritar que o
Rei vai nu?
Na época em que o Estado procura auto-reduzir-se ao essencial, isto é ao uso
legítimo da força, quando a civilização ocidental se entrega ao uso da força
e suspende os critérios de legitimação da acção dos poderosos, haverá
economia que nos valha? Ainda se funcionasse …
O ar do mau tempo
2005-11-19
No verão, um episódio pirata importado do Brasil, manipulou a polícia e as
televisões, trouxe à flor da pele o racismo português, que os académicos por
vezes se entretêm a discutir se existe ou se não existe. O arrastão serviu
para que todos pudéssemos observar expressões culturais explícitas do
racismo que vai em nós.
O facto de ser tudo, afinal, uma encenação e um insulto – com direito a
desmentido, significativamente equívoco das autoridades – nem por isso
permitiu reavaliar a situação que causou tais excessos de apreciação
depreciativa dos membros mais escuros (ou mesmo pretos) da nossa sociedade
que andam de comboio. Nas leituras públicas do desmentido, a linguagem
equívoca permitiu a muitos jornalistas – inconformados com a sua própria
imagem de mensageiros de tudo o que lhes ponham no colo – duvidarem do
próprio desmentido, através de comentários que lhes salvassem a face. O mais
contundente dos comentários, com a colaboração da Companhia dos caminhos de
ferro, foi a apresentação de imagens de assaltos violentos da linha de
Sintra.
O autor destas linhas é preto de 4ª geração. Confunde-se com o público
porque as misturas já são muitas e principalmente porque o estatuto social
permite evitar os comboios. Mas nem por isso deixa de sentir a injustiça
imprópria de um Estado de Direito de, para salvar a face de uma burrada haja
quem, com responsabilidades nos media (no Estado e na CP), em vez de assumir
os erros e ultrapassá-los, aprofunde o disparate, como quem diz, se não
foste tu o criminoso, foi o teu primo anteontem.
Numa altura em que todos acusam todos em grupo, juízes, jornalistas,
advogados, políticos, ministério público, gestores de futebol,
administradores de empresas públicas ou privadas, há os que não têm maneira
de se defenderem … quando decidem ir à praia. E saem fotografados a fugir da
polícia com os seus haveres pendurados das mãos, com caras pretas que Deus
lhes deu, feitos ladrões de reality show não pago.
Vêm estas linhas tardias a propósito do que se passa na França do estado de
sítio, no rescaldo da revolta juvenil dos subúrbios. São terroristas? São
fundamentalistas? São traficantes? São estrangeiros? São islâmicos? São a 2ª
geração? Quem quer saber se todas as conjecturas racistas multiplicadas
pelos comentadores sem ética, histéricos de desorientação, não têm um mínimo
de aderência à realidade facilmente acessível? O fundamental é reduzir os
principais problemas políticos do nosso tempo a casos de polícia. Por vezes
com o pretexto cínico de antecipação política aos neo-nazis e aos fascistas,
como de facto aconteceu em França: Le Pen está praticamente desempregado,
pois as suas ideias xenófobas são as ideias adoptadas pelo candidato
presidencial mais popular.
Compreende-se a histeria: o envelhecimento radical da população europeia
torna a maioria dos eleitores muitos susceptíveis às ameaças e dependentes
dos seus alegados defensores. É preciso dizer aos mais velhos que a política
securitária é avançada pelos mesmos que lhes querem reduzir as reformas,
serviços de saúde e sociais. Porque querem reduzir as funções do Estado às
funções violentas, e para poderem alimentar a máquina de guerra que estimam
necessária para a luta de classes que estão a organizar precisam de muito
mais dinheiro: o dinheiro utilizado nos serviços do Estado Social, incluindo
os de apoio à terceira idade. Mas principalmente é preciso explicar se os
mais velhos não fizeram filhos com o intuito de beneficiarem sozinhos da
sociedade de consumo, está na hora de os adoptar, para que o sistema
político e económico não continue a ruir: precisamos de imigrantes aos
milhões, a que devemos aprender a tratar como filhos e seguros de vida. E
não como ameaças.
A nossa melhor defesa estratégica da civilização ocidental não será a de
armar policias, espiões, fundamentalistas sem moral e guerreiros sem
escrúpulos. De que servirá montar um esquema defensivo contra os
estrangeiros para defender o nosso modo de vida quando quem o quer destruir
são os nossos próprios governantes, para disso tirarem proveitos? A nossa
melhor estratégia é acolher os povos do mundo, no nosso território e noutros
territórios que se possam conquistar para a paz e o convívio modernizador,
como facilitadores de modernização para o bem-estar, tal qual o aprendemos a
fazer até agora, já que o que nos anunciam é o fim desses “privilégios”.
Quando os histéricos de serviço nos informam que a crescente produtividade
económica vais deixar de permitir a manutenção dos níveis de vida de que
temos usufruído, porque raio de carga de água é que lhes damos ouvidos? É
porque estão ao mesmo tempo a dizer-nos que são os estrangeiros (agora a
moda é dos chineses, e se eles são muitos …) que nos estão a explorar (?!?)
na nossa terra, a tirar-nos os empregos, e na sua própria terra (por
trabalharem quase de borla e sem sindicatos) por trabalharem como
imigrantes? Já tinha ouvido dizer que não há mercados sem guerras, ou numa
versão mais aristocrática, não há almoços grátis. Mas mobilizarem os velhos
europeus para a guerra, avisando-os que o fazem para virem a viver pior no
futuro, é preciso ter lata. Mas que compensa, isso tem compensado!
Em França, depois de todas as provocações dirigidas contra os jovens que
vivem humilhados desde que nascem e a assistir às humilhações quotidianas
reservadas aos seus pais, depois de todas as análises torpes, a verdade não
tem sido suficiente (como o foi em Espanha que derrubou Aznar por azniar)
para pôr em causa as políticas xenófobas. O inverso parece ser o sentido das
notícias que nos dão conta da manutenção da popularidade e dos poderes do
ministro de quem os jovens pediram a demissão. Nos bairros voltou a
normalidade da centena de carros incendiados por semana, que já se vivia
anteriormente à revolta. Tudo sob controlo, portanto. Basta saber a quem nos
referimos quando se fala em controlo: os jovens das periferias ou as
multidões de velhos votantes?
Voto útil
2005-11-02
Pela
primeira vez desde que se pode votar utilmente que estou inclinado a votar
útil.
Ouvi dizer de um político profissional que é um poeta. Não apenas um poeta,
mas um poeta de sucesso. Apresenta-se em formação de quadrado poética e
parece que assim, apesar do prémio de antiguidade num dos partidos do
regime, num dos agrupamentos responsáveis pelo estado a que isto chegou – o
estado de emergência -, teve jeito de se manter lúcido. A ponto de inspirar
o boneco “A mim ninguém me cala!”.
Atreveu-se a espreitar a vida cá fora, do lado dos cidadãos sem privilégios.
E percebeu que a democracia está sequestrada por instituições que deveriam
ensiná-la e desenvolvê-la, em vez de permitirem a privados que dela se
aproveitem. Diz em voz alta que falta alternância ao simulacro de
democracia, que é a que temos. Falta política, concerteza!
As sondagens mostram que tem razão. Os votantes sinalizam, como podem, que é
isso, sim. Não é só a mentalidade individualista ou acanhada ou ignorante
dos portugueses e das portuguesas: são estruturas políticas que nos reprimem
continua e profundamente, de que o exemplo mais óbvio se nos apresenta do
lado da justiça. Cujo estranho funcionamento, se bem analisado, por si só
seria revelador das causas mais profundas da nossa insatisfação colectiva: a
desadequação dos valores enunciados aos valores praticados.
E ainda aqui, na denúncia da hipocrisia, Manuel Alegre faz a diferença. Não
faz o seu auto-elogio, nem compatibiliza o incompatível. Não diz ser a
amizade o seu principal critério social para se incompatibilizar com os
ditos melhores amigos para lhes ganhar em manobras políticas, como aconteceu
com Salgado Zenha no passado. Não se refugia na vazia aura de competência
inquestionável e magistral, de quem usa a Universidade como palco político,
analisando com distância seráfica as monstruosidades por si próprio criadas,
como se fossem filhas ilegítimas.
O combate é enorme: de um lado todos os partidos, prometendo manter tudo
como está, cada um no seu lugar à espera do veridicto democrático para
reconfirmar – outra vez – os respectivos lugares no raking da política. Do
outro quem procura, no meio da confusão própria da actividade política
democrática, defender que a política não deve ficar-se no interior do
sacrosanto dos grupos que lutam pelos poderes partidários. Todos os
portugueses, especialmente aqueles que entendem ou poderão sem o saber, ou
sem o querer, ter alguma contribuição para dar, devem ser chamados a dá-la.
Por maior ou mais pequena que seja, Portugal precisa de todos e cada um dos
portugueses precisa de Portugal e das suas instituições. Estas não podem
ser, não devem continuar, informalmente privatizadas, como hoje estão. É
preciso desenvolver o espírito do serviço público não apenas nos
funcionários do Estado mas também nos cidadãos, para que as tentações
aberrantes da política suja possam ser perseguidas e derrotadas.
Ao contrário do que alguns dizem – aliás, por isso mesmo é que o dizem – a
democracia está em causa nestas eleições presidenciais. Não que a democracia
esteja em perigo. São os portuguesas e a vida pública que, obviamente, estão
em perigo. Perigo de depressão crónica e de perversidade radicalizada, caso
não se dê uma chicotada psicológica.
Os Portugueses
31 Outubro 2005
A igualdade dos cidadãos prometida pela modernidade democrática testa-se na
vida pública, no espaço público como diria Habermas. Testa-se em função das
possibilidades declarativas e das disponibilidades de produzir declarações.
Não apenas pela liberdade de expressão, mas também pela liberdade de
comunicação e pela abertura da sociedade às declarações fracturantes, pois
são essas que têm, ou podem ter significado.
A sociedade portuguesa, mesmo em alturas de necessidade de novas orientações
políticas, como é actualmente o caso, mantém-se desconfiada perante as
ideias, desagradada perante a diferença, incomodada pela conflitualidade,
sofrega perante os ilusionismos, sejam eles futebolísticos, autárquicos,
encenações de poder e de competência, sucessos materiais fáceis, na lotaria
ou na habilidade do desenrasca, produto mais português que Camões, Amália ou
o fado.
A política portuguesa é um ineludível exercício das classes dominantes que,
de quando em vez, organizam performances pimba para votações à moda do
festival da canção. A política do povo, alegadamente suberano, para inglês
ver, continua a ser o trabalho, como no tempo da outra senhora. Por isso os
textos de Eça de Queiroz mantém a actualidade apesar de serem muito mais que
centenários: trabalho continua a ser sinónimo de emprego ou política de
arranjismos partidários e de beneficência, sem que isso seja motivo de
estranheza, quanto mais de escândalo. O Estado tem sido, em Portugal, uma
forma de ludibriar os seus próprios beneficiários: veja-se o uso arbitrário
que se fazem das leis, profusas e confusas o suficiente para que cada um use
conforme melhor lhe convier, seja para daí tirar benefício seja para tirar
desforço dos pategos, como a elite expressa o seu desprezo pelo soberano. As
magistraturas, essas, ignaras e aristocráticas, ora dão ares de soberano
absoluto ora de proletários, conforme os interesses próprios a defender.
Nunca se sabe ao certo quais são os procedimentos legítimos, quem funciona
dentro da legalidade, não há advogado honesto que possa calcular as
hipóteses de sucesso de pleito judicial, pois isso depende de forças
obscuras da ignorância, da intriga, da impunidade irresponsável dos
responsáveis, dos conluios, dos preconceitos e também das conspirações. Por
isso se costuma dizer “Não vou em grupos” para se declarar honestidade e
transparência de procedimentos, que obviamente são raros em Portugal, país
onde a informalidade é um dado cultural (e também político) fonte de
inesgotável de efeitos surpresa para os estrangeiros mas também para os
próprios autóctones. É a experiência do que se costuma chamar organizações
muito bem desorganizadas, onde a hipócrisia e a fidelidade dão as mãos à
maior das flexibilidades de coluna vertebral dos agentes, em cima e em
baixo.
De repente, a corrupção torna-se um alvo dos discursos políticos, assim como
a responsabilidade dos partidos políticos e dos políticos eles próprios.
Talvez por isso os principais responsáveis pelo estado de coisas tenham
decido dar a cara nas próximas eleições presidenciais. Não querem ficar mal
na fotografia da história. Têm medo que algum candidato decida pôr o dedo na
ferida. E contam com o gosto português pela delicadeza no trato entre as
elites para que os ataques políticos contra os pais da Pátria, na sua
presença, sejam contraproducentes a quem ouse avançar e dizer aquilo que
circula no anedotário e nos emails da Internet.
Objectivamente, o maior deficit democrático em Portugal é o desprezo dos
políticos pelos que não fazem política dentro dos partidos, todos eles com
controlos internos fortes à circulação e legitimação de opinião – a
erradamente chamada disciplina –, e a impossibilidade de quem tenha ideias
ou experiências de vida para partilhar publicamente de aceder aos meios de
exposição pública adequados, sem serem colonizados partidariamente. As
excepções apenas confirmam a regra, e o volume da actividade cívica em
Portugal, comparada com o que se passa em Espanha ou noutros países
europeus, mostra que a legitimidade política das instituições de soberania
não pode apoiar-se na sociedade, mas na autoridade bruta e brutal – veja-se
o que se passa nos tribunais criminais e nas prisões, mas também com as
nomeações para cargos de confiança e com a entrega da culpa a um
funcionalismo público que aprendeu a viver desorientado pelo rotativismo e
pelo compadrio. Isso é também evidente pela necessidade de cada governo
mudar a cabeça da administração pública com pessoas da sua confiança, da
desconfiança da função pública em relação aos políticos – seus inimigos
públicos e patrões temporários, de quem dizem (pelas costas) cobras e
lagartos ao mesmo tempo que (pela frente) manifestam subserviência canina e
surripiam o que lhes calha na luva (tempo, dinheiro, equipamentos, poder,
etc.).
O Estado português não funciona bem porque não é avaliado (nem auto, nem
hetero, nem pela tutela, nem pelas inspecções, nem pelo público). Porque se
a avaliação funcionasse, se houvesse maior transparência, perder-se-ia a
flexibilidade do desenrasca, não seria mais precisas a cunha nem a troca de
favores, seriam precisas regras claras e que elas fossem cumpridas, o que
têm vindo a interessar a pouca gente. Nem em cima, nem os de baixo, que –
sabemos agora – têm vindo a beneficiar não de contrapartidas pelo seu
trabalho mas de privilégios, exactamente como nos tempo do antigo regime, em
que a troca se fazia em géneros.
Neste ambiente temos 20% de chefias, 15% de licenciados, 20% dos quais fora
do país a trabalhar, milhares de licenciados desempregados e muita gente
preocupada pelo facto de termos doutores a mais, em primeiro lugar a ordem
dos médicos. Nitidamente, como mostram os estudos sobre literacia, os
portugueses dão-se particularmente mal com pensamentos disciplinados e
claros, tanto na escola – onde o insucesso e o abandono persistem em fazer a
nossa vergonha universal – como no trabalho desqualificante (que por si só
produz iliteracia acrescida, por ser valorizada precisamente a ignorância
subserviente). Há um Portugal moderno a querer sair do velho Portugal
aristocrático e hipócrita. Na educação e na justiça, só é explicável o
insucesso de 30 anos de democracia pela opressão política dos respectivos
sectores, em contraste com outros sectores libertados da vida nacional.
Tal como com a falta de participação cívica, não é porque não existam
tendências fortes a favor da democracia: simplesmente isso – o que seja a
democracia – ainda se discute menos do que outros assuntos. Em particular
nas escolas e na justiça. O horror dos portugueses à política, que entendem
como um palco de vigaristas, de onde não são capazes de distinguir honestos
e bandidos, muito menos acreditam na ciência dos magistrados, é proverbial e
deve ser explicado não apenas por via ancestral, de atraso histórico que
jamais foi o nosso problema, mas pelo carácter amistoso e submisso do povo.
Afinal há muito mundo por onde fazer vingar a vida, como todos na diáspora e
nas antigas colónias bem sabem, para o bem e para o mal.
A história da revolução de Abril talvez nos dê uma sugestão da razão
política de ser desta mentalidade aquietada. Tudo acabou quando se revelou a
possibilidade de haver uma guerra civil, entre o norte e o sul. A enorme
diversidade dos povos portugueses e o seu nacionalismo quase milenar foram
caldeados numa tolerância que nos caracteriza, de afeições contrariadas –
como no fado – de saudades do que não pudemos ser, para continuarmos juntos.
A mobilidade dos votos entre partidos e entre autárquicas, presidenciais e
legislativas também mostra como o povo português gosta de ser caudilhista e
mesmo vernáculo nos concelhos (ou à porta dos tribunais) de quem não espera
outra coisa que não sejam favores, e gosta de ser sensato e conciliador a
nível nacional. Quem estiver em condições de pedir maioria absoluta
obtém-na.
Os portugueses jogam na política como quem joga na lotaria. E os políticos
portugueses aprenderam a fazer cálculos de probabilidades para dividirem
entre si os negócios do Estado. Será que isto um dia vai terminar? É nessa
perpectiva que se podem observar as próximas eleições presidenciais: estão
todos em jogo. Os partidos, a alma de esquerda e sofredora (ou mentirosa?)
do PS, mais uma vez despeitada – curiosamente sempre por Mário Soares – e
até algumas boas vontades avulsas que procurarão mobilizar os eleitores. Mas
também está em jogo a disposição que os Portugueses vão escolher adoptar
para si próprios em função das campanhas e dos resultados eleitorais.
O povo prepara-se para exercer os seus raros poderes de soberania. Será que
vai decidir acolher o D.Sebastião que voltou do nevoeiro, ou vai preferir um
Rei já testado? Se aceitar jogar no ilusionismo, mais uma vez, a classe
dominante ficará em casa, tranquila. Mas pode ser que invente uma saída
crítica para o regime, ainda que não faltem ilusionistas a cobrir tal saída.
Reformas, Saúde e Europa Fortaleza: a mesma luta!
6 Outubro 2005
Não é a primeira vez que me
assalta esta sensação. Parece evidente a necessidade de se dizer qualquer
coisa que, todavia, não é dita, como que a desafiar-me para que a diga eu.
Mas que efeito pode ter a afirmação do óbvio? Para mais o óbvio que se vai
redizer, ainda que em novas circunstâncias?
O óbvio é que estas políticas
que nos são apresentadas de necessária retracção dos direitos de reforma e
de acesso à saúde adquiridos a pretexto de que o Estado não consegue
recursos suficientes são uma opção política de fundo e de longo prazo. E
essa opção é a de fazer o progresso coincidir com piores condições de vida
para aqueles que, por razões das circunstâncias ou da idade, se vejam
fragilizados.
Compreendo aqueles que, como
os juvenis, preferem fazer-se de fortes a compreender as fraquezas humanas.
Mas já tenho mais dificuldade em compreender que essa postura, a que se
costuma chamar "pela positiva", se tenha tornada não apenas a politicamente
correcta mas praticamente a única credível e credibilizada: como se costuma
dizer, toda a política, à esquerda e à direita, se resumirá à economia: é
preciso estimulá-la psicologicamente ?!? E depois admiram-se de faltar a
ética? E acham mesmo que isso é uma questão da falta de seriedade dos
políticos corruptos? E porque é que os políticos sérios andam a reboque dos
esquemas dos corruptos?
O óbvio que é preciso dizer o
que já foi dito pelo Partido Socialista há poucos anos: a segurança social –
disseram então, se não sonhei – tinha um programa financeiro sólido para
décadas, mesmo depois dos saques feitos por governos anteriores para
satisfazer as necessidades/debilidades orçamentais. Será que tais décadas se
acabaram em poucos anos e eu estive a hibernar?
O óbvio já foi dito pelo
Agostinho da Silva e também pela ONU. A União Europeia precisa de milhões de
imigrantes e de organizar o desenvolvimento dos países vizinhos, se não
quiser ser invadida à força pelos mais afoitos entre os que vivem nos países
limítrofes (que com a facilidade de comunicações, são cada vez mais
numerosos). Serão esses imigrantes, se os não continuarem a matar e a
escorraçar nas fronteiras da União Europeia, que poderão vir a pagar as
reformas aos europeus da minha geração, que vai agora pelos cinquenta anos.
Se não forem eles, serão os nossos filhos, em menor número que nós e
educados a fugir às responsabilidades de solidariedade por nós próprios? Que
respeito lhes mereceremos nós que lhes dificultamos ao extremo as
possibilidades de se fixarem em perspectivas de actividade profissional
continuada e os instabilizamos aos máximo?
A Europa fortaleza é a parte
militar da política de aniquilação das políticas públicas de promoção do
bem-estar social, de que a quebra das reformas e das garantias de acesso à
saúde são a parte financeira. Para que servem os nossos países terem as
finanças públicas mais elegantes e, portanto, menos capazes de encobrir nas
suas pregas os corruptos, se com isso se vai criar mau ambiente interno,
pelo excesso de velhos e pela miséria inelutável em que viverão – como já
vivem, e lutas sociais nas fronteiras, seja através da utilização hipócrita
das tradições de desrespeito pelos Direitos Humanos dos países limitrofes
tornados aliados para organizar a guerra fora da União Europeia contra os
potenciais imigrantes, seja através da defesa das fronteiras manu
militare, quando o resto falha, contra quem deseja partilhar o nosso
modo de viver? E não serão os seriamente corruptos (politicamente,
entenda-se) precisamente aqueles que se preocupam mais com a saúde da
economia do que com a saúde presente e futura dos cidadãos e com o bem-estar
e a pacificação do mundo? Não foi essa primeira filosofia que desvalorizou o
crime económico e político ao ponto de valorizar os resultados económicos
obtidos independentemente de "filosofias" ideológicas ou éticas? Não
continuam os critérios "práticos" a prevalecer na mente de muita gente em
Portugal - e no Mundo - sem outras consideração, fazendo segredo dos
métodos? Não são esses os critérios que dominam a política actual?
A evidência da banalização
dos fenómenos de corrupção política não deve ser combatida. O que deve ser
combatido é a estrutura social e política que nos conduziu a este estado de
coisas. A luta contra a corrupção generalizada é um combate político, não é
uma tarefa do Procurador Geral da República. Um combate por outros critérios
de organização política e por outras pessoas, com outras convicções, para
evitar o apodrecimento da democracia. O voto maioritário em personagens
mafiosos é estrutural e reclama reformas estruturais para dominar a
bandidagem.
E é uma política europeia e
global, não apenas nacional: façam-se estudos sobre as quantidades de
imigrantes e as respectivas qualificações de que a Europa precisa para
manter a perspectiva de bem-estar. Eduquemos os nossos filhos a serem
solidários com os mais fragilizados, para que um dia aceitem dar-nos
condições de vida digna na velhice, quando ficarmos à sua mercê, sem
condições físicas e mentais para trabalhar mas ainda muito novos para morrer
de vergonha do que deixámos que fizessem em nosso nome.
Movimento para a IV República
5 de Setembro de 2005
Passou a ser lugar comum a noção de estarmos a viver uma crise de regime em
Portugal. Todavia, não se vislumbram sinais de regeneração política, o que
não pode deixar de estar nos fundamentos da acelerada ciclicidade das
desistências e dos abandonos políticos, ao mais alto nível, e a persistência
nos cargos de mais baixo nível, mais difíceis de escrutinar publicamente. A
arrogância de quem se imagina capaz de, por si só, com a clique de amigos e
com os apoios dos boys for the jobs, impor aos portugueses negócios
inexplicados e, provavelmente inexplicáveis, alterna com a aparente
impotência do Estado, também ela pouco transparente e muito selectiva.
A instabilidade política é, obviamente, induzida pela profunda
corruptabilidade do regime. Apesar da avalancha de denúncias dos últimos
anos, evidentemente, nada de essencial tem sido possível melhorar. Os
partidos já sentiram necessidade de limpar as suas hostes, com evidentes
dificuldades e com resultados nada claros. O sentimento de impotência não
pode substituir a confiança na democracia. O sentimento de impunidade e os
queixumes para saco roto – ou, pior, a perseguição dos denunciantes –
corroem o orgulho que temos por Portugal, a vontade de sermos melhores
portugueses, as espectativas de vidas melhores para os nossos pais e para os
nossos filhos.
A alternância democrática foi capturada pelos arranjos políticos implícitos
entre duas facções que parecem degladiar-se quando de facto cooperam na
manutenção do estado das coisas. Sociais democratas para beneficiarem
directamente dos fundos da coesão social da União Europeia, revelam-se, à
direita e à esquerda, neo-liberais na distribuição desses benefícios no
interior, estando Portugal com taxas de pobreza e taxas de desigualdade
social das mais altas, analfabetismo crónico e iliteracia desgraçadamente
única no espaço europeu, ineficiência dos processos de ensino e impedimentos
organizados – e injustos – ao desenvolvimento educativo e profissional dos
jovens, quando as taxas de desemprego de licenciados são enormes, num país
com excassez de pessoas qualificadas. O trabalho, pela pobreza dos sistemas
produtivos e da gestão de recursos humanos, ajuda a desqualificar uma
mão-de-obra já de si desqualificada, num ciclo de enterra moral e cívica das
potencialidades dos portugueses, que continuam a ser mais bem sucedidos lá
fora do que reconhecidos no seu próprio país, para realização de uma
estafada, miserável mas persistente política de exploração das vantagens
competitivas do preço baixo do factor trabalho no nosso País.
Os portugueses têm razões para não acreditarem em políticos que se comportam
como aristocratas ou como contabilistas. Até porque já lhes deram todos os
créditos possíveis e imaginários, e vemos agora no que resultou. Não está em
causa a sinceridade ou a perversidade com que sempre são desenhadas
políticas que mexem com interesses. O que está em causa é a necessidade
inadiável de mudar de rumo, democraticamente, o que manifestamente tarda e
não parece possível com o actual regime. Há pois que ir mais fundo na
exploração das potencialidades democráticas e aprender com outros povos mais
experientes democraticamente como se podem ultrapassar politicamente crises
de nó cego como aquelas que estamos a viver.
Procura-se quem represente e suporte a vontade dos portugueses de se
mobilizarem democraticamente para as tarefas de produção de uma nova
estratégia capaz de colocar o país com capacidades proactivas e inovadoras
no mundo global em que estamos inseridos, em benefício dos portugueses e do
bem estar para quem viva em Portugal. Essa mobilização não pode deixar de
ser radicalmente crítica em relação à intolerável tolerância da cunha e da
prateleira, do uso dos dinheiros públicos para distribuir pelos
correlionários e pelos arrivistas colectores de financiamentos políticos, do
desleixo na colecta de impostos e de organização da segurança social – que
se anuncia velhacamente falida aos que dela esperavam que cumprisse o
contrato que, entretanto, benefia (escandalosamente) quem nada deveria poder
esperar desse seguro social dos trabalhadores portugueses.
Pode caber à Presidência da República abrir debates e dar voz à vontade e às
iniciativas de todos os portugueses, e não apenas aqueles que prometem a
árvore das patacas ou agricultura biológica das revistas cor-de-rosa. Pode
caber ao Presidente da Republica servir a autonomia das instituições
políticas, a consonância dos seus comportamentos relativamente à vontade dos
Portugueses e não aceitar quaisquer interferências do Sr. Cunha, sejam elas
veiculadas por amigalhaços ou por partidos inteiros. A justiça – aquela que
é produzida pelas instituições judiciais e a outra, mais difusa, gerada pelo
ambiente político e pelas políticas concretas quotidianas – deve ser
sistematicamente escrutinada e não apenas para efeitos mediáticos ou para
entreter os tele-espectadores. Não faz nenhum sentido entregar a resolução
dos problemas estruturais da justiça portuguesa às corporações e às
personalidades que construiram e beneficiaram – e continuam a beneficiar –
da injustiça que campeia descarada e impunemente. Não é aceitável que bons
desempenhos profissionais sejam postos em causa por um sistema de profunda
interferência política na administração do Estado, que arreda toda a
possibilidade de demonstrações de mérito e, para isso mesmo, faz circular o
pessoal de confiança, em alta velocidade, por todos os milhares de lugares
disponíveis, tornando impossível qualquer tipo de avaliação de desempenho
administrativo e político.
Pode caber ao Presidente da República trazer os portugueses a construirem o
Portugal do século XXI, já que o que também está em causa, no magma da
globalização e das políticas europeias, é saber o que os portugueses querem
ser no futuro: os herdeiros de uma língua e cultura minoritária e folclórica
para vender aos turistas da terceira idade? Ou um povo que, mais uma vez,
será capaz de dar novos mundos ao mundo, de encontrar caminhos novos para a
justiça social, nos quadros financeiros e demográficos que são conhecidos
mas em quadros políticos e sociais que temos oportunidade de, com a nossa
vontade colectiva, encontrar democraticamente. Para atingir esses objectivos
é indispensável começarmos de imediato a alterar comportamentos,
nomeadamente a sermos exigentes connosco próprios e não aceitarmos mais
entregar os pontos a quem nos melhor garante que não nos incomodará – até
porque a experiência mostra como nos enganamos frequentemente nesse juízo.
Temos que exigir de nós mesmos, e em primeiro lugar às instituições, que as
denúncias e as queixas que chegam à administração serão tratadas em tempo
útil, conforme a lei, e de modo empenhado e sério, em vez do velho sacudir
de água do capote. Para que serve votar num candidato a Presidente da
República com responsabilidades na estruturação de um regime que,
manifestamente, caiu da cadeira, sem lhe pedir uma avaliação específica e
criteriosa do que nos trouxe a este beco? Para assistirmos ao fecho de mais
saídas para o regime? Para adiarmos para amanhã o que se pode começar a
fazer hoje?
Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os que lutam
por sobreviver, aqueles a quem não são reconhecidos os seus direitos e que
confrontam com os esquemas kafkianos montados pelo tráfico de influências e
pela corrupção, os que são humilhados por querem denunciar situações
ilícitas são igualmente responsáveis, se comparados com aqueles que recebem
reformas ilegítimas para que possam continuar a acumular benesses e manterem
a culpa solteira? Nestes trinta e um anos de democracia, houve quem desse
tudo, incluindo o bem estar pessoal e das respectivas famílias, para
melhorar Portugal e também houve os que só pensaram em si mesmo, nos seus
pregaminhos e nas conjuras que fossem necessárias para não terem obstáculos
à afirmação das suas irresponsáveis convicções, ao ponto de o povo confundir
os bem intencionados e os mal intencionados de entre os vencedores destas
competições organizadas pelo Sr. Cunha.
Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os
responsáveis não podem continuar irresponsáveis.
Esquerda dos marretas
3 Agosto 2005
Ao mesmo tempo que os comentadores
mediáticos iam notando a esclerose da República portuguesa, dois dos
pais fundadores do “monstro” voltavam às origens: Freitas do Amaral
“exactamente ao centro, como a (sua) tradição democrata-cristã” e Mário
Soares à “aliança das esquerdas”. Quanto mais as técnica e ciência
positivas nos distanciam (nas escolas e nas empresas) dos nossos
parceiros europeus, mais a ideologia se volta a revelar importante. Pelo
menos é isso que transparece do sucesso da renovada vida política destes
dois dinossáurios dos dinossáurios, como fizeram questão de lembrar os
autarcas incomodados com a luta contra os “desenrascados” do poder local
democrático – para alguns uma das principais conquistas do 25 de Abril.
Todos compreendemos o desespero paternal de
quem vê descambar a sua própria criatura. Todos podemos respeitar a
entrega cívica com estes senadores, sem interesse pessoal que o
explique, se disponibilizam para servir o Estado e os portugueses. Mas
não é legítima e necessária a pergunta: não há mais ninguém capaz de
cumprir o rotativismo democrático efectivo que qualquer democracia
precisa? De que modo é que as ideias e ideais que estruturaram
ideologicamente a vida nacional nos anos 70 e 80 provaram ser válidas?
Que ideias e ideais são precisos actualmente?
Das três respostas necessárias, apenas a
primeira é consensual: NÃO. O rotativismo entre PSD e PS debate-se
actualmente com a necessidade de expurgar a “má moeda”, tarefa que a
direcção do PSD está a ensaiar com as maiores dificuldades – os
resultados das eleições autárquicas revelarão melhor o sentido
democrático dos portugueses na contabilidade entre candidatos oficiais e
locais dos partidos do poder onde este tipo de lutas se tornou público e
notório – e que o PS está a sentir nas contradições da governação que
acabaram com o estado de graça num instante, ao contrário do que
aconteceu com Guterres.
A última resposta é a que mais interessa
para o futuro e que falta de todo elaborar, quando os partidos se
dividem em guerras internas que impedem os respectivos grupos de estudos
de funcionar. Numa situação em que as academias, que poderiam ser
chamadas a cumprir aqui um papel relevante, estão mergulhadas numa
letargia apenas interrompida pelo fulgor mediático de um ou outro
“cientista sem ideologia” por conta própria. Para construir uma resposta
não basta uma mente brilhante, um D.Sabastião – que felizmente também
não se tem perfilado. É preciso trabalho institucionalizado e plural,
coisa que, precisamente, mais falta faz em Portugal. Não só porque o
nosso espírito é avesso à organização, mas principalmente porque nos
sentimos impotentes (e até amedrontados) face a organizações (corruptas,
ignorantes e arrogantes) muito bem organizadas, sob a vigilância de um
Estado sem Direito à vista.
Resta-nos, pois, elaborar sobre uma resposta
possível à segunda questão, que não sendo a mais decisiva, condiciona
grandemente o nosso futuro, antes e depois de haver uma resposta
tranquilizadora à crise moral actual: de que somos feitos nós mesmos, os
democratas de Abril em 2005?
Somos feitos de marretas, isto é, de
descontentes crónicos com as “conquistas” de Abril que fizeram uma
classe de políticos inenarrável na sua boçalidade e despudor
materialista, digamos assim. Nesse sentido somos todos de esquerda,
contra o poder do dia, mesmo quando o poder passa por nós – como ficou
bem evidente no consulado de Cavaco Silva, a versão moderna mais próxima
do D. Sebastião que aturámos, sem desprimor para todas as outras. Este
sentimento é geral: o orçamento não é “nosso” mas “deles”, assim como as
obras, a administração, as responsabilidades. Para “nós” reservamo-nos o
ripanço de observadores telenoveleiros das crónicas jornalísticas,
quantas vezes “poéticas” e tão desfocadas das realidades quanto a
propaganda, conforme descrição já célebre de José Gil. Por isso, em
Portugal, as aparências continuam a ser importantes. As realidades não
interessam a ninguém. Desse modo é possível escolher as partes de umas e
de outras que convém em cada momento, pois, como disse o poeta, “a
mentira para ser eficaz tem que ter uma ponta de verdade”. À mesa das
negociações, seja ela a Concertação Social ou da Liga de Clubes, além do
pavoneamento do poder e das ameaças correspondentes, pouco ou nada se
consegue. Até porque mesmo quando sai alguma decisão, logo as
“dificuldades técnicas” se lhe sobrepõem.
A partidarização da administração pública
fez-se, e continua a fazer-se, com o pretexto das incapacidades e
incompetências dos funcionários, como se fossem eles que têm ditado as
políticas educativas, de recrutamento e de formação com que foram
produzidos. Competentes são os fieis, apesar do Estado português ser
formalmente laico. Mas praticamente toda a política se faz à esquerda:
mesmo no CDS há quem se sinta de esquerda para poder conquistar votos ao
PSD – partido social democrata. Com desprezo pela administração pública?
Quando o Estado Social – ainda que embrionário – tem sido uma das
bandeiras mais fortes e bem conseguidas do regime?
Diz-se que Freitas do Amaral “virou” à
esquerda depois de ter tido a experiência de um ano à frente da
Assembleia Geral das Nações Unidas e que Mário Soares se tornou
esquerdista depois do mandato que fez em Bruxelas. Quer dizer:
mergulhados na sociedade portuguesa não se aperceberam quanto esta da
esquerda mais radical (da boca para fora) se passou para a direita
neo-liberal (da boca para dentro, a ter em conta os amargos de boca).
Uma vez no exterior, em contacto com o mundo democrático que – apesar de
tudo – vive a pluralidade das convicções, vive a política como ideologia
que em Portugal tem vindo a ser mais do recalcada – principalmente nos
partidos – reprimida, os nossos mais velhos, manifestamente preocupados,
trouxeram-nos a mensagem: reviva a política. Mas com que nível de
cinismo e hipocrisia, senhores marretas?
Revisitar Tocqueville parece aconselhável,
na parte em que ele se queixava dos modelos sociais franceses da
primeira metade do século XIX, os novos senhores pós-aristocráticos que
se dedicam em exclusividade a aumentar os seus proventos económicos,
ignorando as tradicionais recomendações que separavam actividades
honradas das outras e ignorando a política, a não ser na estrita medida
em que ela pode interferir com os respectivos interesses. Os dois
séculos de diferença não desactualizaram a relevância do reparo. O que
nos faz pensar poder ser útil reflectir sobre a tese política principal
do aristocrata e alto funcionário, a saber que os valores da liberdade e
da igualdade, em determinadas circunstâncias, podem ser contraditórios.
É que no caso português, dadas as nossas circunstâncias de “atraso” ou
resistência à modernidade, a revolução democrática fez-se pela liberdade
primeiro, pela igualdade depois. Parece-me certo – embora admita ser
controverso – que sem a revolução propriamente dita (e a sua
normalização de 25 de Novembro de 1975) a liberdade que temos vivido
seria outra. Certo certo é que sofremos por ser o país da Comunidade
Europeia mais desigual, talvez por reacção à “vacina” do igualitarismo
revolucionário “real” à portuguesa (também ele eivado de hipocrisia,
como todos nós), e nem por isso a economia dá sinais de
sustentabilidade. Ao contrário. É precisamente por falta de
racionalidade, avaliação e responsabilização – de que a sucessão de
governantes cada vez mais desorientados é demonstração cabal –, é
resultado da resistência aos princípios democráticos de igualdade – a
começar pelos que se referem ao Estado de Direito e à Educação para
todos – o nosso entupimento político actual, a que já chamaram “forças
de bloqueio”, “pântano”, “apelo de Bruxelas”, “obsessão do deficit” sem
nunca nomear o toiro pelo nome. Passamos a vida, cobarde, na cernelha.
O m(in)istério da falta de autoridade do
Estado
2005-07-04
Recuo em forma de avanço é a formação mais desordenada que se pode imaginar.
Quase triplica o orçamento rectificado com que o ministério da administração
interna recua perante o descontentamento generalizado das polícias. O que
poderia ser uma medida de bom senso, face ao desnorte do governo anterior
nesta área e às evidências do desleixo no investimento que dignificasse a
profissão e os profissionais, enquanto servidores da segurança dos cidadãos
e já não caceteiros ao serviço do governo, emerge como o seu oposto: mais um
sinal da falta de autoridade do Estado.
Depois de cem dias em que praticamente o experimentado ministro não acertou
uma, estava a precisar de se redimir. Depois de agressivas manifestações de
descontentamento dos polícias que se lhe dirigiram pessoalmente, como não
entender o anúncio do prémio orçamental como um recuo? Daí não virá mal ao
mundo, quando um ministro dá a mão à palmatória e reconhece o fundo dos
argumentos dos polícias, mesmo quando a forma não pode ser reconhecida - e
não o foi.
A questão, porém, é que ninguém pode ignorar como a inventona de "arrastão"
na praia Carcavelos poderá ter servido para convencer o governo a ceder na
austeridade para auxiliar o seu ministro, praticamente náufrago dos seus
próprios subordinados. E cabe ao governo e ao ministro esclarecer tim-tim
por tim-tim uma versão dos eventos que não comprometa a autoridade do
Estado.
Os factos são que a polícia, a propósito do dia 10 de Junho em Carcavelos,
emitiu duas posições: uma primeira, antes dos acontecimentos ou praticamente
ao mesmo tempo que eles ocorriam, em que reconhecia estar-se em presença de
um método de ataque aos banhistas - o brasileiro "arrastão" - perpetrado por
500 pessoas. Outra posição, mais tarde e perante o alarme social gerado, foi
a de não reconhecer qualquer organização ou método específico, nem sequer
roubos ou violência no areal, a não ser a que a própria polícia desenvolveu
e espalhou.
Estando nós a falar da mesma organização policial, e tendo em conta a
repercussões mediáticas e políticas do que se seguiram - em particular o
próprio anúncio de um aumento significativo do orçamento das forças
policiais - é indispensável que os portugueses saibam quem foi (e é)
responsável pela produção de uma e de outra das posições contraditórias que
vieram a público. Se isso não for cabalmente esclarecido, politicamente a
responsabilidade deverá ser assacada ao titular da pasta da administração
interna, o mesmo que anunciou o acréscimo de orçamento que anteriormente não
estava previsto e que, nesse caso, seria, politicamente, um infractor
beneficiado. Quiçá, o organizador da chantagem política contra o seu próprio
governo.
A autoridade do Estado está em crise. Não tanto porque os ataques que lhe
são desferidos do exterior sejam fortes, ou porque a reacção penal seja
pouco intimidatória. Mas antes por responsabilidade dos próprios agentes
mais qualificados do Estado: os tribunais que demoram eternidades para
tomarem decisões, necessariamente injustas nessas condições; os ministros
que desprezam visceralmente os servidores do Estado mas lhes admitem golpes
baixos e pressões ilegítimas, desde que elas sejam eficazes para os tolher
pessoalmente nos seus lugares; políticas que dependem de conjunturas
conspirativas, quando Portugal precisa de uma visão de futuro.
Apesar de compreender que devem existir fortes necessidades de investimento
nas polícias, não compreendo que esses investimentos sejam feitos contra
vontade do governo para salvar um ministro em dificuldades face ao ímpeto
político de acontecimentos mediáticos mais ou menos maquiavélicos. Se um
ministro, como parece ser o caso, não é capaz de fazer respeitar a
autoridade do Estado, ainda por cima no sector da segurança – cujo objecto
primordial é a própria segurança - não será atirando dinheiro aos problemas
que Portugal os vê resolvidos. Ainda que desse modo o ministro possa escapar
desta situação politicamente complicada.
É, pois, o pior sinal de recuo que poderíamos esperar por parte do governo,
na altura em que se discute precisamente sobre a sua capacidade para
resistir na defesa do programa de governação.
A crise da banca
2005-06-22
Dadas as circunstâncias de colapso anunciado do Estado português, e a
evidência das responsabilidades políticas das classes dominantes em
democracia, nomeadamente os beneficiários do sector de obras públicas e do
sector financeiro, e dos respectivos consultores e governos, no uso dos
incentivos à modernização, desde 1986 – antes disso era a instabilidade
política e o FMI – as campanhas políticas de recuperação de imagem e de
abandono das práticas até aqui consideradas democráticas emergem.
Uma das vertentes vai no sentido de dizer que o nosso atraso actual se deve
às nacionalizações de 1975. Parece óbvio. Mas de facto merece ser um pouco
melhor explicado, para não parecermos os governos pós-coloniais que se
queixam do colonialismo para justificar as suas tendências cleptocráticas
actuais. Qualquer explicação deve passar por saber os custos que o Estado
encaixou – nomeadamente em reformas antecipadas e outras indemnizações – e
pela apreciação dos resultados (parece que temos o sector financeiro dos
mais modernos do mundo.
Outra vertente é menos ideológica e mais pragmática: o velho dividir para
reinar. No caso, denegrir para prevenir reacções populares. Refiro-me à
campanha de xenofobia e de promoção do racismo levada a cabo vergonhosamente
pela maior parte da comunicação social no fim desta Primavera, através da
inventona de um arrastão de praia. De facto, como se prova, a concentração
da comunicação social nas mãos de pessoas e organizações comprometidas com o
status quo, numa altura de necessidade de mudança radical, só pode
ser perniciosa. Iremos, com certeza, assistir a mais episódios vergonhosos
daqui para a frente: onde falte informação há-de sobrar imaginação
“objectiva”, pois não!
Uma terceira vertente é o apelo ao colaboracionismo de classes, grupos
profissionais, sindicatos, organizações de toda a espécie, cuja actividade
normal irá ser estigmatizada – como se fossem eles os responsáveis pelas
políticas “consensuais” desenvolvidas consistentemente durante os últimos
vinte anos.
Uma quarta vertente será a manipulação, para efeitos domésticos, da crise
europeia das políticas neo-liberais, que tudo indica se irá agudizar.
O mistério da produtividade e/imigrante
2005-05-31
Os portugueses são conhecidos por serem pouco produtivos no solo pátrio mas
dos mais produtivos em solo estrangeiro. O que é que em Portugal os torna a
eles, como aos imigrantes que nos chegam, menos produtivos?
Para um país à procura de novos níveis de produtividade, que nos escapam,
este debate é decisivo e deve ser organizado, sem a urgência dos dividendos
partidários. Os trabalhadores, os profissionais, os empresários, os
dirigentes devem ter ideias claras e sintonizadas a este respeito, sem o que
não saberão, ao mesmo tempo, defender os seus interesses e o interesse
nacional.
A contribuição que aqui deixo refere-se ao tema evocado misteriosamente como
“a mentalidade”.
A mentalidade de um povo é fixada não pelas vontades individuais – se assim
fosse, não seria explicável a produtividade fora da pátria – mas sim pelo
tipo de relacionamento típico entre as pessoas. Se há característica notória
é a incapacidade de organização portuguesa, ou melhor, a dependência radical
de uma vontade externa condutora da acção colectiva. Não sei porquê, tem-se
chamado a isso “individualismo”, quando é submissão. Mesmo durante a
revolução de Abril, um estudo sociológico mostrou como a auto-organização da
produção dependia de homens que, contra sua vontade, eram mantidos na
posição de caudilhos e pedra de toque de pequenas estruturas sociais.
Hoje em dia temos a “sociedade civil” mais inerte de toda a União Europeia,
porque as iniciativas cívicas se deixam deslumbrar pelos controleiros ou
pelos guias de entidades politicas e confessionais vertiginosamente
hierarquizadas, a ponto de o debate de ideias ser praticamente irrelevante
nestes meios. Em Portugal sente-se como repugnante que alguém, sem interesse
aparente, tome uma posição. O ódio aos políticos vem daí: alguma coisa de
muito tangível eles devem estar a beneficiar, pensa-se. Rapidamente emergem
processos de intenção (em geral, em surdina) que isolam a ideia (tornada
perversa), impedem qualquer debate com significado e soltam aos pescadores
de águas turvas.
Nas organizações e nas empresas, como nas escolas, desconfia-se de quem
tenha opinião (“mau feitio”) e reprimem-se tais práticas com o duplo
pretexto de que haver o risco de ideias novas aumentarem a carga de trabalho
e alterarem as rotinas ou de porem em causa a liderança. Os alunos são
convidados a copiar os professores acriticamente, e depois não tem ideias
próprias para desenvolver e até acham que as suas ideias – que possam
espontaneamente emergir – devem ser reprimidas, por serem incómodas e
inconvenientes para os colegas e professores. Os professores devem obedecer
radicalmente aos programas e às pedagogias – modernas ou tradicionais – sem
se responsabilizarem pelas aprendizagens realmente vividas pelos seus
alunos. Os trabalhadores são estimulados a resistirem ao trabalho, como se
tivesse que ser uma coisa externa e dolorosa, até porque a principal
política de “competição” tem sido os salários baixos. Dos quadros exige-se
fidelidade às chefias em vez de competência, até porque esta última é
sentida, não raramente, como uma ameaça às gerações mais velhas, ainda pior
formadas que os mais novos.
Um Portugal diferente terá que ir ao psicólogo e responsabilizar-se
solidariamente para romper o ciclo repressivo das potencialidades dos
portugueses, que suporta a economia depressiva que temos vindo a
desenvolver. Apesar das teorias do “oásis” ou do Portugal na moda, resta-nos
a tanga do fio dental. O que duvido é que tenhamos tempo e recursos para
esperar que a mesma classe dirigente que nos trouxe ao beco sem saída faça a
sua terapia, até porque uma das virtualidades da democracia é a
possibilidade que nos oferece de mudar de classe dirigente sem violência.
O prestígio da classe política
2005-05-25
Como por vezes acontece, o povo tem razão. O desprestígio da classe política
portuguesa é merecido, como ficou demonstrado à saciedade pelos episódios em
volta das promessas eleitorais e o deficit público. Uns e outros, sabendo da
situação, prometeram o que não tinham intenção de cumprir e livraram-se das
promessas eleitorais uma vez eleitos.
É certo que o povo foi formado a desconfiar dos seus governantes. E
concerteza não foi por acaso que se cunhou o verbo “governar-se”. Na senda
da política de saque pentasecular, os nossos representantes mantêm-se
impotentes face ao poder de quem se governa. Impotentes mas reverentes:
jamais Cavaco Silva explicou ao povo o seu tabu, nem Guterres o seu pântano,
Durão Barroso os acordos com o Presidente, nem este nos explicou porque é
que o sistema judicial se mantém opaco e disfuncional. Os dinossauros
acumulam poderes, ao mesmo tempo que a corrupção abafa qualquer iniciativa
sem tutela, e ainda se queixam da falta de “espírito” empresarial!
Os governantes também estão formados a desconfiar do povo, que sabem não
lhes ter respeito, a não ser quando lhe fazem lembrar dos tempos sem
democracia, sem votos.
A volatilidade deste relacionamento entre governantes e governados, expressa
positivamente na fragilidade e perversão política dos movimentos
associativos em Portugal (por contraste com todos os outros países da
União), reflecte-se na instabilidade política, para cujo combate os votantes
têm contribuído mais do que os eleitos.
Manifestamente, a doença chegou ao tutano, melhor dito ao “tutu”. Como todos
sabem, casa em que não há pão … vão ser precisos princípios democráticos de
gestão das crises materiais e emocionais que estão a chegar. O governo já
anunciou medidas para conter o deficit público. Os economistas instam-no a
proceder a reformas estruturais, que têm sido evitadas faz bué anos. Mas os
portugueses descrêem do que mais parece uma reposição de um mau filme
português.
É hora de chamar à responsabilidade a classe política que nos trouxe a este
beco. É que também há quem nunca tenha entrado para a política por causa do
mau ambiente, da subserviência, dos monstros, dos pântanos, das tangas, de
que é fundamentalmente feita a política portuguesa. Para ser completamente
sincero, muitos dos assuntos em que acabei por mexer por via da actividade
cívica muito limitada que tenho desenvolvido, fazem-me ter nojo crescente de
algumas pessoas mas principalmente das práticas de arregimentação partidária
em vigor neste país.
Será por razões de fanatismo partidário ou ideológico, por sectarismo, por
compadrio militante, para camuflar as misérias do financiamento partidário,
para explorar a economia paralela, por sentido de competição? Não sei, mas
que é moda do jet set em Portugal ser-se reverente com os poderosos,
amesquinhador com os outros e compassivo com os confrades, isso é.
Caros concidadãos,
Aprender a aprender não custa tanto dinheiro como tirar um certificado
escolar. Mas ajuda muito a produzir as dinâmicas necessárias à recriação de
Portugal como país estruturalmente europeu, que se sabe hoje, sem dúvidas,
não saber ser, apesar de termos “estado na moda” da demagogia por diversas
ocasiões. Aprender a democracia custa apenas a subscrição necessária para
fazer um sócio de uma qualquer associação cívica e, mais difícil, a assunção
de responsabilidades e protagonismos que se vieram a mostrar necessários,
sem receios e com liberdade. É preciso reformar, sem pensões, esta classe
política que tem monopolizado o poder em Portugal. Mas para isso é preciso
que haja quem esteja disposto a dar o corpo ao manifesto, e uma democracia
mais efectiva e não tão limitada como a que temos vivido.
Violência urbana: uma
inevitabilidade?
A
propósito do 8º aniversário da ACED, Abril de 2005
- Numa sociedade de
classe média, como se imagina ser uma democracia, em que a liberdade se
une à igualdade (de oportunidades) em nome da produtividade da
competição individual, o que é ser-se normal? Qualquer psicólogo saberá
dizer que é tudo cada vez mais relativo, embora admita que há situações
patológicas que os psiquiatras podem tratar: o que não se deve fazer é
reforçar a especificidade de cada pessoa, principalmente nas vertentes
negativas, ao ponto de contribuir para o efeito das “profecias que se
auto-realizam”, de que são exemplo os estigmas sociais.
- O normal é, bastantes
vezes, referido como correspondente à cor cinzenta, de rotina
invariável, sem emoção. Neste sentido quem quer ser normal? E quem pode
fugir à normalidade, que é como quem diz, quem pode competir com a
acelerada concorrência de cultura derramada nas televisões, seja ela
erudita, científica ou popular.
Nos fins-de-semana à noite podemos observar facilmente a náusea
geralmente alcoólica dos auto-limitados cinzentões, retidos nas suas
rotinas semanais, à procura de “iluminação” nos espaços mais “in”. Lá se
encontram todas as vidas, em uníssono, normais, não normais e anormais,
à procura de excitação, mas também de direitos e de respeito. A
sociabilidade é uma necessidade. Mas de pouco servem as imitações.
- Retomando o psicólogo,
ser-se normal é uma chatice, isto é, é tão difícil (trabalhar anos a fio
sem desejo de realização pelo trabalho) que será preferível assumirmos
algum distanciamento. O que nos faltar para a normalidade, tomemo-lo,
aconselham-nos, como a idiossincrasia que nos dá cor e identidade: algo
de que nos possamos orgulhar.
- A transgressão social
é uma das formas velhas como o mundo – pelo menos desde o tempo de Adão
e Eva – de afirmar a nossa existência individual. De riscar. Isso pode
ser feito ao jeito de Howard Hugues ou do Bin Laden. Em geral em menor
escala. Mas tem que ser feito. Por isso mesmo não se conhecem, por
exemplo, sociedades que não usem drogas de várias espécies ou
comunidades onde alguém não se tenha perdido na procura de ser
diferente. Existem, sem dúvida, os normais e os seus antagonistas – os
não normais. Pensamos mais em actos do que em pessoas.
- Os anormais é outra
coisa. São aqueles seres humanos a quem se atribui uma perenidade
inelutável de certas características menorizantes, estigmatizantes.
Pensamos menos nos actos do que nas potencialidades anti-sociais das
pessoas.
- As diferenças entre
normais, não normais e anormais são tanto reais e verificáveis quanto o
são projectadas por quem usa a classificação em outros seres humanos,
como forma de solidariedade, de conforto, de ajuda ou de agressão,
justificada ou não, útil ou não. Classificar informação sobre pessoas é,
deveras, complicado e arriscado. Mas essa é a principal tarefa das
instituições de segurança, aliás como o é das instituições sociais.
Obter informação classificada sobre como mais objectivamente classificar
populações, grupos, pessoas, situações.
- É normal o respeito da
autoridade policial em certas zonas da cidade, como é normal o
desrespeito noutras zonas. Não normal é o desrespeito em certas zonas da
cidade, como o é o respeito noutras zonas. Anormal é a violência urbana
em qualquer lado que se manifeste. Não apenas porque urbanidade não rima
com violência, como – dadas as circunstâncias de vida nas grandes
cidades e nas metrópoles – a violência pode atear, como um rastilho,
toda a vida social, num indesejável colorido que todavia marca o
quotidiano de muitas delas, mais do que das nossas, em Portugal.
- A violência tem de ser
contida nas cidades para nelas se poder viver. E não há, evidentemente,
corpo policial nenhum capaz de, por si só, satisfazer esse objectivo. Ao
invés: a sua exposição pública e notória é um chamariz que serve de
escudo humano à defesa da normalidade da vida, na sua periclitante
existência. Sim, é um alvo, como a máquina de atrair os insectos.
- Qualquer filme de
polícias e ladrões mostra isso mesmo. É preciso sete vidas para fazer
uma carreira dedicada às forças da ordem e atingir um agente é crime de
lesa-majestade. Mas atingir terceiros também começa a ser cada vez mais
inaceitável. Os danos colaterais e o fogo amigo já não são justificáveis
pela auto-defesa do agente do Estado, porque se conhecem casos de
não-normalidade e de anormalidade nas corporações de segurança e
principalmente porque se aceita ser possível – e de todo intolerável – a
manipulação das forças do Estado para conspirações que no século XIX
eram executadas por bandoleiros aos serviço dos políticos.
- Na sociedade da
informação, o que separa os não-normais dos anormais é a densidade da
informação disponível. Um comportamento desviante socialmente enquadrado
não é normal, imagina-se saber. Mas o mesmo comportamento num quadro
social estigmatizado, julga-se saber, será percebido como normal, isto é
recorrente e, portanto, anormal. Certos bairros da cidade querem-se
transparentes e sinceros, porque estão seguros de si. São urbanizados e
querem urbanidade. Outros bairros da cidade não estão urbanizados,
sofrem do medo que se encolhe nos seus habitantes, que por seu turno o
mascaram, quantas vezes com atitudes agressivas. Aqui contam-se os
maiores números de vítimas da violência desurbana, mas a polícia é quase
sempre recebida como ameaça. Falta-lhes mutuo reconhecimento, falta-lhes
(in)formação, falta-lhes alianças que as defendam, ambas as partes, das
conspirações de terceiros que, no poder ou no crime, usam os territórios
desurbanizados como campo de batalhas estratégicas, de recrutamento de
mão-de-obra, de especulação imobiliária, de circulação de influências e
mercadorias ilícitas.
- Na sociedade do
conhecimento irá ser possível integrar, como parece ser a esperança de
muitos, a nível global mas também a nível local, segurança externa
(defesa dos terrorismos), segurança interna (defesa contra as
desurbanidades) e segurança social (defesa contra as desigualdades
tornadas cultura).
Contribuição para o balanço histórico dos
estatutos de carreira docente
2005-03-17
O Conselho
Nacional do SNESup de dia 12 de Março de 2005 revelou o desconhecimento
técnico dos sindicalistas sobre como funciona uma assembleia democrática e
manifestou substantivamente, por votação, o repúdio maioritário pela
discussão do que sejam interpretações democráticas e não democráticas dos
estatutos e do funcionamento dos órgãos sociais do sindicato.
Os fascistas
do antigo regime entendiam o facto de deterem o poder do Estado, o facto de
“serem chamados” a reunirem como ministros do conselho do Salazar, como uma
missão nacional. Entendiam aqueles que queriam discutir ou fazer política
(ou sindicalismo) como maníacos do poder, usurpadores potenciais desse mesmo
poder, enfim velhacos traidores à pátria – porque a Pátria era Salazar –
merecedores de serem objecto de todo o tipo de golpes (baixos e altos) que
os contivessem.
Estes
fascistas não viviam em torres de marfim defendidas por militares, como hoje
vemos acontecer nas reuinões do G8 e quejandas. Viviam a boiar na
indiferença nacional, na ideologia de que a “melhor política é o trabalho”,
que o chefe é o chefe e mudar isso pode ainda ser pior. De que é devida
fidelidade ao chefe, como se deve fidelidade à portugualidade incompreendida
pelo comum dos mortais e cujos defensores eram o chefe e os seus fiéis. Já
viram o que seria perguntar-se ao ignaro povo português (nós próprios) o que
quereria fazer do seu país e do seu destino? Sabem lá como responder a isso!
Como se dizia então: o povo português não estava preparado para a
Democracia, forma de governo subtil e elaborada, que é muito dispendiosa em
termos de energias intelectuais e em tempo de discussão.
30 anos
depois do 25 de Abril, Salazar sentir-se-ia reconfortado por saber que no
SNESup os seus preceitos políticos fundamentais ainda são apreciados. Passo
por cima das técnicas de golpe usadas na produção de decisões, que podem ser
apreciadas pelo branqueamento de actas e de resultados de propostas
aprovadas ou pela manipulação de assembleias – a simples consulta de
documentos o revelará, a quem estiver interessado nisso. Concentro a minha
atenção nos aspectos ideológicos, na concepção de sindicalismo que anima a
maioria daqueles docentes do ensino superior que se deslocam às reuniões
sindicais, num país democratizado.
Primeira
constatação: não se deslocam a não ser a pedido especial de alguém que faz o
esforço de manter o sindicato. Segunda constatação: os que se deslocam
sentem frequentemente desejos de expressar fidelidade a quem manda,
principalmente se isso coincidir com quem os conseguiu demover a aceitar ir
às reuniões (de que de resto sentem ser um dos custo da democracia).
Terceira constatação: jamais discutem política – isso é o trabalho sujo dos
políticos – nem sequer se interessam pelo assunto (o verdadeiro sindicalismo
não é isso!!). Aguentam todas as provocações estoicamente (prometem
interiormente nunca mais se meterem em estuchas dessas, a menos que os
amigos os voltem a obrigar a isso) e votam conforme estava combinado, quando
chegar a altura (finalmente!). Será que esta gente não trabalha? Devem
perguntar-se a si próprios, confundido trabalho com obediência a seja quem
for que possa estar em posição de dividir trabalho.
30 anos
depois, a gestão democrática no ensino superior, a condução das carreiras
dos docentes e as práticas profissionais nas escolas em geral, permitiram o
desenvolvimento de (vamos ser ponderados) traços de ideologia fascista. Pelo
menos eles emergem no nosso sindicato. O facto de poder ser inconsciente não
me anima particularmente. Não anima mais do que o uso de meios digitais de
propaganda – os modernismos no tempo do Salazar eram com o António Ferro.
Esse é, devemos reconhecê-lo, um dos mais preocupantes e pesados resultados
do Ensino Superior em Portugal.
Estou
chateado – como diz o outro – mas disponível para aprofundar a reflexão
sobre a democratização do sindicato e do ensino superior, para dela tirar as
necessárias consequências práticas, a nível interno e a nível externo das
lutas sindicais.
Saldanha Sanches, os autarcas e os
portugueses
2005-03-02
A associação de autarcas portugueses resolveu mandar calar Saldanha Sanches.
Para o efeito usou uma das já rotineiras e saudáveis declarações de denúncia
da corrupção endémica em Portugal para fazer disso um facto político. E
fê-lo numa época de troca de governos, certamente não por acaso:
precisamente para confrontar o novo governo com o facto consumado, perante o
qual apenas terá que tomar uma de duas posições: contra ou a favor “deles”
(onde é que já ouvi isto?).
É sinal de que tudo vai ficar na mesma, quanto à impotência do governo face
às corporações, a declaração televisiva do porta-voz do PS, que apesar de
reconhecer a inviabilidade legal dos processos que ameaçam dar entrada nos
tribunais – para os ocupar e gastar dinheiro público – decidiu manifestar-se
contra a “forma” de expressão do Prof. fiscalista.
O que se espera do governo é que cuide dos problemas dos portugueses e não
que se deixe envolver em polémicas de carácter ou de forma, e muito menos
que preste vassalagem a poderes fácticos intolerantes e prepotentes.
Saldanha Sanches tornou-se conhecido da opinião pública à medida que a
questão fiscal se tornou obviamente escandalosa, tanto quanto a incapacidade
do Estado em assegurar a credibilidade do sistema fiscal. De tal maneira o
assunto é central e incómodo que o professor se tornou comentador
reconhecido e influente. Querem calar essa voz? Quem o deseja?
A sua independência partidária tem sido garante da firmeza de posições, em
contraste com a subserviência dos nossos legítimos representantes,
aparentemente impotentes. Como dizia o outro, é preciso afastar a má moeda,
mas não foi essa a intenção manifestada. E foi pena.
Recriar a confiança de que os portugueses precisam para mudar Portugal é a
principal tarefa política, actualmente. A fiabilidade do sistema fiscal, a
transparência do financiamento autárquico e dos partidos bem como a
perseguição da riqueza súbita e inexplicada são tarefas prioritárias, e não
se fazem com os que serão mais prejudicados, aqueles que tem por modo de
vida acumular privilégios.
O Professor Saldanha Sanches não é uma ameaça para os portugueses. Porque é
que é uma ameaça para os autarcas?
Organizemo-nos
2005-01-09
Em memória do José Baptista
Como se costuma dizer, o
dinheiro não faz a felicidade mas ajuda muito. Com o Estado (de que depende
quase toda a actividade em Portugal) em crise de finanças, é natural que a
depressão se faça sentir.
Mas, e se for ao inverso?
Se a saúde económica (má) for resultado de uma prévia desmoralidade? Do
mesmo modo que é possível desconfiar de um certo modo de vida esquisito -
suportado por práticas ilícitas, por taralhoquice, ou ambas as deficiências
- também é possível desconfiar do modo de vida português.
Por exemplo: já se contaram
o número de pessoas em "prateleiras" ou "tachos", uns forçados e outros
reforçados? Tal instituição decorre da noção de que é preciso barrar quem
desobedece ao chefe, de propósito ou porque acha que há maneiras melhores de
fazer as coisas práticas. Na linguagem própria dos organizadores
portugueses, quem está a criar "problemas pessoais" tem de abandonar o
campo, mesmo que isso prejudique o desempenho. Quem passa a fazer parte do
problema, ou nele se deixe envolver, deve ser afastado. Não nos podemos
admirar, por consequência, do alheamento generalizado dos portugueses face
aos problemas nacionais: essa é a sua cultura.
Todos sabemos como os
mediterrânicos, também conhecidos por latinos, são temperamentais. Não
suportam contrariedades ao exercício dos seus mesquinhos poderes. Durante
anos, em Portugal, Espanha e Grécia essa característica cultural foi
utilizada pelos ditadores de serviço para mandar. Em regime democrático,
será que os modos de organizar as actividades económicas se mantém na
dependência da mistura do "desenrasca" com o alegado "amor à camisola"
patrioteiro - dito de outra forma: que as fidelidades ainda são mais
importantes do que as funcionalidades? Em Portugal, os chefes nunca se
enganam e raramente têm dúvidas, ao contrário dos subordinados que não são
pagos para pensar.
Nestas condições, não dá
para desconfiar que o resultado do trabalho dos portugueses em Portugal não
aparece porque isso parece preferível a quem detem poder do que dar a mão à
palmatória? Não é isso mesmo que está demonstrado pelo facto de o actual
Primeiro Ministro ser empossado para candidato suicida? O facto de haver
quem preveja - quiçá com razão - que a luta pelo poder poderá fazer tremer
as expectativas, já que do lado da oposição os créditos não são opostos,
revela-nos os limites da concepção dominante de poder em Portugal: poder de
se servir e de resistir - o político - e jamais poder de operacionalizar
ideias como missão cívica - o otário armado em bonzinho.
Recordo o Zé Baptista dizer
que o primeiro problema dos portugueses era o da organização, saberes e
disposições. Com Ilona Kovacs e Conceição, mostrou o resultado de um estudo
sociológico sobre liderança de organizações produtivas durante a revolução
de Abril, concluindo que apesar da mobilização inusitada e do basismo que se
vivia então, as organizações cooperativas que emergiram na época eram
lideradas por homens sós. Independentemente das respectivas vontades,
viam-se todos, dirigentes e dirigidos, inflexivelmente nos seus lugares de
classe, digamos assim, e uns dos outros para a vida. Nada pós-moderno.
Quase trinta anos depois é
preciso constatar a aversão dos portugueses a considerarem os problemas
organizativos como merecedores de atenção cognitiva e prioridade política,
nomeadamente através da promoção de campanhas nacionais de valorização do
mérito absoluto das pessoas em geral e dos trabalhadores em particular,
contra as atitudes defensivas banalisadas e persecutórias da concorrência
potencial próxima que nos afunda como nação a todos, como o abraço do
naufrago.
Penas “Alternativas” e a política da Reforma
Prisional em Portugal
30 de Novembro de 2004
Fui convidado para participar num debate televisivo sobre “Penas
Alternativas” à prisão, na RTPNorte, no cabo. Estavam comigo, ou melhor, eu
com eles, o Secretário de Estado, o Prof. encarregue de acompanhar a
aplicação das pulseiras electrónicas e do outro lado da tele conferência, no
Porto, o jornalista e um convidado de uma organização interessada nos
problema da reforma prisional.
Fui apresentado como professor universitário e, numa primeira ronda foi-me
dada a palavra. Usei-a para dizer que havia um equívoco quando se nomeava as
medidas em causa como “alternativas”, já que o governo não tinha definido
como meta da sua actuação a diminuição do número de presos, o que seria
essencial para que a justiça tivesse sentido prático em Portugal
(efectivamente, com 3 vezes o tempo de prisão efectiva, o nosso país se
acompanhasse a média europeia teria resolvido definitivamente os problemas
de sobre lotação e ter-se-ia aproximado da conformidade com a realidade e
com a lei portuguesas, com menos crimes violentos e com penas menos severas
do que a média europeia).
O Sr. Secretário de Estado apressou-se a confirmar não haver nenhuma
intenção do governo de reduzir o número de presos e do lado do académico
especialista em pulseiras electrónicas veio a declaração da esperança de
que, a médio longo prazo, noutras circunstâncias portanto, as penas
“alternativas” possam vir a ser efectivamente alternativas às penas de
prisão. O seu argumento era de que tínhamos vantagem, nessa perspectiva, em
estar preparados desde já.
Passados ¾ de hora de enunciação dos benefícios das penas “alternativas”
relativamente às penas de prisão, a que evidentemente não fui chamado – e
também não me pareceu útil reclamar numa situação de evidente desequilíbrio
e impreparação do jornalista – a conclusão era a de que apenas faltaria
convencer o público, e até os próprios condenados, de que as penas
“alternativas” são penosas, de modo a garantir o seu potencial efeito
dissuasor (que, diga-se de passagem, nem as penas de prisão está provado que
tenham). Lá para o finzinho do debate, gasto o tempo com discursos de
circunstância, contraditórios em si mesmos, mas ideologicamente organizados
sob a forma de propaganda, na linha da proposta avançada pelo grupo de
trabalho do Prof. Freitas do Amaral, o jornalista lá se lembrou que eu ainda
estava em estúdio. Tive então oportunidade de levantar a questão de saber
como e porque é que os serviços de acompanhamento das penas “alternativas”,
que nunca anteriormente funcionaram de modo efectivo para as tarefas que têm
entre mãos, começariam a trabalhar de forma aceitável a partir da iniciativa
das penas “alternativas”? Talvez por isso o jornalista entendeu chamar-me a
atenção de que estaríamos em cima do tempo e era preciso dar ainda a última
palavra ao Sr. Secretário de Estado, pessoa simpática que garantiu que era
preciso ser optimista, pois não se podia ficar de braços cruzados numa
altura destas.
Mas é precisamente o que acontece, em Portugal. Desde 1996, os governos de
diversos partidos prometem reformas prisionais que não são capazes de
explicitar publicamente qual o sentido, embora estejam de acordo em
organizar um Pacto (contra) da Justiça, de que a nuvem de fumo das penas
“alternativas” é a solução propagandística, com a vantagem de se conseguir
aumentar ainda mais o desproporcionado sistema repressivo contra os
primeiros (e únicos!) objectos da Justiça em Portugal – os excluídos – com
redução dos custos previsíveis se só fosse usado o sistema prisional.
A política de baixos salários, de resistência à produção de qualificações
escolares, secundárias e superiores, e profissionais para os portugueses e
trabalhadores em geral, a redução de custos dos serviços sociais, a
precariezação dos laços de solidariedade social e intergeracional, são
outros aspectos da mesma política imoral que explica a extrema desigualdade
social que se vive em Portugal (segundo os padrões europeus), a grande
incidência da pobreza e a incapacidade das elites de encontrarem novas
soluções de vida que não seja a repressão.
António Pedro Dores
Pacto de regime ou o fim de uma época?
27 Agosto 2004
PSD
e PS sintonizados em relação ao pacto de regime” em
No início dos anos
oitenta, um sindicalista, acabado de chegar de umas férias em La Havana –
que adorou e vivamente recomendou –, pedia-me para estar calado.
Olhando para trás,
imagino-me no futuro, a contar aos meus filhos adultos como era o regime
acabado de cair. Será assim que começarei a história.
Na banca
nacionalizada em que trabalhava, já nessa altura à espera da privatização,
os dirigentes – todos de esquerda, claro – rivalizavam e aliavam-se entre si
para encontrarem a melhor posição para participar, no presente ou no futuro,
na distribuição de benesses e alcavalas. Uma das condições óbvias era a de
colaborarem com os partidos do poder, os partidos que mais tarde entraram
numa lógica de rotativismo clientelar ou corporativo ou caciqueiro. Ao
sindicalista, cioso dos seus pregaminhos, restava – imagino eu – resistir à
degradação do ambiente, já nos anos oitenta se podia sentir, como um fado.
Defender as nacionalizações poderia ser o seu mote, isto é, esconder as
incompetências mas também as trafulhices, mesmo dos dirigentes e mesmo dos
(ainda candidatos a?) partidários do PS e do PSD.
No tempo da
evidente decadência esclerosada do regime fala-se da ausência de política,
da corrupção e da impunidade. Não foram os partidos que orientaram a
sociedade para a modernização, foram os partidários que negociaram entre si
os benefícios que poderiam tirar da necessidade de implantação partidária na
sociedade, em concorrência mas principalmente em conjunto. Assim se foram
construindo teias cada vez mais densas de ofertas de financiamento ilícito a
partir dos postos de influência pública, de que os angariadores eram
compensados em bens próprios e impunidade geral.
Nalguns casos
verificou-se mesmo existirem regimes de monopólio, partilhado por alianças
principalmente entre “partidários” de partidos centrais, sempre no poder,
uma vez um outra vez outro. Chamava-se a isto estabilidade.
Inquietos ficaram
os mandantes quando o orçamento deixou de aguentar tamanha erosão e tantos
areeiros. Foram-se desculpando com a crise económica global, mas de tão
fixados no vil metal não quiserem (nem poderam) dar atenção à moral, à
justiça, à desigualdade social, nem às aspirações culturais e educativas de
um povo resignado por três décadas de crescimento económico e atado de pés e
mãos a silêncios comprometidos. Os ancestrais, os obscurantistas e os
democráticos. Não compreenderam como é que o segredo de justiça que lhes
iria dar as dores de cabeça finais.
No futebol, depois
de muitos anos de suspeitas de coisas feias na Federação, lá se
reorganizaram e começaram até a pagar alguns impostos, e tudo sossegou. Mas
a justiça, apesar da sua independência da política estar garantida por lei –
ou será por “sugestão” do Estado? – estava destinada a servir de elo fraco
do regime. Vá lá agente compreender os desígnios da História.
Quando deram por
ela, os governantes à vez decidiram – finalmente – celebrar um pacto de
regime para anular o poder de destruição dos disfuncionamentos judiciários.
Simplesmente, certamente por alguma falha na gestão da imagem, decidiram
celebrá-lo ao mesmo tempo que num dos partidos signatários se ensaiava uma
campanha para escolha do lider, o que revelou a todos os portugueses como as
decisões políticas mais importantes se fazem entre os angariadores de
recursos para os partidos. Sendo uma garantia de estabilidade, precisamente
por ser antecipada relativamente aos morosos processos democráticos, não se
compreende como os seus resultados acabaram por ser desastrosos... Terá sido
por falta de verbas?
Em Desespero de Causa
3 de Agosto de 2004
Partido das Redes - PRR
Os partidários do PRR não
têm em comum uma ideologia mas antes um projecto comum e um código
ético-político.
O projecto comum
consiste em organizar o trabalho necessário para uma ruptura constitucional
com o actual regime político, em nome de a) novo equilíbrio das contas
públicas baseado em receitas de estado justas; b) maior liberdade de
expressão partidária, para combater as censuras de utilidade eleitoralista e
para tornar públicas as negociações políticas de incidência institucional;
c) estabelecimento das instituições de estímulo local à participação de
todos na vida pública, em particular em movimentos associativos
independentes de interesses predominantes na sociedade portuguesa; d)
corolário e condição inicial de todas as anteriores mudanças estruturais
está no modo de financiamento dos partidos, que deve ser adequado ao actual
estado da economia e à necessidade de promoção acelerada da qualificação
escolar e profissional dos empresários, profissionais, quadros, técnicos e
trabalhadores, sem discriminações de sexo, orientação sexual, estado de
saúde ou nacionalidade.
Cabem dentro do
partido formas de expressão representativas da vontade democrática dos seus
militantes e também, com nível de dignidade idêntico, formas de expressão de
vontades de movimentos sociais, sejam eles tradicionalmente dominantes na
sociedade portuguesa (partidos do regime, igreja católica, comentadores e
jornalistas de opinião) sejam eles ignorados ou marginais no actual estado
de coisas.
As ideologias não
estão datadas, os seus usos é que estão enviezados por interesses
hegemónicos e não públicos. Dentro do PRR podem, portanto, desenvolver-se
todas as tendências ideológicas modernizadoras, na condição de aceitarem
trabalhar lealmente e em conjunto com as outras para atingir, na prática, os
fins comuns em vista.
A representação da
nossa posição política não é de partido de governo nem de partido da
oposição. De fora do regime, o PRR reclama democraticamente a reorganização
política da nação portuguesa, no quadro dos compromissos internecionais do
Estado português, de acordo com o princípio constitucional que garante ao
povo o direito de de rebelar contra a opressão por parte de uma qualquer
clique dirigente. O PRR está numa posição semelhante ao da Ala Liberal da
Assembleia da República no tempo de Marcelo Caetano, na esperança de que o
regime permita uma reforma pacífica das instituições políticas e uma
varridela eficaz do oportunismo instalado na vida portuguesa, sem prejuízos
de maior para o povo.
Leis precárias
2004-06-21
Mensagem email
Bom dia!
Encontrei o seu site através de uma pesquisa
sobre o Estabelecimento
Prisional da Carregueira. Tendo em conta a
informação nele contida, as
preocupações e as suas motivações, pensei que
talvez fosse possivel esclarecer uma dúvida em relação à atribuição de
"Precárias":
Eu sei que cada recluso tem direito a umas
quantas, determinadas pelo Juiz e pelo Director da prisão, mas o que me
parece é que estas são utilizadas como forma de pressão ou chantagem. Por
exemplo: Um recluso no E. P. da Carregueira a 15 dias de acabar a pena, que
nunca saiu em precária teve por essa altura a oportunidade de o fazer.
Parece-me, no mínimo ridículo. Existe algum meio legal de combater este tipo
de tirania de uma forma prática e eficaz? Ou a única defesa que os reclusos
têm é só a possibilidade de pedir transferência?
Mesmo não sabendo se terá disponibilidade para
me responder e tendo em conta que estamos em época de exames e o professor
deve estar muito ocupado, aproveito para lhe agradecer... Se não uma
resposta, o simples facto de o seu Site ser tão útil e a sua noção de
sociologia ter muito a ver com a observação directa dos fenómenos e não só
com uma análise ausente e pouco interessada.
Obrigado pelo envolvimento e pela intervenção.
H.
Olá H.,
Não creio que a solução para problemas como o
que levanta seja legal.
Dito isto há que afirmar (politicamente) a
ilegalidade do sistema que procede como a Helena se queixa.
Por partes:
1. O Direcção Geral Serviços Prisionais afirma
publicamente, por altura da Reforma Prisional, faz oito meses talvez, na
SIC-Notícias, que a lei não se cumpre nas prisões portuguesas. Não se
demitiu, não foi demitido nem explicou o que quis dizer. É este o país que
temos: prende pessoas segundo uma lei que quem prende não respeita (nem tem
intenção de respeitar, nem ninguém organiza forma de obrigar a respeitar).
Volte a ler o primeiro parágrafo da resposta, sff.
2. O sistema prisional português foi organizado
na lei em função da filosofia progressiva, isto é, que conduz o detido,
principalmente o de média e longa duração, de um regime mais fechado para um
regime sucessivamente mais aberto, incluindo RAVI, RAVE, precárias e
liberdade condicional. Só que não apenas esse regime não vigora (veja taxas
de utilização destes institutos) como vigora ao inverso (a actual Reforma
Prisional, independentemente do que está escrito, está a organizar sistema
de detenção cada vez mais duros a partir do regime mais duro previsto na lei
em vigor).
3. Parte significativa do abandono de
actividades de formação e educação dos reclusos são interrompidas por
motivos disciplinares, a que é dada tamanha prioridade que as turmas ficam
reduzidas a poucos alunos rapidamente.
Em resumo: fora da lei, o sistema prisional não
é auditado por entidades juridicamente empenhadas em fazer respeitar a lei
mas antes preocupadas em manter o mínimo de credibilidade do sistema de
penas ou inclusivamente cúmplice orgânico de interesses inconfessáveis
estranhos ao cumprimento da lei (como é o caso da inspecção da direcção
geral).
Há que denunciar, judicial e publicamente, o que
se está a passar e lutar para que as coisas venham um dia a mudar.
APD
Luta pela justiça
7 de Junho de 2004
Durante anos,
os muros da cadeias portuguesas estiveram defendidos por silêncios cúmplices
dos (ir)responsáveis pela defesa dos direitos dos arguidos e condenados. Aos
portugueses foi vedado o conhecimento do que se passa intramuros por um
sistema judicial que alguns respeitáveis lutadores isolados qualificaram,
justamente, de inquisitorial, mais todo o séquito de beneficiários do
sistema e a cobardia de muitos outros, temerosos do poder ilícito mas real.
Este poder
(i)legal democrático foi afrontado pela primeira vez pelas suas vítimas mais
directas, os presos em luta no início deste século, tornando-se um clamor
público em Fevereiro de 2001. Acabaram com a política dos “brandos (e
hipócritas) costumes”, cuja guarda avançada era a Direcção Geral dos
Serviços Prisionais, obrigando a um rebate de consciências a que aderiu, em
primeiro lugar, a Ordem dos Advogados e a uma reformulação da política de
execução de penas, que culminou na promessa eleitoral(ista?) de Reforma
Prisional,por parte dos vencedores das eleições legislativas de 2002.
Sabemos hoje
ser a resposta engendrada pela administração para ultrapassar o sistema
medieval de penas em vigor em Portugal inspirada nas receitas norte
americanas de aumento exponencial da carga repressiva contra os presos,
manutenção da impunidade para os crimes do sistema, tecnologização e
diversificação das penas e, esperteza saloia, privatização dos custos e
benefícios do encarceramento. O irrealismo do projecto não assusta os
(mesmos ir)responsáveis de sempre. Nem mesmo há sequer uma tentativa de
fazer querer haver alguma coincidência entre este programa oculto e as
declarações humanistas para consumo externo, protagonizadas pela comissão
governamental encarregue de propor a Reforma Prisional. Como diz a ministra,
nunca em Portugal as reformas prisionais anteriores alguma vez foram
executadas. No Parlamento, só os partidos fora do arco do poder (PCP e BE)
apoiam vigorosamente as intenções de Freitas do Amaral, precisamente por que
sabem não passarem disso mesmo.
Os presos
preventivos anunciam, coragosamente, vontade de usar os seus direitos de
cidadania, intactos e alegadamente garantidos pela Constituição portuguesa,
para lutarem para exigir das autoridades o cumprimento das promessas
eleitorais. A ACED não pode deixar de se orgulhar deles e de manifestar todo
o seu apoio, sabendo por experiência própria os obstáculos e os golpes
baixos a que passarão a estar sujeitos.
Ao público
queremos dizer que é inaceitável que saiam todos os anos, de prisão
preventiva para a liberdade, sem condenação, mais de uma centena de pessoas.
Prisão preventiva essa que pode durar vários anos. Mais: prisão preventiva
que pode ser usada, como aconteceu no caso mediático de Vale e Azevedo, para
prolongar de forma amoral e conspirativa, a condição de prisão de uma vítima
do sistema inquisitorial vigente.
Em Portugal
não existe pena de morte, mas a morbidade nas prisões é regularmente das
mais elevadas da Europa, incluindo a Europa de Leste. Em Portugal não existe
prisão perpétua mas é possível que um arguido cumpra várias penas seguidas,
eventualmente interpuladas por prisões preventivas, de modo a eternizar a
situação, sem que o arguido tenha a possibilidade de saber o que o Estado
pretende fazer com a sua vida.
Independentemente do êxito da actual luta dos preventivos, a luta pela
justiça em Portugal merece ser engrossada, porque o nosso país pode ser de
todos.
”´Nenhum
partido arrisca mexer no sistema judiciário porque sabe que, num
momento ou outro, pode por ele ser julgado´, acusou
F.P.Balsemão,
reafirmando-se adepto do reforço dos poderes presidenciais nessa
matéria.” em Hermana
Cruz, “Balsemão quer revisão dos salários dos políticos” no
Jornal de Notícias de 2004-05-29.
Abusos sexuais e abusos de poder
1 de Junho de 2004
O caso Casa
Pia tem, compreensivelmente, concentrado a atenção pública nos processos
judiciários. O secretismo judiciário, que alguns adjectivam traumática mas
fundadamente de inquisitorial, foi abalado na sua legitimidade, mas nem por
isso deixou de ser regra. A prioridade ao castigo contra os suspeitos ficou
evidenciada, para desprestígio geral da justiça, sem que nenhuma reacção
prática tenha tentado alterar o sistema vigente. O carácter conspirativo dos
processos de investigação penal, bem como dos processos de defesa que os
poderosos lhe possam opor, apaixonou, qual telenovela, a opinião pública.
O processo
penal serve, precisamente, para separar do campo político do executivo, do
legislativo e do representativo situações moralmente irreconhecíveis,
anormalidades, patologias sociais para as quais não haja receitas
conhecidas. O facto do processo judicial em Portugal ser muito longo dá
oportunidade aos restantes poderes de Estado reagirem, rectificando,
sistemas de prevenção e de detecção de problemas solidariamente com a
sociedade, entretanto mais facilmente mobilizável para causas relevantes,
neste caso, a protecção das crianças institucionalizadas.
O que
perturba no caso Casa Pia é a inércia irresponsável manifestada pelo Estado
português, não apenas perante as questões da judiciais mas também face à
evidência dos abusos organizados, sob a forma de negócios, em torno dos
problemas sociais. Porque é que Portugal é dos países do mundo com mais
sites pedófilos? Porque é que o Estado evita indemnizar as vítimas dos
abusos, por muitas que sejam – essa seria uma forma de as mobilizar para as
denúncias públicas que pudessem clarificar a dimensão do fenómeno? Será pela
mesma razão que o Estado encarregou a Casa Pia de tutelar os representantes
legais das vítimas... da Casa Pia? Quais as razões que levaram dois dos
advogados contratados a abandonar os seus postos? Porque não foram públicas
tais razões, já que públicos são os respectivos compromissos?
Independentemente dos resultados deste processo judicial, quem terá
paciência para acompanhar outros que se anunciam, a menos que tenham
arguidos famosos? Mais catorze processos judiciais, como se anuncia,
ajudarão, mais do que este, a ultrapassar as oportunidades de abuso contra
crianças internadas? Ou o efeito de normalização da problemática, pelo
cansaço e desorientação, remeterá para as campanhas eleitorais demagógicas e
populistas a discussão sobre a dimensão da pena e a gravidade do castigo dos
acusados, abandonadas que estão as crianças à sua sorte?
Os meios de
comunicação social têm, nesta fase, as suas responsabilidade. De não se
deixarem continuar a arrastar apenas pela paixão da contenda judicial e de
prestarem um serviço público inestimável: remeter para os responsáveis
políticos e institucionais o anúncio de acções preventivas úteis que, de
facto, têm sido escandalosamente descuradas. Cada vez mais o público
pergunta: e as vítimas?
Se uma das
lições tiradas deste processo é a vantagem prática de organizar sistemas
variados e flexíveis de avaliação independente das instituições a avaliar –
se isso estivesse implementado e credibilizado pelas instituições públicas e
pela comunicação social, as denúncias anteriores não teriam caído em saco
roto – então, o que há a fazer para romper com o status quo de
degradação e inércia moral vigente é estimular fortemente – através de
políticas específicas financeiramente dotadas de meios – a empregabilidade
em organizações cívicas livres e independentes, susceptíveis de resistirem
às ameaças dos interesses instalados. Lição como esta, afinal, conviria
também a resultados de outros processos perturbadores da moral social, onde
falta transparência e sobra oportunismo e abuso de poder.
Bagdad na Carregueira
10 de Maio 2004
No mesmo
tempo em que se organiza uma alegada reforma prisional em Portugal, o mundo
fica a saber como os polícias de mundo organizam as suas cadeias de máxima
segurança, como entendem a liberdade que apregoam.
Guantanamo
escapou ao escândalo, porque ainda estávamos muito próximos do 11 de
Setembro e os sentimentos de vingança “democrática” tornavam clandestinas as
denúncias de tortura e arbitrariedade nas prisões e nos isolamentos fora de
toda a Lei, nacional ou internacional. O entusiasmo e impunidade
securitários levaram a administração Bush ao desastre no Iraque (vale a
pena, em retrospectiva, reavaliar quem foram os amigos dos americanos, se os
seus aliados ou os outros?).
Há alturas
históricas em que fica evidente serem as prisões pedras de toque da moral
política dos poderosos e dos povos que representam. Desculpe-se-me o
incómodo, mas não sinto estar em condições de criticar o brutal Ramsfeld se,
antes disso, não olhar o meu quintal. Recentemente, mais uma morte suspeita
de um jovem detido em cela disciplinar, depois de uma rixa com guardas
(padrão já tipificado) e um levantamento de rancho contra a violência
sistemática na nova prisão da Carregueira, onde têm acontecido vários casos
de violência ilegítima contra os presos.
No parlamento
a oposição mais à esquerda desafia o governo a cumprir os desígnios
conhecidos da reforma prisional, convencida que não será capaz, o PS procura
não se comprometer ele próprio com aquilo com que está de acordo – por ter
sido o seu primeiro promotor – os partidos do governo revelam-se virginais
militantes de ideias desempoeiradas, cuja eficácia prática ninguém sequer se
dá ao trabalho de discutir. Todos sabem que, no essencial, o processo
legislativo nada tem a ver com o que se passa no terreno: mais violência
institucional traduzida em mais guardas prisionais, mobilização dos serviços
de reinserção social para actividades de controlo social (sic),
investimentos em sistemas repressivos mais sofisticados e caros (alas de
segurança para utilização arbitrária, prisão de alta segurança),
investimentos privados capazes de produzir a engenharia financeira a troco
da uma potencial privatização sistemática no futuro.
As prisões
portuguesas são (mal) adaptadas a uma sociedade exploradora de mão-de-obra
barata, desqualificada, temerosa e relativamente pacífica. À medida que tal
modelo social se torna incompetente, o que temos assistido é a políticas de
intimidação contra os trabalhadores, os funcionários públicos, os
imigrantes, os corpos especializados do estado. Queremos viver nessas
condições? Se não o queremos, um dos aspectos da vida que deveríamos dar
atenção é ao modo como são tratados os prisioneiros em Portugal, e não
deixar passar a oportunidade da discussão da reforma prisional em vão.
Ficaremos mais e melhor informados da moralidade e das intenções das
“nossas” classes dominantes para não serem incomodadas!
> A propósito
ler rotinas
prisionais EEUU exportadas para o Iraque
A
Reforma Prisional do Parlamento
5 de Maio de
2004
Que
significa estar a oposição mais à esquerda a apoiar a Reforma Prisional, tal
e qual a comissão instituída pelo governo a preconiza? Que significa o
partido da ministra que deverá por em prática a reforma estar ausente do
debate em comissão? Que significado tem a displicência do partido de poder
na oposição, mais interessado na chicana política do que em dar contributos,
ideias – como outros fizeram – para acrescentar o ramalhete de propostas
inovadores, fundamentais ou prioritárias?
Em primeiro
lugar significa o que já se sabia: Freitas do Amaral, presidente da comissão
de proposta, é, nos dias que correm, dos actores políticos mais à esquerda
na vida portuguesa. Tudo se passa como se ele tivesse continuado firmemente
“exactamente ao centro”, como afirmava nos idos de setenta, quando mantinha
a direcção do partido mais à direita, mas tudo o resto se tenha passado para
o outro lado.
Em segundo
lugar, assistimos ao resultado da vergonha sentida pelos portugueses por
terem a tutela política e moral do pior sistema de penas de toda a Europa,
fundamentalmente ocasionada pelos relatórios da Provedoria, pelas lutas dos
presos por justiça, pelo descrédito da Direcção Geral dos Serviços
Prisionais e também por não ser mais possível esconder à comunidade
internacional o desleixo do estado português nesta matéria. Ao contrário do
que se possa dizer, os casos de presos mediáticos vieram a ocorrer depois de
o governo – durante a campanha eleitoral e imediatamente depois da tomada de
posse – se ter comprometido com uma reforma prisional.
Em terceiro
lugar significa a prevalência da ignorância e da vontade de assim
continuarmos todos quanto à importância política do assunto e quanto às
possibilidades práticas realistas de transformar o sistema de penas em algo
de que os portugueses se possam orgulhar, como se orgulham os povos
nórdicos, dos povos economicamente mais prósperos od mundo.
A dança
trocada dos figurantes políticos, mais interessados em posicionarem-se uns
contra os outros a respeito da Reforma Prisional do que em oirganizar pistas
políticas para que um dia, quando for politicamente possível (que não é
manifestamente esta a ocasião), Portugal poder estar preparado para
organizar e tutelar um sistema de penas condigno, significa que todos sabem
ser qualquer reforma do sistema prisional lenha para queimar políticos. Por
isso a Ministra da Justiça decidiu organizar, por moto próprio e
clandestinamente relativamente ao Parlamento, a execução da reforma
prisional enunciada e iniciada pelo Partido Socialista no poder – mais
guardas, prisão de alta segurança e construção ou reabilitação das outras
prisões, preparação para a privatização do sistema prisional, como forma de
suportar os encargos financeiros e garantir a continuidade de uma política
de altas condenações judiciais contra os excluídos – ao mesmo tempo que
entrega à oposição um osso para roer: a reforma prisional mais avançada do
mundo que não passará do papel.
No debate da
comissão parlamentar que debateu o assunto em 28 de Abril de 2004, houve
quem remetesse para os sociólogos e os psicólogos a explicação porque, em
Portugal, as leis raramente se cumprem, como aconteceu de resto com a
anterior lei prisional de 1979. Não lhes passou pela cabeça que isso pudesse
ser o problema político. Em termos chãos: como é que se pode fazer
para que no futuro, tão cedo quanto possível, os estabelecimentos prisionais
passem a respeitar a letra e o espírito das leis, segundo as quais os
condenados são conduzidos ao sequestro punitivo?
Para além de
um problema ético este é um problema político, quer se meta ou não a cabeça
na areia. Atente-se no que se está a passar nos EUA e ponham-se as barbas de
molho. Na Califórnia os republicanos no poder declararam durante a campanha
eleitoral vencedora ser uma das suas prioridades fazer diminuir o poder
político da indústria carcerária. A administração Bush, em véspera de
eleições, é atacada pela denúncia do seu desleixo pelo respeito das regras
morais da civilização que diz defender e dirigir, a propósito da prisão de
Bagda supostamente libertada e, logo a seguir, de Guantanamo e das prisões
americanas.
Em Portugal,
depois da dureza Guterrista em meados da década de noventa, vive-se o
reconhecimento político da falta de tutela legítima do sistema de penas – o
que justifica a reforma alegadamente em curso – bem contra as tendências
políticas do governo. Não é de agora que anda tudo às avessas. O que não tem
parado é o orçamento, que de perto de um salário mínimo por detido têm vindo
a crescer exponencialmente, devendo estar próximos dos 3 salários mínimos.
Com a privatização perder-se-á o controlo (que de facto nunca existiu
rigorosamente) sobre as despesas. O que se recusa pagar em termos de
prevenção, diminuição de riscos, assistência social, políticas de
integração, paga-se multiplicado para castigar e intimidar com um sistema
judicial injusto, dito em crise, mas que ninguém com poder está interessado
em mudar, na prática.
Corrupção, EP
3 de Maio de 2004
A luta
judicial contra a corrupção existe. Pergunta-se porque só agora ela se
iniciou. O Primeiro Ministro vem colher os louros de ter prometido (aquando
da destituição da procuradora Mª José Morgado) que tal combate não iria
parar.
Em meados dos
anos 90 procurei denunciar fumos de corrupção numa instituição junto de
órgãos de comunicação social. Fui informado que o caso de que tinha
conhecimento era tão vulgar que não seria notícia. Queixei-me informal e
formalmente a altos responsáveis do Estado sem que o interesse por
investigar emergisse, como eu desejaria. Como me disse um colega e amigo,
"Isto é assim em todo o lado. Não vale a pena. Temos que ser realistas!"
Pergunto-me
se tantos dirigentes (e jornalistas) sabiam que a corrupção existia e a
aceitavam como normal, se tantos portugueses foram castigados por a terem
denunciado (o que não foi o meu caso), não se sentem (não são) responsáveis
pelo "excesso" de corrupção que assola o País actualmente? Perguntado de
outra maneira: alguém acredita que o combate judicial contra a corrupção é
suficiente para a fazer reduzir-se a níveis que não comprometem a
produtividade e a solidariedade social?
O combate à
corrupção começa pela reforma profunda do financiamento dos partidos (e,
portanto, da Democracia). Não é uma luta que se trave de uma vez por todas.
Pelo contrário, é uma vigilância que constantemente deve ser exercida, de
preferência não como acção policial mas antes como acção cívica, de
afirmação de valores de ombridade e solidariedade, mas também como acção
económica, contributo para a eficácia e a produtividade geral.
A
independência da Justiça não deve constituir, repito o que outros já
disseram, um pretexto de continuação da desmobilização cúmplice do
executivo, do parlamento e das restantes instituições democráticas face aos
corruptos e à corrupção. Os louros do PM são de plástico, quando precisamos
de louros acabados de colher, para o Portugal dos próximos 30 anos possa
cumprir os desejos de afirmação que alguns vamos alimentando na
clandestindade, envergonhadamente.
Prisão de Bagdad
3 de Maio de 2004
Pouco antes
da guerra do Iraque se iniciar, Saddam declarou ter libertado os seus
prisioneiros, provavelmente como forma de chamar a atenção ao Mundo para
como os norte-americanos tratam os seus próprios prisioneiros, e em especial
o que se passava (e passa) em Guantanamo. Sem sucesso.
Esta semana a
prisão de Bagdad volta a ser notícia, porque as torturas macabras continuam,
agora organizadas por soldados americanos, fotografadas e divulgadas pelos
próprios. Compreende-se a sua surpresa: "Porque razão a opinião pública
nacional e mundial levaram a mal, desta vez, estas graças? Porque são
diferentes das Maxmax ou das enlouquecedoras celas brancas? Será que o facto
da tecnologia ser mais rudimentar faz diferença?" devem perguntar-se os
militares, fotógrafos de atrocidades encenadas para passar o tempo. Como diz
o oficial encarregue de se mostrar indignado, surpreendido e humilhado com o
comportamento de meia dúzia de militares, o problema foi terem fotografado …
Será que no
Iraque os negócios de batata, de prostituição, de abuso e violação de
menores e mulheres não acontecem? Foi só na Somália, da primeira guerra do
Iraque, nos Balcãs, que isso aconteceu? Porque é preciso haver fotografias
para que as denúncias cheguem às autoridades, pior via da comunicação
siocial? Será que se o comando militar tivesse conhecimento directamente e
quisesse actuar de forma a acabar com tais actividades o poderia fazer
oferecendo ao público os factos e os culpados?
Verdade seja
dita que os militares nos pouparam ter que ouvir desculpas mais radicais de
tais comportamentos do que a alegada falta de treino e organização (se
calhar era por razões semelhantes que os iraquianos torturavam os seus
prisioneiros ….). Isso, apesar de tudo, dá-nos uma esperança. Mas se se
quiser que durante as guerras o poder suba à cabeça dos carcereiros
libertadores seria boa ideia começar a treiná-los em casa, onde os
prisioneiros são seus patrícios, mesmo que renegados.
A privatização das prisões
19 Abril 2004
O EUA
conseguiram reduzir a taxa de desemprego: 1/4 dos jovens negros
norte-americanos ou estão na cadeia ou sob alçada penal. Não se trata apenas
de um truque para manipular estatísticas, apesar da importância dos números
na guerra de propaganda. As prisões têm um papel "dissuasor" contra ser-se
negro. Ou ser-se hispânico. Ou ser-se simplesmente "loser".
No século XIX
os condenados eram sobretudo vadios, alcoólicos, pobres, trabalhadores. No
século XXI são estrangeiros, drogados, pobres, excluídos. A globalização
reuniu alianças transnacionais entre as novas tecnologias financeiras e
bélicas, na defesa do “nosso modo de vida”, e entre os que não querem ou não
podem trabalhar e os traficantes, no outro lado da vida. Não se sabe quem
imita quem: o progressivo século XIX ou o decadente século XXI, a luta de
classes ou anarquia nos mercados, os dirigentes ou os bandidos.
O progresso,
e a moral, já não são o que foram. O argumento é: se as prisões nunca
ressocializaram ninguém, ao menos que castiguem os criminosos. Para uns,
apenas os criminosos pobres. Para outros, idealistas, todos os criminosos.
Nenhuns explicam como evitar que os crimes se perpetuem dentro e fora das
prisões, ao ponto das autoridades anunciarem que deixaram de cumprir a Lei.
Denunciada a
evidente confusão entre a marginalidade ideológica das prisões e a sua
marginalidade política – que se pode manter durante algum tempo, mas não
muito tempo – rapidamente os demagogos levantaram a bandeira: à Reforma
Prisional! Incapazes de dar conta do que aí se preparava, os governantes
decidiram-se por uma nuvem de fumo: quais aprendizes de feiticeiros,
procuraram fazer muito barulho do lado do legislador, com Freitas do Amaral
à frente, e manter o rumo sorrateiro das negociatas no terreno.
“Os privados
são mais eficientes” na opressão, porque não estão vinculados a regras
públicas. Denúncias de trabalho escravo podem passar a acrescentar-se às já
nossas conhecidas de má alimentação, cuidados de saúde, arbitrariedade no
tratamento, maus tratos e torturas. Privatizam-se que lucros: os do tráfico,
dos negócios intramuros, dos desvios de fundos, os do aumento do orçamento
do Estado? Que garantias existem de que a soberania de segurança e de
justiça, aquelas que se afirma serem inalienáveis pelo Estado, sejam
efectivamente exercidas se na situação actual não o são? Os mesmos presos
que não podem ser sujeitos, segundo a ministra, a experiências que lhes
possam reduzir os riscos das doenças infecto-contagiosas, já podem ser
sujeitos a experiências de alienação das responsabilidades morais e
políticas do Estado?
Para a lei a
intenção, frouxa, de humanizar as cadeias. Para as cadeias a isenção prática
de cumprir com a lei, através da privatização promíscua, na qual nunca mais
ninguém será responsável. Eis uma boa síntese da tradição com o espírito
modernista do tempo.
Compreende-se
a vergonha do ministério, apenas recentemente ultrapassada por insistência
da Comunicação Social, de assumir o projecto de privatização das prisões. No
campo académico, esse é o tema de todas as denúncias sobre as experiências
em curso noutros países, que condicionaram efectiva e duradoiramente as
penas judiciais no sentido de as agravar em quantidade e em orçamento –
precisamente o inverso do que fica escrito nas intenções declaradas na
proposta legislativa de Freitas do Amaral. Nota-se a ansiedade, de avançar
agora no terreno de modo a condicionar as discussões políticas do documento
legal. Regista-se a santa aliança com ex-ministros da justiça de governos
anteriores. Assim se explica a ausência da avaliação oficial sobre os
resultados dos investimentos a partir de 1996 – aparentemente indispensável
– no estudo preparatório da Reforma Prisional.
No século XIX
o Estado protegia os fura-greves, em favor dos interesses dos empresários.
No século XXI são os empresários dos sectores de segurança, em troca de um
novo sector económico para explorar em Portugal, que protegem o Estado de
ser pressionado para cumprir as suas obrigações constitucionais e legais.
O sistema e a justiça
19 Abril 2004
A falta de
confiança dos portugueses na justiça está a corroer a legitimidade
democrática do Estado? Ou será ao inverso: a quebra da confiança e da
participação democráticas nos Estado está a corroer a Justiça? Ou, pior que
tudo, a crise da justiça é possível de se aprofundar dada a crise do Estado,
numa espécie de solidariedade negativa para os direitos e liberdades dos
cidadãos?
A Justiça
supranacional europeia, que muitas vezes têm condenado o Estado português,
não é capaz de evitar prisões preventivas injustificadas, delongas injustas
das decisões judiciais, a ineficácia dos eventuais efeitos pressuasivos que
se podem esperar das instituições judiciais, a manipulação dos tribunais
para finalidades privadas por quem saiba usar as fraquezas e cumplicidades
oferecidas, o desenvolvimento de serviços de corrupção da legalidade e das
instituições instalados aos mais altos níveis das hierarquias.
A crise da
justiça foi oficialmente reconhecida cinco anos atrás. O recente Congresso
da Justiça foi muito mais debatido antes de acontecer, nomeadamente no que
toca à identidade dos convidados e dos excluídos, do que de seguida: as suas
conclusões terão ficado secretas no controlo que as corporações se
comprometeram a passar a desenvolver junto dos seus oficiais. Tratou-ae de
estabelecer um pacto para dessolidarizar oficial e mais completamente o
sistema de Justiça em Portugal do Estado e do regime democrático, a favor
dos interesses corporativamente representados. Ouçam as vozes dissidentes,
publicadas em livro este ano, de António Marinho Pinto, Maria José Morgado
ou Saldanha Sanches. Os magistrados dão prioridade às suas comodidades
pessoais, as polícias passam ao lado do crime organizado, o fisco está
organizado para garantir a impossibilidade de incomodar os poderosos (que
assim se tornam ricos), são algumas das teses apresentadas. Suficientes para
envergonhar ou mesmo prender qualquer cidadão, tais acusações não obtêm dos
respectivos alvos nenhuma reacção. Nem pública, de repúdio (por ser
contraproducente) nem privada, de arrepiar caminho.
Cavaco Silva
recusou-se a prosseguir para um terceiro mandato. Guterres recusou-se a
acabar o segundo mandato. Com Durão Barraso a corrupção no governo tornou-se
um fait-divers das revistas cor-de-rosa. No país onde há pessoas presas por
não terem dinheiro para pagar a multa por usarem sem bilhete os transportes
públicos.
Não. Não é
apenas a sina de um país exótico, de brandos costumes para os bem nascidos e
desprezo para a ralé. É a versão lusitana do espírito atlantista.
Práticas
quotidianas de desenrasca (espírito empresarial anglo-saxónico) são pensadas
como fados dos povos (american way of live traduzido, em português, por
nossas maneiras de viver agarrados aos tachos) e encobrem uma desorganização
muito bem organizada (petróleo no caso norte americano, fundos europeus e
subsídios no caso português). Para eles é estratégico ignorar a direito
internacional - direitos aplicáveis à guerra e direitos humanos. Para nós é
decisivo apenas respeitar o direito de quem possa querer pagar as despesas
da modernização importada. Neste aspecto, com a guerra do Iraque, e perante
a ameaça europeia de nos "prejudicar" na distribuição de fundos para
Portugal a partir de 1996, o governo optou pela cartada americana: meteu-nos
na guerra e dividiu a política externa do país, numa versão democrática da
neutralidade salazarista perante a II Grande Guerra.
Em 1945, para
a oposição parecia insustentável o regime ditaturial vigente. Para inglês
ver, Salazar organizou uma fachada democrática, que na justiça ainda predura
nos dias de hoje: a lei deve ser aplicada de modo a que os interesses mais
relevantes sejam confirmados: na alvorada do século XXI, a taxas de
criminalidade das mais baixas da Europa corresponde o maior número de
presos, os tempos de cadeia mais longos, os maiores números de óbitos em
prisão, a maior taxa de presos preventivos, o sistema prisional mais
degradado, a maior impunidade dos mais poderosos na Europa. Como disse o
Presidente, a lei são sugestões que os magistrados usam, ou de que abusam,
conforme o arguido que lhe calha em sorte. É mais importante, na justiça
portuguesa, a encenação de poder em cada sessão de tribunal - ou declaração
pública - do que a qualidade jurídica ou simplesmente racional dos
documentos judiciais.
Imaginar-se
que este estado de coisas apenas atingue os pobres e desvalidos ou que é
insustentável na sua irracionalidade e na sua oposição à produtividade
social, política e económica, é apenas um sonho piedoso. A Federação de
Futebol partilhou o poder com a Liga de Clubes para que os mesmos
continuassem nos seus postos. A Junta Autónoma das Estradas foi dividida
numa primeira fase e refundida numa segunda e a ponte de Entre-os-Rios caiu,
sem culpados. A CIP pediu que não continuassem a ser exigidas contribuições
para o sistema político a quem queira concorrer às obras públicas. O
Tribunal de Contas continua a não ser mais do que um registo histórico dos
escorregamentos dos executivos. A Justiça, mesmo quando é precisa para
reorientar a solidariedade nacional, continua a pairar sem lógica ou
propósito, durante o tempo que for preciso, até se submeter,
irresponsavelmente, ao jogo de influências do mais forte. Em qualquer destes
casos podemos encontrar heróicos denunciantes da nudez do Rei. Isolados e,
por isso, simples latidos enquanto a caravana passa. Para o abismo de alguns
- para já os 200 mil famintos calculados existirem em Portugal - o desespero
ou desconfiança da maioria - vejam-se os consumos de anti-depressivos - a
benefício de poucos. Não é por acaso que Portugal, além de ser o país mais
pobre da Europa, é também aquele onde as maiores desigualdades
compatibilizam os maiores rendimentos da Europa com os mais baixos salários.
A gravidade
da situação não é apenas financeira e do Estado. É o funcionamento das
instituições que minam a possibilidade de nos organizarmos como os países a
que nos queremos comparar. Desde 1986 fomos bons alunos da Europa. Em 2002
ficou claro não ser sustentável manter a mesma abordagem de desfalque do
Estado. Trinta anos depois do 25 de Abril é claro que o atlantismo não trará
nada de melhor e o próprio governo - agora com nova promessa de mais fundos
europeus - prepara-se para tirar da sua política externa internamente
divisionista (para não dizer anti-democrática) o valor das chantagens bem
sucedidas.
A política de
captação de fundos europeus engordou alguns poucos, manteve muitos outros
fora dos benefícios e principalmente deixou-nos a (quase) todos sem norte,
sem razões e apoios para aplicar as respectivas capacidades produtivas ou
participativas. Nas condições portuguesas, caso se queira dar sentido à
solidariedade nacional, aumentar a produtividade depende da disposição de
participação. As possibilidades económicas de desenvolver o país dependem da
haver ou não condições de trabalho: lá onde as haja, os portugueses têm
mostrado poderem ombrear com os melhores, da construção civil ou na
investigação científica, no desporto ou na literatura, na indústria ou nos
computadores.
Portugal
precisa de sacudir a anestesia moral de que sofre e que lhe é veiculada por
um consórcio de interesses que urge denunciar, combater e derrotar. Portugal
precisa de justiça moral e de políticas democráticas capazes de lutar pela
confiança dos portugueses. Estes - e não os fundos e os desenrascanços - são
o maior tesouro do país.
Justiça de ric(t)os
Lisboa, 8 de Abril de 2004
Reclama-se que só há justiça para os pobres.
Face ao aumento da influência da corrupção na vida política e económica,
reclamam-se acções repressivas também contra os poderosos. Os pilha-galinhas,
como se costuma dizer na gíria policial e judicial, provocam malefícios à
sociedade, no seu conjunto, menores do que os provocados apenas por alguns
dos esquemas de corrupção que se sabem existirem (veja-se o caso da ponte de
Entre-os-Rios ou da defesa corporativa de agentes do Estado, mesmo quando
falham deveres de zelo primários).
Argumenta-se serem os pruridos contra as
polícias, decorrentes do trauma da antiga polícia política, que têm
obstruído os financiamentos indispensáveis à modernização científica das
primeiras e impedido a perseguição dos criminosos mais sofisticados. Porém,
também há quem defenda que tanto ou mais importante que isso é a estratégia
de investigação ser politicamente orientada para perseguir crimes
especialmente gravosos para o Estado e a economia, bem como para as pessoas,
em vez de esperar passivamente pelas queixas e denúncias, posteriormente
seleccionadas sem critério. Prende-se (preventiva e precipitadamente) para
investigar, presumindo culpado o arguido, se ele “parecer” sê-lo; o que é
recorrente, errado e moralmente intolerável. Não deveria haver gente acima
de suspeita, nem gente sem direitos.
O caso Casa Pia, pela sua notoriedade, veio
revelar juizes preocupados em inverter a tendência punitiva da justiça
portuguesa, mas só no que toca a arguidos selectos e argumentando de maneira
insustentável (confusão de estigmas com direito penal, desqualificação de
testemunhos por razões de modo de vida, depois dos seus préstimos ao
tribunal terem sido aceites mas de a substância testemunhal não ter sido
conforme o esperado). A indignação é legítima e necessária. O alarme público
é crescente e justificado. A benevolência para certos prisioneiros não é
novidade: faz parte de um sistema injusto.
Magistrados desprezam o Povo
Lisboa, 6 de Abril de 2004
Há acórdãos reveladores. Para descredibilizar
um arguido ou uma testemunha podem usar-se argumentos estritamente
ideológicos, de apreciação superficial de caracter (pelo aspecto, por
exemplo), estigmas sociais. Independentemente da convicção e das intenções
dos senhores magistrados, o facto é que a sua irresponsabilidade (de acordo
com a lei) é tornada irrestrita (moral e civicamente) pelo laxismo conhecido
e persistente dos Conselhos Superiores das Magistraturas perante actuações
fora da lei dos seus tutelados.
Estas práticas de mobilização de supostas
convicções dos magistrados para julgar em nome da Lei e do Povo, em nome do
Estado, são como manteiga ao sol quando não restam regras morais
orientadoras e competências intelectuais de referência. A ignorância de
muitos magistrados sobre matérias fora do Direito é geralmente reconhecida
(e acusado o Centro de Estudos Judiciários por isso) e mesmo sobre Direito
temos assistido a discussões públicas demonstrativas do sentido errático ou
mesmo radicalmente contraditório das práticas judiciais.
Aqui chegámos depois de uma parte da
magistratura portuguesa ter servido, fora da Lei, o antigo regime, contra os
políticos de então, perseguidos pelo Estado. Passou-se uma revolução sem que
as responsabilidades desses sinistros e amorais personagens fossem julgadas,
imaginando-se, eventualmente, que o brilho da Democracia seria suficiente
para tornar a Lei respeitável aos olhos dos novos magistrados. Foi o inverso
que aconteceu: há quem diga que “os novos são piores que os velhos
fascistas”, porque não se sentem nem se encontram em oposição a um regime
odiado.
Como tem vindo a explicar Marinho e Pinto, o
desenvolvimento corporativo e sindical das magistraturas em Portugal, em
contraste com as condições do exercício da justiça oferecidas pelo Estado,
redundam na promoção de práticas de comodidade pessoal que se sobrepõem às
lutas pela legitimidade dos actos judiciais. Quem sofre (e se queixa, à sua
maneira) é o povo (nas cadeias, por exemplo) assim desprezado.
Alarme público
Lisboa, 28 Março 2004
A culpa de Entre-os-Rios ficou solteira!
Inominável. A decisão do juiz deixou o país em estado de choque.
Depois do ex-bastonário da Ordem dos Advogados
ter afirmado do alto da autoridade do seu cargo que em Portugal não havia
Estado de Direito e de Freitas do Amaral ter dito que em matéria de Direito
teríamos que aprender tudo desde o princípio, o facto de só terem restado
causas naturais para arcar com a culpas da queda da ponte obriga-nos a
concluir que há que prender preventivamente o S.Pedro por ter causado alarme
público provocado.
De entre os argumentos expendidos para
branquear a questão relevo a divisão institucional entre o nível judiciário
e o nível político dos processos de responsabilização. É extraordinário que
esse argumento não seja usado quando se condenam sistematicamente
pilha-galinhas ou simplesmente gente pobre pelo seu aspecto – refiro-me a
acordãos escritos por juízes – ou quando um largo conjunto de instituições
judiciais se coordena para tratar de forma especial alegados crimes,
conforme a influência política e social dos arguidos ou dos queixosos (no
caso vertente a responsabilidade do MP não pode ser ignorada).
A verdade é que a independência da justiça
perante os poderes políticos, administrativos e económicos não existe de
forma sistemática, mas como excepção. Pode verificar-se isso nos resultados
– na qualidade dos julgamentos e das condenações – mas também
quotidianamente isso é evidente para quem tenha que visitar um tribunal.
Dizem bem os que se questionam sobre o
terrorismo: quem pode confiar na justiça portuguesa? Nem na pedofilia, nem
na corrupção, nem em Entre-os-Rios, nem nos processos de falência
fraudulenta. Esse é o principal óbice à moralização da vida pública e à
confiança dos portugueses em si próprios.
Se não tratarmos nós da justiça, como temos
direito em Democracia, ela tratará de nós. A propósito, quedê os resultados
do Congresso da Justiça? Será que foi o abraço do naúfrago?
Crime organizado
Lisboa, 28 Março 2004
Inimigo sem rosto, o crime deve ser combatido.
Não tem nada a ver com política. É um serviço oferecido pelo Estado moderno
aos seus cidadãos. Uma dádiva de segurança. De resto, das raras dádivas que
ainda não se admite a privatização a breve trecho, pois isso seria
reconhecer, directamente, que se caminha para uma segunda Idade Média, uma
nova era de senhores da guerra, sob a égide de uma ordem moral superior e
abstracta e sem eficácia prática, dignada, por exemplo, Democracia, Modos de
Vida Livre ou Direitos Humanos. Ordem moral essa que não está desarmada,
como também não o esteve o Papado durante a primeira Idade Média.
Os tempos são outros, mas as origens da
localização e liquidação do crime tem a sua tradição. E quando há falta de
crimes eles inventam-se. Criminalizam-se os costumes, como o álcool, o jogo,
os fumos, ou outras actividades suficientemente vulgares para oferecer um
campo de actuação vasto, matéria prima para as actividades securitárias
prosperarem a longo prazo.
De facto, nesta fase da vida portuguesa, a
grande maioria dos criminosos são utilizadores de drogas proíbidas. A sua
perseguição tem-se revelado um autêntico maná para os perseguidores, já que
cada vez há mais utilizadores de drogas e o mercado não tem parado de
aumentar, justificando, conforme tinham profetizado os que lançaram a guerra
contra as drogas, ser o uso de drogas prejudicial à sociedade.
Há sempre quem queira atribuir a interesses
perversos à capacidade de antecipação dos acontecimentos, nas drogas como na
guerra ao terrorismo. Fala-se de interesses que provocam campanhas políticas
populistas e corruptas. Fala-se também de agências de informação capazes de
identificar os inimigos através de técnicas científicas. Mas se não foram
capazes de antecipar o 11 de Setembro (apesar da disponibilidade das
informações) nem foram capazes de antecipar a queda da ponte de
Entre-os-Rios, será que podemos confiar?
O crime organizado é uma causa natural (da
natureza ou da globalização) ou é resultado de uma desorganização muito bem
organizada?
O Estado da
Democracia
Lisboa, 21 Março 2004
A Democracia refere-se
à social-democracia ideologicamente vencedora da Guerra Fria e a valores e
regras políticas.
O 11M revelou-nos
como, perante os riscos, os espanhóis preferiram resguardar-se no partido
social-democrata. Mas o neo-liberalismo não saiu derrotado, apesar das eleições
manipulas sobre cadáveres ainda quentes. Surpresa: apesar do desempenho económico
do governo, a moral prevaleceu.
A partir da crise
do Estado-Social, o Ocidente trilha os caminhos perigosos, limitando àqueles
que fazem por merecer a ajuda colectiva. A selecção sobre a quem (não) cabe
tal ajuda passou a caber à iniciativa privada, sem piedade, em função das
expectativas de recuperação dos investimentos sociais a um prazo tão curto
quanto possível. Na prática, são os empresários quem mais tem merecido o
apoio do novo Estado pós-social, para promoverem empregos e substituírem o
Estado no máximo de actividades possível. Depois merecem quem os empresários
escolham.
Os empresários
ajudam os que sejam seus funcionários e quem os possa ajudar a eles. Os empresários
são concorridos, em muitos sectores de actividade, incluindo os mais dinâmicos,
por oportunistas, especuladores, corruptores, exploradores, gangsters,
mafiosos, com que qualquer governo, independentemente da ideologia e das boas
intenções, tem vindo a lidar, dentro e for a das administrações..
A democracia reduz-se
cada vez mais às votações para os parlamentos. A manipulação da informação
atingiu tais proporções, no quotidiano, que foi uma surpresa para os próprios
governantes do PP espanhol terem sido punidos. A esperança de se saírem bem,
como noutras ocasiões, era forte. E realmente só a mobilização de antigos
votantes PSOE desiludidos derrotou os manipuladores. Todavia, o descrédito e a
falta de confiança nos políticos de todos os lados, lá como cá e no resto da
Europa, continua a ser o elemento mais relevante. E preocupante. Afinal Hitler
foi um governante eleito.
Os marretas
Lisboa, 21 Março
2004
Freitas do Amaral
tem ultrapassado todos pela esquerda. Idem para Mário Soares.
Desta vez
brindou-nos com uma proposta que foi entendida como uma provocação: os
destinos do mundo devem partir do conhecimento profundo das condições e dos
objectivos políticos dos terroristas globais: o diálogo com eles seria
positivo, afirmou.
Apesar da audiência
ser todo o país, os nossos políticos, embaraçados, abafaram o caso, como se
lhes fosse possível. Ganham tempo para pensar.
Primeira reflexão:
Soares dirigia-se ao Mundo, embora falando em português. Não era preciso
responderem os seguidistas de serviço. Não estão em condições de tomar
qualquer iniciativa. Segunda reflexão: esta iniciativa, como já tinha
acontecido na altura do início da guerra do Iraque, mostrou como andam fora de
jogo os nossos revolucionários de serviço, sem moral para assumirem riscos políticos.
Terceira reflexão: se Soares o disse, será irrealista? Ou será mais um serviço
aos seus amigos americanos da CIA?
Aplicar um princípio
democrático, é precisamente o que propõe Soares. Isso só é surpreendente,
porque a Democracia funciona pouco. Nas autarquias são os dinossáurios, em
Bruxelas são os burocratas, nas administrações são os boys, nas finanças são o Banco Mundial ou o FMI (cuja receita
Portugal está a aplicar mesmo sem a isso ser obrigado).
Se a Democracia
funcionasse junto dos imigrantes, por exemplo, os fluxos clandestinos seriam
rapidamente legalizados e normalizados em vez de explorados até à escravatura.
Se esse fosse o caso, os terroristas não poderiam usar auto-estradas encobertas
de circulação de pessoas e bens que alimentam o Ocidente de mais valias ilegítimas,
utilizando as fronteiras territoriais e financeiras (ditas off-shore) das
trocas desiguais.
Quem não gostaria
de perguntar ao Bin-Laden que relações mantém com os serviços secretos dos
países mais relevantes do mundo e com a Arábia Saudita? Se ele pudesse
responder, muita coisa poderia mudar.
Presunção de inocência
Lisboa, 14 Março 2004
Quando somos vítimas
de um crime, temos tendência a reagir em auto-defesa, seja ela legítima (defesa
pessoal directa) seja ela retaliatória (premeditação vingativa, como
manifestação de força pressuasiva).
O Estado de Direito
aceita a primeira reacção mas criminaliza a segunda. O Direito coloca-se nessa
brecha de incerteza sobre o melhor modo de actuar e projecta numa entidade
superior (os Tribunais e o Estado) a decisão definitiva sobre o modo como as
partes se poderão sentir novamente integradas na mole, desejavelmente pacífica
e cordata, da Humanidade. Por isso, até a decisão oficial fixada, deve
presumir-se inocência dos acusados. O tempo que demora até à decisão deve
ser trabalhado para acalmar os ânimos.
O Direito e o
Estado de Direito, como a Democracia, não são nem se pretendem perfeitos,
embora às vezes o pareça quando ouvimos certos responsáveis. Todos devem
sujeitar-se ao contraditório.
Que o sr. Aznar
venha defender que os culpados deverão ser entregues à Justiça, está
conforme a Justiça. Que venha afirmar a “convicção moral” de que os
atentados de Madrid foram perpetrados pela ETA (e se não foram, poderiam tê-lo
sido) é politicamente compreensível e facilmente explicável. Vem na linha do
desprezo pelos factos exibido pelos partidos da guerra, que se continua a
discutir a respeito do Iraque.
Que os seus
defensores venham condenar os que aproveitam a ocasião para discutir (condenando-a)
a política externa da coligação de guerra é que não se percebe. A menos que
entendam a Democracia apenas como uma oportunidade de poder para os partidários
da violência pela violência na arena internacional, em contradição com a
doutrina jurídica ocidental.
Não falta nenhuma
legitimidade política ao pensamento – de resto reconhecidamente influente na
população espanhola e portuguesa – de que a aventura militarista (e securitária)
é uma causa relevante da animação da ameaça terrorista, como a lenha o é
para o lume. Que a discussão continue.
Terrorismo e Estado de
Direito.
Lisboa, 14 Março 2004
Do 11 de Setembro
ficou a noção de que actos tão repugnantes não mereciam nenhuma explicação.
Qualquer que ela fosse seria equivalente a uma justificação. O Médio-Oriente,
a situação do povo palestiniano, o subdesenvolvimento, a exploração do
petróleo, o imperialismo ou a globalização, nada deveria ser lembrado
porque nada justificaria a barbárie e a desumanidade. Nenhuma ideia política
explica ou justifica a violência.
Muita gente resistiu e reclamou contra esta
noção que transportava a política para um mundo de tagarelice inconsequente,
que é a noção que muitos europeus têm da política. De facto, o desencanto
e a descrença, à falta de instituições credíveis e fortes de regulação
económica e social, têm transformado a democracia representativa num exercício
de jenoflexão perante os poderes fácticos, das administrações, dos lobbies
empresariais, das redes de corrupção que não param de emergir a todos os níveis.
O debate em torno da veracidade das informações
disponibilizadas pelos serviços secretos sobre as armas de destruição massiça
cristalizou esta oposição de maneiras de ver: para uns, a falsidade, como de
costume, era um mero pretexto político (leia-se irrelevante, um expediente)
para lançar a guerra contra o inimigo. Outros entendem esse facto como mais
um golpe nas instituições democráticas.
O mesmo debate renasce com o monstruoso
atentado a Madrid, em 11 de Março. Como da outra vez, o chefe do governo
espanhol avançou contra o inimigo sem informações e decidiu reivindicar
para a ETA a autoria do crime apenas na base do seu interesse partidário na
peleia pelo governo do país. Quer dizer: são os titulares dos cargos políticos
os únicos a terem o direito de determinar, oficialmente e por vontade e
interesse próprios (quais exactamente?), os móbeis do crime.
A pergunta que se impõe é a seguinte: onde
está (ou pode estar) a independência da justiça dos Estados de Direito em
que se suportam as democracia ocidentais?
As
Liberdades
Lisboa, 5
Março 2004
O
problema é insolúvel. Como deixar agir livremente a besta que vive em nós,
de tal modo que não interfira com o mesmo exercício dos nossos semelhantes?
Se
pensarmos de forma mecânica, imaginaremos que lá onde houver menos gente e
mais espaço as liberdades serão maiores e mais fáceis. Na prática,
verificamos, é o inverso. As civilizações humanas menos densamente povoadas
tornavam as pessoas menos livres do que hoje em dia podemos ser. É que em
comunidades, apesar do espaço mais disponível, a dependência da Natureza
obriga os seres humanos a conjugarem esforços para ultrapassarem juntos as
dificuldades de satisfazer as necessidades básicas. Ao aproximarem-se uns dos
outros e estando, assim, mutuamente dependentes para a sua sobrevivência, os
laços sociais são ao mesmo tempo indispensáveis e sem alternativa. Faltam
alternativas porque falta gente.
As
comunidades são assim: intensamente vividas, com as mesmas pessoas enredadas
em laços que se estabilizam e se tornam rotineiros, tradicionais e
conservadores. Qualquer alteração do status quo é sentida como uma
violência imposta por poucos a todos os outros. As sociedades modernas
libertaram-nos disso. São densamente povoadas. Temos menos espaço para cada
um mas pudemos escolher entre diversas formas de solidariedade social. Na
verdade, somos obrigados a fazê-lo, o que nos dá uma trabalheira durante
grande parte da vida: estudar, casar, arranjar forma subsistência, estamos
sempre a inventar.
Ainda
que as nossas companhias modernas mais próximas – os nossos amigos – não
sejam capazes de produzir tudo aquilo de que precisamos para viver, os
estranhos acabam por nos fornecer tudo e mais do que precisamos, sem sequer
sabermos onde estão, como trabalham, o que pensam, quem sejam.
Confianças
Lisboa, 5
Março 2004
As liberdades são como as
miragens: chegados onde parecem estar reunidas as condições do seu exercício,
verificamos o logro. Nos desertos encontramo-nos tão sós perante o mundo, e
tão indefesos perante os semelhantes, que prescindimos voluntariamente das
liberdades, em favor do instinto de sobrevivência. Deus nos acuda. Ao contrário
reage o náufrago. Torna-se impaciente na longamente ansiada presença do seu
salvador: o abraço tende a ser fatal para ambos.
Historicamente, é quando
estamos mais fisicamente impedidos de nos movimentarmos, nas sociedades
intensamente urbanizadas, que a imaginação descobre entre a multiplicidade
de relações humanas possíveis aquelas que nos libertam, por mais uns
momentos. Fora disso, na luta pela sobrevivência na Natureza hostil, a
imaginação submete-se mais facilmente ao fatalismo dos poderes mágicos e
superiores.
Os modernos escolhem, entre
os seus conhecidos, aqueles a quem desejam chamar família, amig@s, colegas,
camaradas, parceir@s, companheir@s. Aqueles em quem depositarão a sua livre
confiança, sabendo que podem não ser retribuídos. Podem mesmo ser afastados
ou mesmo perseguidos.
Na prática, as liberdades
sobrevêm na espuma das sociedades complexas, mas nem todos delas podem
usufruir. Por um lado porque os recursos se fazem escassos, na exacta medida
em que se fazem desejados os ricos, acumulando riquezas. Por outro lado,
porque quem se sinta atraído pela riqueza material, torna-se rival do seu
mais próximo semelhante, amig@ e concorrente. E todos esses, ricos ou pobres,
estão dispostos a instabilizar a auto-confiança dos demais, na esperança de
assim conseguirem vantagens (outra vez materiais, as que melhor garantem as
outras).
Simbolicamente podemos
resumir o que queremos dizer à modernice do triângulo amoroso. Ninguém sabe exactamente que parte da atracção humana é
genuína e que parte é interesseira, já que qualquer delas (talvez mais a
primeira) é fugaz, mas sabe tão bem ...
Os medos
Lisboa, 5
Março 2004
Na prática, as
liberdades sobrevêm na espuma das sociedades modernas, mas nem todos
delas podem usufruir. As sociedades pacíficas vivem, por isso, cercadas
de medos, um pouco no mesmo sentido que as aldeias vivem cercadas de
florestas mágicas. Nunca temos a certeza de que estamos a conquistar a
floresta ou se é ela que nos ameaça às portas ou mesmo dentro de casa.
Levantamo-nos de manhã,
bem dispostos, cantamos para nós mesmos: “What a beautiful world!?!”;
não queremos saber das razões de queixa que temos do mundo: “Don´t
worry! Be happy!”. Sorrimos quando fazemos exercícios chineses de
descontracção e concentração. “What
ever will be, will be!”. Na rua, desempregados,
à procura de uma identidade perdida, queremos aproveitar a liberdade dos
desertos, mas só nos lembramos do abraço do naufrago. É como estar numa
prisão, mas com um pátio enorme, a perder de vista. A tortura, para já,
não é física: devemos cumprir as normas de boa convivência social. Mas
ao mesmo tempo, do outro lado, as falências fraudulentas, a fuga às
responsabilidades para com quem trabalhou, a espera do subsídio de
desemprego, a ausência de ajudas para o emprego, as restrições de
trabalhar nos biscates, a humilhação de resposta obrigatória às
chamadas administrativas arbitrárias, a falta de sensibilidade e de
respeito.
O abuso de confiança
que o Estado, em nome da sociedade, exerce contra aqueles que caiem em
desgraça abriga-os a voltar à vida na floresta, sem que as pessoas
estejam para isso preparadas, sem que possam sequer encontrar entre os
seus semelhantes quem possa ter competências para o ajudar a sobreviver.
Rapidamente tal abuso passa a ter efeitos físicos, talvez por fome, por
depressão, por desgosto, por suicídio. Numa palavra: falta confiança
para ultrapassar os medos. Falta liberdade para se sentir human@.
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