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BLOGada (blogadapad.blogspot.com)


A Prisão de Monsatã: haverá torturas boas?

António Pedro Dores, 2007-06-22

“A multiplicação de intervenções judiciais, quer na área da administração pública quer no domínio da sociedade civil, por questões de ordem financeira e económica, e ainda o agravamento da perigosidade e gravidade das violações da lei penal, não apenas económicas mas sobretudo contra os valores da vida e dignidade humanas, apontam para reconhecer que a sociedade europeia de confiança tende a não ser o modelo em vigor: (…) [vive-se uma] deriva das sociedades de confiança para a instabilidade crescente”,

Adriano Moreira, “A Sociedade de Confiança” em Diário de Notícias 2007-06-19:10.

Da tortura quer-se distância suficiente, de modo a ser visível o esforço público para a sua erradicação, conforme é obrigação internacional do Estado português por via da ratificação da Convenção contra a Tortura da ONU. Não deve haver nenhuma ambiguidade, controvérsia ou ténue demarcação entre o que seja ou não tortura. Porém, a recente abertura da cadeia de Monsanto traz para a actualidade portuguesa a discussão miserável e decadente das fronteiras legais da tortura. Em vez de se estimularem as instituições e os funcionários a manterem distâncias suficientemente claras e inequívocas de situações que possam aparentar tortura, é-nos imposta a questão sobre os tipos de torturas toleráveis.  

Será tortura impor a sujidade como regra? A lavandaria em Monsanto só trabalha de quinze em quinze dias. Será tortura impor um regime de permanência em cela durante 23 horas? Esse é o tempo máximo de fecho, segundo os padrões internacionais. Será tortura impedir o contacto físico entre os detidos e as visitas? Nos países mediterrânicos as pessoas cumprimentam-se tocando-se, com apertos de mão, abraços e beijos. Será tortura impor algemas sempre que o detido sai da cela, por exemplo para telefonar com uma mão atrás da outra a segurar o auscultador? Será tortura impor a solidão radical, incluindo na hora do magro recreio? O mórbido definhamento físico e moral por insuficiência de exercício – incluindo a impossibilidade de trabalhar – é um crime contra a integridade física? 

A solidão foi regra primeira utilizada no tempo de Alexis de Tocqueville para assegurar a penosidade das penas de prisão: concorriam com as penas de degredo e de estigmatização física, ao uso na época. A doutrina da solidão foi abandonada posteriormente, uma vez assegurada a hegemonia da prisão como pena de referência e quando se tornaram evidentes os resultados monstruosos da sua aplicação na saúde dos detidos. Facto é que se considerou, mais recentemente, o uniforme prisional uma forma de humilhação desnecessária, a evitar. Será tortura fazer abrir sistematicamente a boca dos reclusos para supostamente assegurar não se esconder aí nada de ilícito, na hora das visitas, separadas dos reclusos por vidros inquebráveis? Desconfiarão de que a oportunidade possa ser usada pelos próprios guardas vigilantes dos reclusos nessas audiências? Será tortura vasculhar o interior do corpo do recluso quando a uma autoridade administrativa qualquer lhe apeteça? É isso feito nas alas livre de droga?  

Porque se chamará de alta segurança uma cadeia para onde se levam detidos para serem sujeitos à experimentação dos limites da tortura? Percebe-se a segregação dos presos mais odiados pelos serviços. Para organizar a retaliação covarde contra quem dá mais trabalho, por incapacidade de adaptação ou problemas mentais, segundo o critério arbitral de quem seja encarregue de encher a nova cadeia, em tempo de sobrelotação. Tais castigos, na prática – atenção – também afectam guardas e outros funcionários, cujo equilíbrio emocional – como seres humanos – fica afectado por situações de terror, ainda que nelas colaborem impunemente. Na realidade, como mostram as experiências dos campos de concentração alemães, todo um povo fica afectado quando admite às instituições a aplicação de políticas imorais, mesmo quando não são assumidas publicamente.  

A arbitrariedade dos castigos informais (sem registo) passou a estar (ilegalmente) institucionalizada em alas de (in)segurança em diversas cadeias pelo país fora, desde o ano 2000. Foi um prelúdio do que se passa agora em Monsanto. A lei permite castigos de isolamento com um máximo de 30 dias. Nas alas de segurança pode ficar-se anos, sem nunca se saber quando dali se sai porque, malvadamente, não são informados os reclusos de quando lhes acaba a pena. É um castigo diário de expectativas frustradas: será tortura?

As alas de (in)segurança não impediram os homicídios nem os suicídios. Pelo contrário: há registo de denúncias de tortura em alas de segurança que valeram ao denunciante ameaças de morte: só não foram concretizadas – como aconteceu noutros casos – porque as autoridades foram informadas da situação a tempo e decidiram proteger a pessoa dos denunciados. Encontrámo-la, entretanto, mentalmente fragilizada e doente no Hospital Prisional. Pudera!

Vale de Judeus era, até agora, a única cadeia de alta segurança portuguesa. (A criminalidade e as condenações são baixas, como as penas previstas por lei, limitadas ao máximo de 25 anos. Da inexplicavelmente longa duração média efectiva das permanências na prisão – 3 vezes a média europeia – resulta uma das mais altas taxas de encarceramento da Europa Ocidental). Monsanto inaugura – fora da lei – uma época de terror ameaçador para os presos contestatários das ordens e arbitrariedades da administração. Tal estratégia jamais funcionou em pacificação nem das prisões nem da sociedade.

Foi precisamente em Vale de Judeus que ocorreram uma séria de homicídios no Outono de 2001. Quiçá por causa da segurança ser alta, o julgamento dos casos ainda não foi feito, mais de cinco anos depois. Porque “a PJ nunca descobre nada nas prisões”, como explicou um antigo alto responsável dos serviços prisionais. Também na China não é por se condenarem à morte pessoas acusadas de corrupção que a corrupção vai acabar, como é evidente a esta distância. É portanto certo: além do terror, mais nada restará desta triste iniciativa do Estado português, a não ser a nossa vergonha colectiva por termos aceite os dedos pelo corpo a dentro. Segurança resultará, antes de mais, de transparência, da assunção de responsabilidades e da viabilização da confiança nas instituições.

Quando o primeiro-ministro português referiu, em Moscovo, não querer dar lições de Direitos Humanos a ninguém, tinha em mente a autorização para Monsanto funcionar em regime penitenciário falhado faz cem anos? Que mais se prepara sem anúncio ou debate público? Terá algo a dizer a comissão parlamentar fiscalizadora dos direitos, liberdades e garantias em Portugal?


António Balbino Caldeira

2007-07-21

António Balbino Caldeira alimenta um blog contra o sistema.

Impressionado com o processo Casa Pia e as (ir)responsabilidades do Estado neste caso foi levado a procurar respostas. E a incomodar muita gente poderosa.

Pelo que foi tratado de forma intolerável e impune, que julgávamos improvável depois da PIDE ter sido denunciada.

Sobre isso vale a pena ler http://doportugalprofundo.blogspot.com/

Tal correspondência sugere a possibilidade de haver processo causa-efeito, que apontaria para a confirmação da sua tese principal: a pedofilia não é apenas uma excrescência do sistema. É um dos cancros do sistema.  

Quando surgiram dúvidas públicas sobre o percurso “académico” de Sócrates, investigou o assunto. Persistentemente. Passados alguns meses tinha conseguido fundamentar as suas dúvidas na incapacidade de respostas do primeiro-ministro. A ponto de ser secundado pelos meios de comunicação de referência, permanecendo actualmente a questão nebulosa e alvo de processos judiciais para eventual esclarecimento – se alguma vez vier a ser possível tal coisa.

O anúncio público da iniciativa política do PM de instaurar um processo-crime contra António Balbino Caldeira é um acto de instrumentalização política do poder judiciário que não é próprio de um democrata com princípios. Como têm chamado a atenção vários sectores sociais, a democracia e a liberdade que lhe é suporte, estão em causa nesta fase da vida nacional. O medo dos advogados instigado institucionalmente, o medo dos empresários em participarem na vida pública, como veio a lume a propósito da contestação à Ota, o medo de existir do José Gil. O sebastianismo estimulado pelo voyeurismo televisivo sobre os supostos radicais, que tem promovido o salazarismo e o neo-nazismo na praça pública.

É melhor prepararmo-nos para lutar pela Liberdade.


 

A censura do chefe da oposição

2007-04-19 

A novela da atribulada vida académica do primeiro-ministro está a ser secundada por um debate despoletado pela acusação de falha de carácter que lhe lançou o chefe da oposição. E se foi preciso os jornais insistirem na tecla da vida académica de Sócrates para que o líder do PSD levantasse a questão de carácter dos políticos – como o tinha feito anteriormente a respeito das eleições autárquicas, para dentro do seu partido – talvez isso venha a valer a pena, isto é, possa ter consequências práticas na política portuguesa.[1]

Ouvi dizer na televisão que a questão do carácter dos políticos não deveria estar a escrutínio público ou político. O que me parece inaceitável em democracia é que os dois argumentos (a censura do debate e a censura do político) sejam alegados conjuntamente. Das duas uma: o debate está na praça e quem não gosta abstém-se; se não se abstêm, que sentido faz estar no debate para dizer que o debate não deve existir, sem explicar porquê?

Este problema tem a ver, nitidamente, com a prática dos órgãos de comunicação social de destacarem políticos para o seu serviço (como acontece com outras empresas do campo financeiro, energético, etc.), para animarem fora de comentários políticos. Como tem a ver com a qualidade da democracia portuguesa, autista e cada vez mais isolada da vida a que falta cidadania. Quando quem comenta não o faz desinteressadamente, produz-se uma enorme confusão entre a tentativa de fazer pedagogia – fazer opinião para povos livres e democráticos, bem formados – e a tentativa de controlo da opinião pública e publicada. Esta rede de conspirações entre partidos e meios de comunicação social faz e desfaz primeiros-ministros e governos, gerando a instabilidade política que emerge da falsa estabilidade produzida nas urnas pela mesma cumplicidade da comunicação social e os políticos, denunciada entre outros por Santana Lopes.[2] Vivemos em Portugal a instabilidade política estabilizada e pouco democrática.

Voltámos à noção de que o povo português não está preparado para assistir e participar em certas discussões, como as do carácter dos políticos, que por isso devem ser censuradas? Ou o que é democrático é organizar a discussão política de forma racional, ampla, participada e inteligível, em liberdade? A promiscuidade entre poder político e direcção dos media, que alegadamente deveria ser combatida pela privatização dos meios de comunicação, deve ser combatida ou auto-regulada?

Pessoalmente entendo a censura da censura de carácter como uma atitude política que pode até ser racional. Mas isso mesmo, a sua racionalidade, precisa de ser melhor debatida, entre comentadores independentes dos partidos/media de preferência, independentemente das suas preferências partidárias.

É racional evitar a demagogia e é fundamental combater o ódio na política. Mas se assim é, como se dá o caso dos cartazes no Marquês? Como fica de pé a mensagem de ódio – entretanto combatida pela polícia judiciária – e é apeada a mensagem humorística? Porque é que os tribunais não estão expressamente mandatados, nestes casos e noutros de emissão de mensagens sociais de ódio, para intervirem preventiva e pedagogicamente? Porque é que os cidadãos justamente indignados e disponíveis para agir civicamente contra o ódio estão democraticamente desarmados, à mercê da disponibilidade dos partidos políticos ou dos dirigentes das instituições – Câmaras Municipais, Procurador Geral da República – para lidarem com a serpente ainda no ovo? É que se os tribunais tivessem poderes para acolher de forma expedita petições contra o ódio e em defesa da democracia, também no caso das conspirações contra o primeiro-ministro certamente teria havido uma ou mais iniciativas de cidadãos a argumentar o inverso do que acredito: não é legítimo aos media levantar o problema de carácter do primeiro-ministro a propósito da vida académica, pelo menos enquanto este não sair de funções. Se um tribunal pudesse pronunciar-se sobre esta questão, qualquer decisão que tivesse tomado, desde que fundamentada na lei e na constituição – que é democrática – seria um acto político útil e de primeira relevância. A falta de capacidade dos sistema judicial em intervir politicamente lá onde faz falta à democracia, como é manifestamente o caso, por desconfiança e/ou inépcia dos partidos, sequiosos de poder, de todo o poder, faz com que Portugal esteja nesta situação ridícula na véspera de uma presidência da União Europeia, desnecessária e antecipadamente frouxa e desacreditada, qualquer que venha a ser a evolução dos acontecimentos.

O que parece vir dar razão aos que entendem que é melhor acabar com a liberdade para que os políticos possam, ainda mais tranquilamente, prosseguir os seus negócios que faz deste país ao mesmo tempo o mais pobre e o mais desigual e o mais economicamente comprometido da União. Mas de facto é o inverso que se passa: os partidos devem ser capazes de seguir o exemplo dos militares de Abril e, democraticamente, abrir mão dos seus poderes exagerados e imorais e entregá-los ao povo, nomeadamente formando um sistema de justiça que possa ser uma instância de recurso às fraquezas de carácter dos responsáveis políticos – que se manifestou em José Sócrates sob a soberba de insistir, sabe-se lá porquê, em assegurar ao mundo (ou a si mesmo?) o valor das suas credenciais académicas, manifestamente tão miseráveis como os indicadores de literacia do país.

O que falta ao povo português é liberdade. Falta-lhe um sistema judiciário que defenda, como lhe cumpre mas não é capaz, a liberdade de todos e de cada um, incluindo o governo e o seu primeiro-ministro. Isto porque os partidos portugueses (todos, incluindo os que estão fora do arco do poder) se entendem como sorvedouros de poderes públicos e privados à custa da inibição de órgãos de soberania deficitários, como é manifestamente a judicatura e como passou a ser também, a meio do mandato, o governo.

É claro que a felicidade não está à nossa esquina. A persistente e cada vez mais profunda crise da justiça, que o Presidente da República significativa e surpreendentemente resolveu desvalorizar, deixou os tribunais a pender mais ainda para a tese da ditadura e do ódio, como o demonstram os extraordinários acórdãos legitimadores da violência doméstica e da censura jornalística em caso de eventual ofensa à honra de entidades poderosas com a verdade (outra vez a verdade no caminho dos poderosos que pretendem manter-se irresponsáveis). A falta de preparação e de auto-responsabilização das magistraturas portuguesas e a recorrente chocante irracionalidade do sistema judicial e das decisões que profere, possível pela manutenção persistente de uma situação que atravessa e mina toda a II República, não se ultrapassa de um dia para o outro, nem se ultrapassa subtraindo competências a este pilar da democracia política. Nem é ultrapassada por políticos que desvalorizam a moral e a ética, como gostam de fazer os economistas mas não devem fazer os políticos.

Voltando à vaca fria, como é possível que, no mesmo governo, um ministro despeça um assessor por ter usado um fax do seu gabinete para enviar uma mensagem pessoal para a comunicação social, por alegada incompatibilidade de mistura de funções públicas e actividades privadas, e outro ministro alegar comportamento exemplar do primeiro-ministro que usou timbres e fax públicos para trocar correspondência com um influente professor de uma universidade durante a realização do seu curso superior? Como é possível quem apoie o primeiro-ministro vir censurar a censura de carácter do seu primeiro, sem se ter indignado – ainda que menos intensamente – com a atitude do ministro que despediu o assessor? Há aqui, de facto, questões de equidade e balanços morais e éticos que são relevantes de ver esclarecidos: haverá duas classes de cidadãos em Portugal? Os assessores cujo comportamento ético escape ao controlo dos ministros podem tornar-se primeiros-ministros impolutos? Os últimos ficam autorizados em partilhar livremente e a seu bel-prazer os recursos naturais e institucionais do país e os primeiros devem ser mantidos envergonhados e condenados, excluídos do debate político, reduzidos a fiéis funcionários? Não é por isso que alguns concidadãos perguntam, cada vez mais abertamente, que no tempo do Salazar, como agora, onde está a diferença? Não será melhor para a democracia afirmar, confirmar e defender essa diferença? Não será de dar prioridade ao combate ao medo, à auto-censura e à desmobilização de operadores judiciários, jornalistas e cidadãos perante o poder desmesurado da partidarite portuguesa?

[1] Não tenho vida partidária e não sinto nem jamais senti qualquer simpatia pelo PSD, com ou sem PPD. O contrário é mais certo.

[1] O Santana jamais deveria ter sido empossado primeiro-ministro. Foi-o por razões que o Presidente Sampaio jamais explicou, eventualmente por ser inexplicável também para ele.


Viver bem a liberdade

para o 25 de Abril de 2007

A liberdade é um sentimento descontente que nos exige a co-libertação de terceiros para aumentar o património comum.

Alexis de Tocqueville, pai do liberalismo, contraponha o valor da impetuosa paixão democrática dos povos (a proclamação do direito à imitação dos comportamentos dos mais poderosos) à sabedoria subtil dos aliados dispostos a evitar o despotismo (a vocação dos políticos liberais). Ao calor da fusão emocionante de nos impormos uns aos outros como formalmente iguais, independentemente da origem ou da condição social, opôs o autor clássico a racionalidade das práticas da Antiguidade, do “cuidado de si” com que eram formados os príncipes helénicos de que nos falou Michel Foucault na Hermenêutica do Sujeito, segredo do sucesso da primeira forma de democracia política.

A democracia é uma forma de convívio social, mas a liberdade é responsabilidade de se conduzir a si próprio e se projectar para cima de tal convívio, em nome de si mesmo: o ser humano livre. A democracia estabelece-se e defende-se, a liberdade exercita-se e afirma-se.

Dos valores emblemáticos da Revolução Francesa, foi a democracia que impôs o Terror aos aristocratas? Ou terá sido a liberdade que ordenou o Terror? E na luta contra o terrorismo? Se o custo da implantação da democracia no Iraque é o que se vê, terá sido a liberdade que encomendou tal serviço?

A liberdade filosófica representa o esforço espiritual, mental, intelectual, racional (há várias maneiras) de se elevar o sentido das vidas singulares a níveis de realidade superiores, entendidos por poucos. Essa liberdade pode ser traduzida em termos cognitivos, como nas Luzes. Outros preferem fixar critérios bélicos ou económicos ou estéticos, admirando conquistadores e opressores ou especuladores e exploradores ou artistas e profetas. Desde que sejam bem sucedidos, a história tende a desvalorizar os métodos de exercício de tais liberdades e a enaltecer as heranças recebidas, em património, pela humanidade. Frequentemente, na história, os fins justificam os meios.

Por isso, temos que agradecer pessoalmente aos militares que, na Revolução dos Cravos, fizeram equivaler aos olhos do povo português democracia e liberdade, ao entregarem o poder conquistado pelas armas, aos civis, mais preparados para exercerem e desenvolverem formas de liberdade menos abrasivas.

A levarmos a sério as críticas, nem sempre subtis, à nossa frágil democracia política, que foi também a oportunidade de libertação social, podemos suspeitar – e asseverar ser certa – a inconsciência popular sobre o valor da liberdade. Que lhe foi oferecida. Porque lhe foi oferecida?

Um terço de século recorrido sobre a libertação política, não só os jovens que têm dificuldade em entender os perigos do despotismo que se entrevê no ressuscitar da libertação das ideias do Estado Novo. Também o geriátrico Supremo Tribunal de Justiça deixa sem voz, de estupefacção, a liberdade de imprensa, condenada por dizer a verdade mesquinhamente inconveniente. Decisão tomada nas piores circunstâncias históricas, quando o estado de direito está em causa não apenas em Portugal mas no mundo.

O fim surpreendente da Guerra-fria tornou vitorioso, sem batalha final, o partido da liberdade. Mas estará as liberdades asseguradas? Que tipos de liberdades são prosseguidos, além da liberdade de circulação de capitais? A de procurar da sabedoria? A de ter garantias de solidariedade na doença e na velhice? A de ver reconhecida a dignidade social do labor de cada um, conforme as suas possibilidades? Digam lá, oh leitores livres!


Os segredos da administração: quem tem interesse em mantê-los?

2006-11-16

Sucedeu-me entrar em estado de ansiedade no dia anterior à visita da repartição pública. Pior do que a ida a um dentista! Enchi-me de toda a calma do mundo, com o único fito de procurar perceber como me poderia desenvencilhar da embrulhada em que estava metido, disposto a aceitar passar por cima de todas as enormidades que me pudessem meter no caminho. Não vale a pena por em causa a saúde e a sanidade mental por causa de um registo de um apartamento. Tinha decidido. Estava decidido.

A questão é “complexa”: quando encontrei, por acaso, um amigo advogado, levantei-lhe a questão, só para ele se aperceber de como eu era infeliz. Só a mim é que me acontecem coisas destas! “Tenho uma decisão judicial que me é favorável e a administração recusa-se a cumprir a decisão.”

- “Isso não pode ser! Onde já se viu?”

Explico-me melhor. Paguei ao tribunal o valor legal do apartamento para durante oito anos apreciar todos os ângulos (imagino) do meu direito de preferência, na qualidade de inquilino, sobre transacções que os sucessivos proprietários fizeram do direito de propriedade, sem me darem oportunidade de exercer tal direito. Ganhei o processo. Durante todo este tempo o proprietário voltou a vender o apartamento, sem informar o inquilino, que estava à espera do tribunal. Pode registar a transacção, porque a reserva do registo – que é indispensável para dar início ao processo judicial – caduca automaticamente ao fim de uns meses. Longe dos oito anos.

- “Ah! O trato sucessivo!” Diz o meu amigo, feliz por ser competente na matéria – “É que os registos também obedecem a leis próprias.”

Que não podem ser ultrapassadas? Também para o Zé a questão era oblíqua. Afirmar que uma decisão judicial deve ser acatada pela administração, não pode seguir-se um ponto final. É que a lei administrativa também é lei. Quiçá uma lei superior, já que entra em vigor assim que a lei comum acaba.

Esta “dialéctica” enfureceu-me: que será que esta gente – simpática, de resto – aprende na escola? Será que ficam mais confusos de tanto aprenderem? Ou será que estou a simplificar demasiado os princípios? E os princípios devem ser como que moldados à comodidade dos funcionários? Explico-me melhor: será que até os advogados aprenderam e interiorizaram que os regulamentos internos de cada departamento do Estado são foros de autonomia, prioritários no seu próprio território relativamente a todas as outras leis? Face à contradição entre a decisão de tribunal e a lei administrativa vence (será exagerado dizê-lo) não obstaculizar o cumprimento da primeira.

O resultado prático é este: o tribunal assegura-me o direito de preferência e fica-me com o dinheiro da transacção para garantir que ela se processa a meu favor. O registo predial não aceita fazer o registo sem que o actual e proprietário registado seja chamado à liça, não se dispondo a própria conservatória a fazê-lo, visto estar aparentemente fora das suas funções. Como caso transitado em julgado não pode voltar a tribunal, estou na posição do estudante que terminou o secundário mas não pode seguir para a universidade por falta de vagas. Ou o desempregado de quem o patrão fugiu, sem subsídio de desemprego. Fica no limbo: nem pode (nem lhe interessa) voltar para trás. Mas também não pode ir para a frente. Faz então como em informática. Desliga tudo e arranca do início. Só que ao contrário dos computadores, a sociedade não funciona assim. Ou melhor: uma sociedade que funciona assim é Portugal.

Reclamei da posição insustentável da conservatória, que para mais me atendeu como minha adversária nesta questão, dando-se ao trabalho de me amesquinhar com pequenos truques que só o poder administrativo é capaz de engendrar, na sordidez kafkiana dos ódios degenerados que alimenta aos incómodos utentes dos serviços monopolistas. Por resposta às minhas queixas recebi missivas simpáticas de diferentes tutelas, evasivas e minimalistas. Não sei se por acaso, quando passados uns meses voltei a ter coragem de enfrentar a besta, para minha surpresa a conservadora tinha mudado. Parecia, esta última, uma pessoa normal. Capaz de perceber o que eu lhe dizia. Preocupada em evitar esforços vãos. Capaz de reconhecer as deficiências do serviço e as dificuldades da situação, sem mostrar ostracismo ou procurar vingança em truques baixos. Não estava a ser atendido por uma dentista. Prova-se que é possível, sem reformas, viver de outra maneira.

E aqui chego à questão que me traz à escrita. As reformas estruturais. Portugal não deixou de ser um país governado por quintas e quintais. Na conservatória, acontece que, eventualmente, as coisas tenham voltado à normalidade depois de uma experiência psicossocial. Ou será que a rotação de funcionários resolveu por acaso o problema? Não sei. Mas não deveria saber? Não deveria o queixoso ser informado de todas as implicações da sua conduta? Basta que suspeite, sem saber, que uma queixa – sem exemplo – teve resultados práticos? Quem tem interesse em esconder do público a avaliação dos serviços públicos?

Estão a ver onde quero chegar? A quem interessa (ou não) que um comportamento censurável e penalizado de um funcionário não seja público?

Os utentes – muitos, como é o meu caso, são funcionários públicos também – confrontam-se com a retórica política da necessidade de avaliação rigorosa e com consequências dos desempenhos. Mas na prática, para que a dança das cadeiras se faça sem interferências e com um mínimo de critérios, e principalmente para que o público não se habitue a que as reclamações podem (e devem) ter consequências, a administração – não são os funcionários – fazem segredo das avaliações que fazem das (raras) queixas dos utentes. Preferem manter a ideia de que não há consequências das queixas, que é o que alimenta o espírito de resignação das pessoas, tratadas como estúpidas, sentindo-se estúpidas, ficando estúpidas de facto e na prática. Como aquelas funcionárias que terão (espero) sido castigadas por me terem tratado mal. Muito mal.


Estilos de vida radicais, mesmo!

2006-11-14 

Na vida prisional o dinheiro não pode ser exibido. Deve ser escondido. Nisso contrasta com a vida no exterior, em grande medida vivida para trocar formas de exposição de posses, reais ou virtuais, de bens cujo valor é monetário mas principalmente simbólico.

Na sociedade líquida, de Bauman (2000), os formalmente todos iguais perante a fluidez fiduciária encontram-se de facto todos diferentes perante apelos de consumo funcionalmente similares – ainda que com comodidades e efectividades diversas. O horror à normalização burocrática, às tradições, às instituições, é culturalmente manifestado pela manipulação da apresentação radical dos corpos, que alguns tem a coragem de manipular de forma irreversível, com piercings ou tatuagens, nomeadamente através dos ditames da moda e dos gangs juvenis do momento. Nas prisões, os cortes e o excesso de suicídios e de mortes em geral radicalizam o uso do próprio corpo, como manifestação e reclamação contra o isolamento social. Ser igual quer agora dizer fazer para ser diferente: ser capaz e competente para manter o puzzle sempre em reconstrução das identidades tradicionais roubadas, pela recusa de considerar a memória, pela desconsideração da autoridade, pela experiência de viver o momento pelo momento, como se fosse único. Como se tivesse que ser anti-social.

Do mesmo modo que chamamos ao acto de adquirir um Jaguar ou um Panda, comprar um carro, da mesma maneira que dizemos comprar uma casa tanto quando uma família prescinde de se alimentar convenientemente para apostar num futuro melhor, através da aquisição de uma casa com um mínimo de dignidade, como quando se investe especulativamente em empreendimentos de luxo (ver Bourdieu 2001), é na qualidade dos negócios que fazemos nos diferentes mercados que se define o nosso estilo de vida. Fora dos mercados somos todos virtualmente iguais. É na nossa atitude perante os mercados que nos tornamos diferentes.

Estilos de vida referem-se, como sempre na sociologia, a duas realidades (ideo)logicamente contraditórias, combinadas de certa forma prática no dia a dia: as baias de classe no acesso aos recursos sociais de apropriação, que condicionam as potencialidades de participação nos diferentes mercados de cada pessoa, e as intencionalidades mobilizadas por cada pessoa para orientar a sua própria vida. O sistema e a agência. A urgência e o direito.

Uma parte importante das pessoas prefere jogar pelo seguro e fazer da modernização tradição, enquanto pode. Que a urgência da transformação do sistema, induzida por outros (os tecnocratas ou os revolucionários, por exemplo) seja moderada: que a resistência à mudança possa evitar a erosão mais radical das sociedades e das pessoas que nela se consomem. As expectativas sociais estabelecem-se muitas vezes aspirando a serem capazes de manter os níveis de consumo já conhecidos, ao mesmo tempo imaginados como únicos e iguais para todo o mundo (ver ideologia da classe média norte americana, ou o conforto da macdonaldização do mundo). Mas todas as pessoas aspiram, com medo e em sonhos, na perspectiva de virem a ser verdadeiramente iguais a todas as outras, isto é aos seus modelos de referência, que podem ser os pais, os professores, actores de cinema, personagens poderosos na sua tranquila sapiência ou na sua invencibilidade física ou na sua esperteza prática. Os estilos de vida são o resultado prático, singular e massificado, da construção social ao mesmo tempo imaginária e real, capaz de reunir explorados e exploradores, dominados e dominantes, ignorantes e sábios, chefias e subordinados, em torno de uma modernização igualitária e diferenciada, conforme a capacidade de luta social e consoante a capacidade de capitalizar os processos de fechamento social.

A precariedade destes resultados é compensada pela constante aceleração – da moda, da economia, da produção de informação, da propaganda, do medo e da insegurança – que transforma a tradição em museu, a esperança em ideologia e o presente em alguma coisa que precisa de ser explicado como se tivéssemos todos 4 anos … que é o que abre espaço à produção sociológica.

Os estilos de vida são, ao mesmo tempo, uma reacção de adaptação à (im)possibilidade de iniciativa com que nos provocam e humilham quotidianamente e a manifestação da nossa disponibilidade de participar no jogo da competitividade. Como disse Bush: “para reagir às adversidades da guerra vamos às compras para os centros comerciais” (tradução de memória).

Estar preso numa sociedade em processo de modernização significa a exclusão administrativa deste jogo de construção por medida de estilos de vida chave-na-mão. Isso é evidente na gestão dos dinheiros do preso, que são retidos pelas administrações prisionais. A vida do preso é a resistência contra essa exclusão, através da aquisição de roupa de marca, de produção de tatuagens, de exercícios físicos tipo body-building, e, mais frequentemente, do ócio radical. No extremo, a greve de fome. Para ver se o Estado é imune ao desaparecimento de um preso. Mas como com todos os outros, o estilo de vida do preso é intimamente contraditório: não há fome que não dê em fartura. À exclusão mais radical que se pode imaginar contrapõe-se a disponibilização por parte de serviços apropriados das maiores tentações: álcool, telemóveis, tabaco, medicamentos, drogas. Em segredo. Parece que ninguém sabe. Sim, porque é proibido?!?

Na prisão aprendem-se estilos de vida radicais. Tal como naquele elástico que nos suspende numa ponte, ora estamos a ser abandonados pelos mercados, ora descobrimos que estamos, afinal, agarrados pelos tornozelos.

Bibliografia:

Bauman, Zygmunt (2000) Liquid Modernity, Cambridge, Polity Press.

Bourdieu, Pierre (2001) As Estruturas Sociais da Economia, Lisboa, Piaget.

Kaminski, Marek M. (2004) Games Prisoners Play - The Tragicomic Worlds of Polish Prison, Princeton University Press.


Observatórios de política ? o caso da segurança

2006-11-01

João Correia propôs instituir observatórios de política. Ora aí está uma iniciativa que tornaria o MIC um instrumento único de democratização da sociedade portuguesa, na condição de não pretender ele próprio beneficiar disso ? aliás, porque o faria, já que não é um partido político e não tem aspirações à governação?

Tomemos o exemplo das questões de segurança. Perante a ofensiva securitária global, desde as prisões extra-territoriais, as colaborações extra-institucionais entre serviços de inteligência, a legalização da tortura, os voos secretos em aviões particulares de prisioneiros por todo o mundo, a negação de direitos fundamentais a estrangeiros, a pressão da guerra contra o terrorismo que tanto impressiona certos governos desejosos de estarem nas boas graças dos poderes fácticos, que podem os partidos políticos fazer?

No caso português, se nas políticas prisionais há ténues sinais de estarem a mexer-se sectores anti-securitários, por exemplo com consequências visíveis na tendência de queda do número de presos e, de forma mais voluntarista, no fim do regime inconstitucional de inacessibilidade dos detidos ao Serviço Nacional de Saúde, já no caso das polícias, ao invés, os sinais de agravamento das tendências securitárias são evidentes ? nomeadamente nas queixas públicas dos titulares da Inspecção-Geral da Administração Interna, ambos, um à saída e outro à entrada, queixosos do alheamento sobranceiro da tutela perante as suas funções, cujas consequências práticas se medem no número de mortos por agentes da autoridade em serviço (dito pelos próprios).

Seja nas prisões, seja no comportamento das polícias está muito mais em causa do que a repressão dos bandidos. Se fosse só isso, não haveria tantos bandidos à solta e até próximos das benesses do poder! Está a causa a ética da nossa civilização, a legitimidade das instituições, a moral social, os alicerces da sociedade moderna, sem o que nem a economia mais neo-liberal poderá funcionar (aliás, é por aí que ela está a fraquejar, à custa de muitas vítimas).

Geralmente, a propósito de direitos humanos e de moral, somos muito bons e observar e condenar terceiros, seja os EUA ou a China, a Rússia a Colômbia, países africanos ou asiáticos que consideramos distantes.

Porém, provavelmente por boas razões, quando se trata de tomar conhecimento das misérias que se passam no nosso país, preferimos meter o assunto debaixo do tapete. Alguém que nos diga que isso foi um caso excepcional é suficiente para justificar a nossa desatenção e até compreensão. Não nos é possível, a cada um, estar a pôr em questão todo um modo de vida por causa de um incidente que, se fixado, nos destrói a imagem positiva que temos de nós próprios e do nosso viver. Como não é possível a um partido político que queira ter hipóteses eleitorais trazer à campanha temas repugnantes, ainda que sejam (de facto são) as bases da legitimação do próprio exercício da política e da democracia.

E aqui reside a contradição: a democracia, para se defender, deve esconder de si própria a mão dura do securitarismo, que, por sua vez, procura escapar-se ao controlo democrático, beneficiando das nuvens de fumo que a repugnância natural das pessoas e das sociedades produzem sobre a violência que em seu nome é desenvolvida. Um dos observatórios da política a organizar seria um observatório da segurança dos cidadãos e da democracia, dos direitos e das liberdades. Uma das tarefas a organizar imediatamente seria a de se informar e organizar o acompanhamento da implementação a nível global, mas principalmente nacional, do protocolo adicional à Convenção contra maus-tratos, tratamentos degradantes e tortura já subscrito por Portugal, mas suja implementação exige, de acordo com o tratado, entidades independentes do Estado capazes de, numa base regular, proceder a recolha de informações e a inspecções mais regulares que as instâncias internacionais actualmente creditadas para fazer isso já fazem. O próprio observatório deveria ser capaz de mobilizar organizações e pessoas para cumprirem em Portugal o protocolo adicional e manter sobre elas, bem como sobre o Estado, uma pressão crítica e democrática pelo respeito pelos direitos, liberdades e garantias legalmente estabelecidos e tantas vezes incumpridos. Haverá actualmente tarefa preventiva mais urgente?


Prisão, loucura, morte

2006-10-11 

A política penal é tolhida de forma cruzada pelo segredo de Estado e pelos preconceitos sociais mais profundos, de modo que se torna, por um lado, num tabu político e, por outro lado, num tema fracturante, isto é: divide os partidos políticos segundo o que se costuma chamar, de forma evasiva, critérios de consciência.

Face à recente legalização da tortura nos EUA, à menos recente política global de raptos de seja quem for que os serviços de informações possam entender poder ter informações sobre terrorismo (cinicamente chamadas “rendições extraordinárias”), à tolerância ou mesmo instigação de regimes penitenciários desumanos e degradantes, como em Guantanamo e Abu Grahib, que mais não são do que exemplos eventualmente mais desenvolvidos de a) políticas internas de intimidação das populações desfavorecidas através do encarceramento massivo, a pretexto do tráfico de drogas ilícitas, e b) da negação do curso do direito internacional (seja a Convenção de Genebra sobre o direito em condições de guerra, sejam os tratados internacionais sobre Direitos Humanos, seja o Tribunal Penal Internacional) sempre que interesses ou cidadãos norte-americanos sejam alvos, há que concluir pela necessidade política de retomar, como no século XIX, intensa e publicamente, o debate sobre a utilidade, os custos e a moralidade dos regimes penais existentes e praticáveis. Com base na experiência prévia dos Gulag, dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos, das Convenções internacionais para a prevenção da tortura.

Seguindo o conselho de Manuel Alegre, quando citou no seu discurso de apresentação do MIC Homi Bhabha, um pensador indiano, em 2006-10-10 no Altis, a melhor maneira de pensar politicamente questões globais é pensar de que forma elas nos afectam no dia-a-dia, aqui e agora. Faz dez anos que o Provedor de Justiça publicou o seu primeiro relatório sobre o estado (deplorável) das prisões em Portugal. Várias ameaças de reformas depois e muitos mais escândalos mais tarde, apesar dos esforços que certamente muitas pessoas e instituições terão feito, o Professor Freitas do Amaral escrevia que seria preferível dar um prazo de 12 a 15 anos para que daquilo que são as prisões actualmente em Portugal as pudéssemos transformar em alguma parecida com a média europeia. Fevereiro de 2004. Foi a primeira e última vez que se falou publicamente de política de execução penal, qual pedrada num charco de silêncios ensurdecedores. Antes e depois.

Sabemos que discutir, anunciar ou legislar reformas seja do que for, para mais em Portugal, frequentemente não resulta em melhorias. Temos um problema crónico de capacidade de levar à prática as decisões políticas, que não é um traço pouco relevante da vida nacional, já que prejudica fortemente a credibilidade das decisões democráticas e desautoriza os órgãos de soberania. Ainda assim, ou por isso mesmo, merece toda a atenção, apoio e acompanhamento o relatório do grupo de trabalho Justiça/Saúde, (despacho conjunto nº72/2006) com o título “Plano de Acção Nacional para o Combate à Propagação de Doenças Infecciosas em Meio Prisional”, presidido por Graça Poças da Direcção Geral dos Serviços Prisionais e a principal intenção política que o suporta: o reconhecimento do direito constitucional dos presos a terem acesso aos mesmos recursos e cuidados de saúde de todos os outros cidadãos, acabando com o serviço especial que lhes tratava da saúde, e oferecendo aos prisioneiros acesso ao Serviço Nacional de Saúde em pé de igualdade com os restantes cidadãos, como é de Lei desde que há democracia.

É preciso que Portugal não alinhe nas políticas de destruição da independência das instituições judiciais em Portugal, na Europa e no Mundo, como alguns pedem e esperam que aconteça em breve, a reboque das políticas globais securitárias. Mas não basta resistir-lhes: é indispensável afirmar políticas alternativas de manutenção da divisão de poderes de soberania em nome do Povo – sob pena de os fundamentalistas, de lá e de cá, ganharem a guerra. Isso passa pelo mais rigoroso respeito pela Lei, contra a corrupção, contra a falta de avaliação de resultados práticos das políticas, contra a subversão administrativa das decisões políticas, contra alegações formalistas contradizendo a realidade dos factos e as evidências.

No caso das políticas penais, há que perguntar o seguinte: que guerra é esta da Lei contra a droga que prende massivamente os doentes, os alimenta clandestinamente dentro dos estabelecimentos prisionais aumentando os preços e diminuindo a qualidade do produtos proibidos, deixando abandonados e a morrer por falta de tratamento adequado aqueles que estão à guarda do Estado (Portugal mantém níveis de morbidade prisional 4 vezes e mais acima da média do Conselho da Europa), subvertendo a linha de comando no sistema prisional, impenetrável às políticas reformistas imaginadas pelos políticos, contra quem se viram as macabras forças vivas das prisões?


Credibilidade da classe política e corrupção

2006-10-05 

O PR, depois de acusado de se ter esquecido de integrar a corrupção no pacto de justiça que apadrinhou, vem aproveitar a onda da ética republicana para chamar a atenção da importância da luta contra a corrupção.

Pode ser por a minha irritabilidade já ter passado o prazo de validade e ter-se tornado crónica. Mas pode ser também por a hipocrisia dos nossos políticos não ter limites. Tudo me parece uma farsa. Senão vejamos:

a)      A justiça não funciona e, alegadamente, espera-se que o novo procurador a ponha a funcionar? Com certeza que não: espera-se, isso sim, que não chateie os senhores deste país, organizados em Pacto secreto, mas democrático a seu ver.

b)      Constou que o apito dourado não pode ter efeitos práticos porque os legisladores tropeçaram num óbice invisível, que ficou lá à espera de quem o descobrisse. Se fosse a primeira vez, agente encolhia os ombros e olhava de lado. Quando é coisa já vista, como foi no caso das facturas falsas ou dos fundos sociais europeus, quem me pode convencer que isso não é resultado de um processo prático intencional e manipulado?

c)      Se fosse eu que tivesse a mania das conspirações estava descansado. Mas sendo o procurador cessante quem descreve a sua vida no cargo como um jogo de tiro ao alvo, como não admitir, ainda que apenas como hipótese, que a vida portuguesa é feita, sobretudo, de conspirações?

Estou farto de ouvir perguntas feitas ao contrário. Quando se pergunta porque é que os portugueses se afastam da política, porque não se pergunta, em vez disso, porque é que os partidos afastam os portugueses da política? A resposta é simples: como dá muito dinheiro ir para a política – e o próprio não chega para todos – há que fazer uma selecção: só são aceites na política os portugueses obedientes e bem comportados, que se orientam pelo cheiro do vil metal. É uma maneira como outra qualquer de fazer a coisa.

Agora é o PR que vem manifestar a sua vontade de ver a corrupção combatida? Como? Através da tomada de consciência dos políticos para deixarem de ser corruptos. É uma primeira solução avançada. E boa, como se percebe logo. A segunda é que caso isso se verifique não vir a acontecer, que é pouco natural, nesse caso então – prova irrefutável da determinação do PR – a polícia será chamada ao caso.

Não fosse o caso do anterior PR ter passado dois mandatos a falar para os peixinhos, podia ser credível esta iniciativa. Mas infelizmente para os portugueses, não é esse o caso. O que falta, então? Falta tudo: políticas sistemáticas de rigor, de avaliação e de formação dos funcionários e das instituições do Estado. A transparência deve ser pedra de toque de toda a hierarquia do Estado, a autonomia técnica garantida e valorizada, a responsabilidade a todos os níveis estimulada e agradecida. Os meios do Estado devem ser investidos segundo estes critérios, seja em tempos de vacas gordas ou vacas magras. As más consciências e as polícias não têm nada a ver com isso. A política sim, tem tudo a ver.


Teorias da conspiração (I)

2006-10-05

É exemplar o comportamento da Pacheco Pereira no dia 4 de Outubro de 2006, véspera da comemoração da implantação da República em Portugal, quando a direita – para mostrar a esquerda que também é – decidiu dar visibilidade solene à figura de Humberto Delgado, cuja personalidade tem sido questionada pelos seus aliados da oposição democrática na campanha eleitoral que ia destronando Salazar. Activista contra o regime fascista, Pacheco Pereira, solicitado pelo Presidente da República sem currículo nessa área, disse que Delgado sentenciou a sua morte quando declarou o célebre “Obviamente, demito-o”.

Uns dias antes, como pude verificar ao ler a revista semanal onde mantém uma coluna, sem que tivesse sentido a contradição, vociferava na sua mesa de trabalho – tentando ironizar, mas sem conseguir realmente – contra as teorias da conspiração alvitradas pelo Procurado Geral da República cessante e pelo Partido Socialista, que constituíram o prato forte do mandato de Souto Moura. Portanto: se a Pide e o Salazar eram capazes de conspirar contra a vida de uma alta individualidade, na mente de Pacheco Pereira, tais conspirações – apesar de terem sido, como reconhece, o centro dos problemas jurídico políticos dos últimos anos – deixaram de existir em democracia. Prova disso? É que o próprio Pacheco Pereira esteve sempre contra a posição do Procurador e ele – isso ele sabe de certeza certa – não conspira.

O único problema é que eu voltei a ouvi-lo à noite, num clássico programa de debate político na televisão, onde, contra Jorge Coelho, alegava que em tempo de guerra não se limpam as armas e, sem perder de vista os direitos humano, era não apenas compreensível e admissível mas salutar que as margens da legalidade fossem bem exploradas: para que não fiquem dúvidas sobre o que queria dizer, que invadir um país vizinho era perfeitamente tolerável. O que significa, a menos de melhor explicação, que as conspirações podem e devem continuar a existir, que ele próprio está disponível para as encobrir em nome da guerra, na condição de serem as conspirações do seu lado.

Percebi perfeitamente.


Teorias da conspiração (II)

2006-10-05

No tempo das conspirações da administração norte americana contra o estado de direito, acompanhado de perto pelos terroristas seus aliados na guerra de civilizações – é que para dançar, sempre foram preciso dois – e pelo mundo ocidental, aterrado com a evidente necessidade de mudar de vida, não tanto por causa dos terroristas mas pela inviabilidade de continuar a destruir o planeta a ritmo acelerado, de continuar a explorar petróleo onde ele está a acabar para sempre, de continuar a matar à descarada milhões de pessoas pelo roubo organizado das matérias primas à custa das condições de subsistência das populações locais, dá jeito confundir tudo e criar nuvens de fumaça.

Acredito que haja gente sinceramente crente no dogma neo-liberal, isto é, que o problema é que as pessoas não tem tendência para trabalhar e é preciso obrigá-las à bruta, sob pena de se deixarem adormecer. Acredito mesmo que tal crença leva muita gente a ficar cega relativamente a tudo quanto possa apontar em sentido contrário às suas crenças e divinizar – essa é a essência do processo de dogmatização – aquilo que aparenta dar razão às suas convicções. Mas essa não é a condição do intelectual, do jornalista, do mentor de meios de comunicação.

Que tomem partido e se assumam na vanguarda da criação dogmática para consumo social não faz deles necessariamente conspiradores, já que modernamente existe aquilo que autores clássicos chamaram divisão de trabalho. Isso permite que um pequeno grupo de conspiradores assuma toda a responsabilidade, e todo o secretismo de vida pessoal, que decorre da conspiração propriamente dita, cuja eficácia depende do funcionamento burocrático das instituições, isto é do nível de abolia profissional e submissão pessoal praticado na vida quotidiana, nomeadamente no Estado e nas grandes empresas. Isso mesmo foi demonstrado pelos comunistas e pelos nazis. Isso mesmo foi recuperado, sob diversas formas, pelo capitalismo auto-destrutivo que partiu os dentes na grande depressão. Nem sempre suaves, como o mostra a caça aos comunistas dos anos 50 nos EUA ou a exclusão artificial dos comunistas italianos da grande conspiração entre a Democracia Cristã e o mundo do crime, que durou 40 anos.

As conspirações são como as bruxas. Imagino como elas gozam quando o assunto vem à liça, lançando sobre terceiros a suspeição que as torna invisíveis a olho nu, ao mesmo tempo que se apresentam publicamente pudicas. Isso é fenómeno recorrente na política, nos negócios, nas instituições como no mundo do crime, incluindo polícias. Só que apenas nestes últimos casos a sobrevida de pessoas está em risco. Pelo que é precisamente em casos em que a pacificação da sociedade não nos permite dar garantias de respeito pela integridade física das pessoas que as conspirações devem ser tão controladas e evitadas quanto possível.

Aqueles que entendem que tais tipos de conspirações devem ser liberalizadas, a pretexto de estados de guerra reais ou imaginários, têm necessariamente, ao mesmo tempo, que garantir a parcialidade radicalizada das forças que usam a violência, legal ou ilegal. Têm que garantir a eficácia da sua própria conspiração contra os partidos que entendem estar do “outro lado da barricada”. Qual profecia que se auto-realiza, não apenas a guerra mas também os inimigos surgirão com toda a certeza na sua frente, provando aquilo que perversamente queriam provar aos seus seguidores dogmáticos.

A lição da civilização ocidental é que é possível, ainda que precariamente, ultrapassar os instintos básicos das sociedades humanas, através da educação, da crítica e da auto-determinação. A curto prazo, através da separação de poderes e do respeito pelas oposições e pelas minorias. Será que vai ser possível salvar o essencial?


Corrupção, Pacto da Justiça e Estado de Direito

2006-09-14 

Corrupção, corruptela, poder, indiferença e medo são os temas destas linhas, provocadas pelo debate sobre o significado (misterioso) do pacto da justiça e por um pequeno grande evento na minha vida pessoal. Comecemos por aqui:

Ao fim de oito anos em tribunais, recebi decisão transitada em julgado que favorece o meu direito de propriedade sobre um apartamento, num caso simples de alegação de direito de preferência. A conservatória incumpre, recusando o registo de propriedade, alegando “dúvidas”. Dúvidas da conservadora. A mesma que se disponibiliza a ajudar-me a compreender a fragilidade da minha posição legal no seu gabinete.

Não suspeitei da senhora. Simplesmente achei inacreditável a situação. Só pode ser fruto da maior das incompetências que haja a possibilidade de as dúvidas da conservadora poderem ser levantadas através de uma conversa privada com uma das partes interessadas. Irritado, queixei-me a todas as instâncias que me lembrei. Descobri que o livro de reclamações é da responsabilidade da conservadora de quem eu queria fazer queixa. E que as outras três instâncias para que reclamei evitaram tocar no assunto, demitindo-se de o fazer num caso, enviando o assunto para a Secretaria de Estado competente noutro, dando razão à conservadora no caso da Direcção Geral da tutela.

É preciso ser poderoso para manobrar títulos de propriedade em Portugal? Parece que sim. Pelo menos tem que estar preparado para tirar dúvidas aos conservadores. Cujo trabalho não tem evitado a subversão da legislação sobre planos municipais, reservas territoriais ou outros instrumentos de ordenamento do território. Quer dizer: quem tenha títulos de propriedade beneficiou da sorte da administração não alegar “dúvidas”, que por incompetência ou má-fé qualquer conservador poderá alegar a qualquer altura, certo de que contará com a cobertura corporativa dos colegas e da tutela, independentemente do que os tribunais possam decidir? Esta hipótese é arrepiante. Mas é plausível. Explica os factos ocorridos.

Compagina-se bem com declarações de vários quadrantes institucionais de que falta em Portugal um Estado de Direito, sem que os órgãos de soberania do Estado se sintam obrigados a responder à letra a tal alegação, com excepção do Presidente Sampaio, quando disse que a Lei em Portugal tinha apenas o estatuto de sugestão. Não se tratou de ironia: em Portugal a administração pode ter prioridade sobre as decisões dos órgãos de soberania! Ou como diz alguma esquerda: é preciso estripar o que resta do fascismo. Ou como diz alguma direita: é preciso combater o estalinismo. Ou como dizem os liberais que têm convicções: é indispensável construir um Estado de Direito, para que a economia possa subsistir forte e auto-determinada.

O pacto da justiça recém anunciado tratará desta profunda enfermidade anti-liberal do Estado em Portugal? Não tem condições políticas para tal, infelizmente.

O pilar judicial do Estado foi palco, nos últimos anos, de conspirações cruzadas entre partidos e personagens montados em partidos. O que revelou a fragilidade profissional, ética e funcional dos órgãos de justiça portugueses e gerou um imbróglio a que ninguém vê ponta por onde pegar, a começar pelos agentes judiciais que, reunidos em Congresso faz uns meses, não conseguiram auto-regular-se, apesar da situação ameaçadora que vivem. E por isso se agudiza.

A última campanha para as presidências mostrou a discórdia (todos os partidos foram a jogo sós, preferencialmente a mal acompanhados), o descontentamento popular (traduzido na presença recorde de candidatos espontâneos com propósitos políticos, e não apenas folclóricos) e sobretudo a necessidade de ver atalhada a corrupção, a que todos os candidatos foram obrigados a fazer referências mais ou menos incisivas e directas. Por isso, é notícia o facto de a corrupção ficar de fora do pacto da justiça. O que, todavia, não pode ser surpresa.

Fui dos que senti que o povo português estava perante a opção de “evolução na continuidade” que o duelo Cavaco-Soares garantiria – e que tanto agradou à comunicação social dominante – ou de inversão de rota ética na condução dos destinos da Nação, que ameaçou poder vir a ser sufragada (independentemente do candidato mais bem colocado vir a ter, ou não, pernas e coração para a caminhada). Ora, após a eleição do novo presidente, que mais se poderia esperar, com realismo, que não fosse o fechamento defensivo e em copas dos interesses instalados, que sabem como tirar as dúvidas da administração?

Haverá alguma coisa a fazer? Sobre o meu direito de propriedade, vou falar com a minha advogada para a semana. Sobre os direitos dos portugueses, o panorama parece-me mais sombrio ainda, já que é necessário reconhecer a luta judicial dos raros competentes que se dão ao trabalho de darem o corpo ao manifesto pela sua interpretação do que deve ser (arriscando e sofrendo perseguições amedrontadoras para os restantes profissionais-cidadãos). É indispensável revolver de cima a baixo toda a formação académica de juristas, incluindo a organização de acções de reciclagem e actualização com vista a pôr em vigor, tão depressa quanto possível, o respeito pelos princípios gerais do direito, a começar pelo respeito pela Lei, pela dignidade dos profissionais e dos utentes dos tribunais. É preciso fazer acompanhar estes movimentos políticos não apenas de legislação e recursos adequados (poucos mas bons!) mas também estimular no povo português o apoio a tal política de instalação do Estado de Direito em Portugal, através da pedagogia liberal no que se refere a direitos, através da luta contra a corrupção, que manifestamente incomoda muita gente.

A corrupção não é o problema. Ela sempre existiu e há-de existir. O problema é o modelo de desenvolvimento português fazer da promiscuidade político-económica, do desenrasca da cunha, dos gestores avaliados pelos resultados líquidos particulares (hoje bestiais, amanhã bestas, mas sempre dependente dos amigos que avali(z)am), da desigualdade social, na continuidade do que acontecia antes do 25 de Abril, critérios (i)morais de valorização social. Isso não tem que ser assim. Mas é.


Bibi e o desenvolvimento português

 

“só a verdade é evolucionária”

I.I. Lenine em “O Estado e a Evolução”

 2006-05-27

Joaquim Aguiar tem vindo a defender que só a verdade pode servir a política portuguesa, nesta situação difícil em que nos encontramos. Se assim for, Bibi da Casa Pia mostra-nos o caminho.

A raiva com que denuncia os senhores abusadores decorre da sua manifesta inferioridade social se ter tornado, dentro de si, uma superioridade moral de quem reconheceu e pediu desculpa por crimes inomináveis, de quem se quer curar do mal, em vez de resistir contra todas as evidências, à custa das vítimas, gente da sua condição.

As desigualdades sociais abstractas, mencionadas pelo novo supremo magistrado da Nação no discurso à Nação do 25 de Abril de 2006, foram concretizadas, na noite televisiva, na imagem grotesca de um homem cercado à procura de justiça e de um lugar para si mesmo no mundo. Mas quem lhe poderá fazer justiça? Mas quem lhe apresentará o mundo?

Dos poros suados e palpáveis no ecrã da televisão saia maldade pura, que só um processo de cura doloroso e raro permite dar a observar, na coragem de o assumir. Coragem rara, tanto mais por se apresentar em público. Onde foi buscar a força?

A impunidade criminal com que as classes não inferiores viveram em Portugal – e em grande medida ainda vivem – era tão certa que as pessoas pensavam poder dar (e deram) a cara à “criadagem”, sem temor. Afinal, nunca denunciariam porque estavam eles próprios envolvidos nas teias criminosas. E com a protecção de pessoas importantes, quem se atreveria a acusar a “criadagem”?

É claro que esta segurança se revelou falsa. Mas só depois de décadas de impunidade. É muito simples hoje, sabendo o que se sabe, pensar na estupidez dos criminosos. Mas tal pensamento não é senão uma desculpa para nós próprios, observadores estupefactos e traumatizados do que se sabe que se passou, quando queremos recusar o nosso envolvimento – ainda que indirecto – nos acontecimentos. Durante todo o regime democrático a Casa Pia foi apresentada como instituição de educação modelar, e disso mesmo nos orgulhávamos todos. Mas será que era mesmo? Modelar relativamente a quê? À caridade assistencialista que se quer tornar paradigma do novo “estado social” em nome da competição? À pena que gostamos de ter das “viúvas e dos órfãos”, como um personagem célebre de telenovela brasileira? À indiferença relativamente aos direitos e deveres dos educadores, dos educandos e dos portugueses em geral?

Os resultados práticos da educação em Portugal, apesar de terem melhorado muito em democracia, continuam – como a economia – muito abaixo do desejável. Há portugueses – muitos – sem nenhum tipo de educação, e mais ainda cuja educação não dá para verem mais do que as dez pessoas que passam à sua volta todos os dias, conforme mostraram os estudos de literacia realizados no país. Essas pessoas, os nossos pobres de que falou o senhor Presidente da República, e que serão uma minoria quase maioritária, são (ab)usados, com a cumplicidade (eventualmente activa) de instituições do Estado, para os fins mais perversos. Por exemplo: se é verdade que o pénis do Bibi está marcado pelo cordame com que o controlavam os seus abusadores (como noutros casos observados pelo tribunal também foi possível identificar lesões graves e evidentes) com que conivências e cumplicidades foi possível tais marcas terem passado sem sinalização durante dezenas de anos, numa instituição modelar de internato, a cargo do Estado? Porque é que os casos de abusos sexuais, que passaram a poder ser denunciados, são considerados recorrentemente inevitáveis em instituições de acolhimento de menores? Porque é que o Supremo Tribunal de Justiça entende por bem decretar o direito (ou será dever?) dos educadores usarem da força como método pedagógico? De que é que temos medo, quando somos obrigados a pensar nestas coisas? Que meios foram postos à disposição dos portugueses, assustados com a recente revelação do mundo dos abusos sexuais de crianças, para se educarem a respeito deste assunto e tomarem medidas preventivas, em vez de se esconderem da porcaria que foi atirada na ventoinha?

O tratamento que o Estado reservou para acompanhar o caso Casa Pia provocou rupturas que pecam por não serem mais evidentes e públicas, como pública e assumida são as culpas de Bibi. Que implicações teve o escândalo nas decisões presidenciais de evitamento e de precipitação da dissolução da Assembleia da República? De que maneira contribuiu para a viragem à direita da direcção do PS? Quando o PSD reclama por uma justiça diferente da que temos e considera isso a prioridade primeira da sua política, também se inspira no choque Casa Pia? A reorganização da Casa Pia, bem como de todas as casas de acolhimento de órfãos, aí fechados aos milhares, entregues a si próprios e à violência como regra, e aos abusos sexuais como uma das oportunidades de tomar iniciativa, é solução ou evolução?

Alguém sabe a verdade? Alguém se dispõe a dizer a verdade? Terá a justiça portuguesa a capacidade de procurar a cura para a maldade existente na vida? Quem nos pode responder com factos e testemunhos a estas perguntas?


Continua a morrer-se de mortes violentes nas prisões portuguesas?

2006-02-20

 A violência nas prisões é, como se sabe inevitável. Os espaços de isolamento, é fácil demonstrá-lo cientificamente, o que está feito (experiência de Stanford disponível na Internet), instigam os instintos mais perversos das pessoas. Viver nessas circunstância por tempo indefinidos ou muito longos deixa de ser uma punição face a crimes imperdoáveis e passa a ser uma imposição de poderes abusivos, para quem a justiça é um mero pretexto de abuso de poder.

Infelizmente, é notório como aquilo que se pode dizer das prisões portuguesas, se poderá dizer com mais intensidade (e a mesma propriedade) de Guantanamo, Abugrahib (dos americanos e dos iraquianos), das prisões secretas na Europa e fora da Europa, nos tratamentos desumanos e degradantes preparados para "resolver" as investidas dos imigrantes às portas da Europa, de que se conhecem os incidentes de Ceuta e Mellilla mas não se conhecem muitos outros.

Os guardas prisionais têm vindo a queixar-se da situação degradante que se vive nas prisões, mas, claro, são subordinados e, por isso, tem merecido alguma atenção dos executivos - nomeadamente com aumento de efectivos - para que tudo fique na mesma: nem a perspectiva hiper-gradualista do relatório do Prof. Freitas do Amaral escapa à senha securitária do sistema político português. Mas em Portugal, como em Espanha, Itália, Grécia e noutros países da Europa, os direitos humanos dos detidos - é preciso dizê-lo com clareza - não estão garantidos. Não fosse assim nem a ONU tinha programado a convenção de um Protocolo Adicional contra a Tortura, a que Portugal já aderiu, nem esse Protocolo preveria uma intensificação das medidas preventivas que, até agora, apenas serviram para confirmar as suspeitas de que muitas das denúncias, e as mais horríveis de entre elas, podem estar efectivamente a passar-se.

Há, pois, dois lados deste combate de civilização: o dos Direitos Humanos e o da bestialidade de considerar os mais isolados como objecto de desejos perversos, que no caso português se podem medir pelos números do obituário cronicamente acima da média e no topo do que acontece na Europa, do Atlântico aos Urais.

Ao contrário do prometido pela política prisional em vigência, significativa e tristemente já integrada num pacto de regime (e de silêncio) de facto entre os partidos do arco do poder, mais repressão contra os presos não garante nenhuma segurança. Nunca garantiu em lado nenhum do mundo. Nem garante também o silêncio, porque ainda não é possível incinerar os presos mortos. 


Jornadas contra a tortura em Espanha

2006-02-06

A crise da caricatura do profeta bombista trouxe à baila a liberdade de expressão na comunicação social europeia. Da falta de bom uso dessa mesma liberdade se queixaram os participantes nas Jornadas Sobre a Prevenção da Tortura, realizada em Barcelona no primeiro fim-de-semana de Fevereiro de 2006. Seguir-se-ão acções semelhantes em Bilbau e Madrid. Para um activista de questões prisionais que acompanha faz muitos meses a Coordenadora para a Prevenção Contra a Tortura foi uma surpresa a notícia de que a tortura se pratica em Espanha e que esse facto já foi estabelecido pela ONU em 2004, através do relator especial para a prevenção da tortura, Sr. Theo van Boven, que aceitou o convite do governo espanhol do Sr. Aznar para o fazer. O barulho político feito em redor desse relatório conseguiu com os próprios espanhóis perdessem de vista essa realidade, que deixa abandonados à sua sorte as vítimas e os seus familiares, alguns dos quais estiveram presentes nas jornadas, entre os cerca de 400 participantes. A rara solidariedade que nesse ambiente se pôde viver é terapêutica, informou-nos Jorge Barudy, sobrevivente dos torturadores de Pinochet. Mas foi precisa muita coragem e nervos de aço para testemunhar e rememorar momentos com esses: isso foi evidente para os presentes e comparável ao comportamento dos que sofrem de stress de guerra.

Um dos jornalistas presentes explicou que a auto-censura a respeito deste tema é tão grande que quando mencionou a um colega – geralmente bem informado, como se diz no meio – ter sido convidado para intervir, o colega, de boa fé, lhe perguntou: “de que país vão vocês falar?” A ideia de que os Direitos Humanos são uma característica ocidental que alimentam uma missão de os universalizar nas outras partes do mundo, mesmo para quem não aprecie as obsessões bélicas anglo-americanas, persiste, mesmo contra as evidências. E quem se lhe pode opor?

As ONG com relações com a ONU, duas delas presentes nas jornadas, já compreenderam, por experiência própria, que é preciso voltar a conquistar os governos ocidentais para esses valores que nos foram legados, mas que passaram a ser negados implicitamente a nível diplomático. A oposição à especificação do que seja tortura nos tratados internacionais foi prejudicada – ao contrário das expectativas dos activistas da Organização Mundial Contra a Tortura – por diplomatas ocidentais, cf. Eric Sottas comunicação às jornadas em breve publicada em <http://www.prevenciontortura.org/>.

Maus-tratos, do ponto de vista jurídico, são um grau de violência abaixo de tratamentos desumanos e degradantes, que, por sua vez, são um grau abaixo de tortura, sendo no concreto difícil fazer tais distinções. Todavia, por tortura entende-se a violência praticada por agentes do Estado ou em nome destes para obter materiais com valor jurídico, como denúncias ou confissões, por exemplo. Por tratamentos será atingir objectivos de humilhação e despersonalização, ainda que não hajam produtos jurídicos derivados. As avaliações que os juízes fazem das situações concretas, foi afirmado, também dependem da sensibilidade social à violência, e quanto a essa, nota positiva, estará a ser cada vez mais aguda.

Quer dizer: parece estar identificado um desfasamento entre a maior repugnância social ao uso e à irracionalidade da violência e, em sentido inverso, a mobilização dos representantes políticos pelo menos de alguns estados ocidentais contra a tradição de respeito pelos Direitos Humanos, incluindo nos seus próprios países, a pretexto – já se vê – dos riscos de segurança.

Em Espanha, é preciso usar a liberdade de expressão para o afirmar, porque isso merece meditação e acção consequente: a Audiência Nacional, espécie de tribunal especial para tratar das prioridades de segurança do Estado, em particular do terrorismo, acolhe um corpo especial de polícia e uma legislação própria que prevê, sem o admitir, a tortura como forma de investigação criminal. Sim, os juízes podem aceitar denúncias e confissões feitas sob tortura e ignorar denúncias de arguidos ou testemunhos que alegam terem sido torturados. Tais alegações raramente são investigadas, mais raramente levam a acusações formais, mais raramente ainda a condenações e sempre que tal acontece têm havido amnistias governamentais que libertam os torturadores. Alguns chegam a ser promovidos e condecorados.

A lei que permite a detenção incomunicada, três dias extensíveis a sete em que um suspeito pode estar às mãos da polícia para inquirições especiais sem contacto possível com advogados ou familiares, para que serve? Alegou um dos participantes: institua-se a possibilidade de um potencial arguido se recusar a prestar declarações que o possam incriminar, e a incomunicabilidade deixará de fazer sentido. De facto.


Ciência e democracia

2006-01-22

Mariano Gago é o político a quem Portugal deve grande parte da dinâmica de afirmação do espírito científico dentro da comunidade científica e junto da comunidade política. Ninguém lhe tirará esse mérito. O que não significa que não tenha cometido erros e que não continue a cometê-los.
Uma das potenciais vantagens da democracia, que o ministro soube e continua a querer promover, nomeadamente através de processos institucionalizados, eficazes e credíveis de avaliação, é o escrutínio público das políticas públicas, aos diversos níveis. Dada a complexidade e o prestígio da ciência, o público interessado e interveniente nesse escrutínio é muito restrito. Mas, necessariamente, como resultado prático do sucesso das políticas de ciência, esse público está a forte alargamento e merece ser estimulado a participar, ainda que informalmente, pois essa tendência participativa, tão rara entre nós, é a melhor garantia da perenidade das boas políticas neste sector, que contam com muitos adversários, como fica visível sempre que Mariano Gago fica remetido para a oposição política.
A propósito da controversa pergunta de José Tavares ao Primeiro-Ministro sobre o estado das negociação com o MIT, é importante afirmar que qualquer ?funcionário público? ou outro cidadão, independentemente da sua condição profissional, tem o direito de intervir civicamente em favor do que entenda ser o seu interesse pessoal e social, mais do que os políticos e em especial os políticos em funções de Estado. E deve mesmo ser estimulado quando entende ser o momento de o fazer, para que o espaço público de escrutínio político se possa abrir um pouco mais a outros e novos protagonistas ou simples figurantes.
Foi sem surpresa mas com tristeza que vivemos pelas notícias a reacção imediata do Sr. Primeiro-Ministro, cujo poder parece tão fragilizado que sentiu necessidade de o afirmar energicamente, não fosse algum hominídeo querer desafiá-lo para um duelo. E a continuidade da reacção do governo, em estilo ainda mais assanhado, pela voz de Mariano Gago:
será a negociação com o MIT um segredo de Estado?
Os fundos europeus para o desenvolvimento português foram mal baratados durante os últimos 20 anos. O problema é saber porque é que os que há vinte anos reclamavam contra isso mesmo não foram ouvidos e foram de tal modo silenciados e afastados da vida pública que só vinte anos depois nos apercebemos, com a crise política e económica a agudizar-se, que, de facto, não foram só os crimes da Partex ou da UGT mas também as orientações políticas que estabeleceram os critérios de utilização prática dos fundos que os desviaram dos seus objectivos pretendidos.
(De resto os responsáveis máximos pelo silenciamento das críticas e por essas orientações políticas erradas estão a ser julgados hoje, dia de eleições para a Presidência da República, benevolamente, qualquer que venha a ser o resultado). Dizia-se ? e continua a defender-se ? que a quantidade de então deveria ser separada da qualidade, prometida para agora. Erro crasso, ignorância inaudita, só possível de vingar tanto tempo e de se manter como justificação das asneiras por manifesta contenção das oposições, descrentes da eficácia pública das respectivas acções e sabedoras de aumento da probabilidade de actos de represália nas suas vidas pessoais.
O que está em causa politicamente neste momento, quando os fundos europeus são redirigidos para a qualificação dos portugueses, é saber se os mesmos esquemas de redes em forma de polvo irão predominar nos próximos anos, e escoar para finalidades sobretudo privadas os fundos públicos. Isso não está nas mãos do ministro decidir, no campo da inovação, tecnologia e ciência. Não só porque esse campo mexe com vários ministérios mas também porque os interesses privados devem ser atraídos ao esforço nacional e os interesses dos cientistas e gestores de ciência também. A política, nestas condições, já não é uma tutela singular sobre o campo de actividade isolado, como em grande medida tem sido a ciência em Portugal. A política científica deve incorporar, contra a tradição nacional, infelizmente, práticas de participação política próprias e apropriadas para gente treinada e preparada para se envolver apaixonadamente com o seu trabalho e com a criação de condições institucionais de desenvolvimento dos seus próprios interesses científicos. Essa é a responsabilidade política do governo, para que daqui a dez anos não tenhamos que voltar a confirmar o alargamento dos tentáculos do polvo para o campo das ciências.

 


Para que serve um Presidente?

2006-01-20

No fim da campanha eleitoral é possível dizer-se que todos ficámos a saber da existência da divisão de poderes políticos, que implica que o Presidente da República não se imiscua nas competências do Governo, sob pena de mais confusão, mas não ficou claro para que serve o Presidente, nem se os diversos candidatos têm a esse respeito ideias diferentes, independentemente da obrigação de respeito pela Constituição que quem ganhar terá de submeter-se.

Tem razão Jerónimo de Sousa quando denuncia a hipocrisia reinante em Portugal sobre o valor relativo e sistematicamente relativizado da Constituição. Já não adianta muito a queixa se, como foi o caso, não se oferecer ao eleitorado um programa político – e não um programa moralista – para ultrapassar a actual situação em que se pode duvidar, com muita razão, de que estejamos protegidos por um Estado de Direito. A este respeito vale a pena recordar que foram os dez anos de Sampaio marcados pela denúncia presidencial da crise da Justiça (que lhe competia) e pela indesejável e perigosa radicalização da mesmíssima crise (com contribuições do próprio Presidente e sem soluções eficazes que pudessem tê-la superado). Uma das dimensões da crise da justiça é, sem dúvida, o desprezo politicamente organizado, e juridicamente secundado, pela constituição, não apenas nas suas partes utópicas e económica mas também na parte referente a direitos, liberdades e garantias, ao reconhecimento práticos dos valores da doutrina liberal aplicada às decisões jurídicas, na primeira instância como nos tribunais superiores ou nos Conselhos Superiores reguladores das actividades das magistraturas.

Este exemplo, que poderíamos estender aos sectores da educação, da desigualdade crónica ou do direito laboral, por exemplo, serve para mostrar como o Presidente da República, eleito em princípio para dois mandatos consecutivos, sendo a principal referência de estabilidade política em Portugal, deveria ser também uma referência definida, afirmativa, de políticas nacionais de longo prazo, não apenas onde elas costumam ser consensuais (como na política externa, com a lamentável excepção da guerra no Iraque, em que o Presidente Sampaio se comportou como devia embora talvez pudesse – sabê-lo hoje – ter interrompido aí a carreira (ou o carreirismo?) dos lideres do PSD) mas também onde elas deviam ser consensuais mas não o são na prática, o que tem significado, nos sectores referidos, recuos estratégicos muito comprometedores para o futuro do país.

Queixava-se, com razão, Pacheco Pereira de a longa campanha eleitoral ter fugido de temas fundamentais para o Presidente e para os portugueses, como as crises nas Forças Armadas, nas forças de segurança, na política criminal (e nas prisões, acrescento eu). Sem dúvida. Visitar prisões e não ligar o que lá se passa com os desconchavo do Estado de Direito é mais fácil mas não é cumprir o papel do Presidente. O governo tem responsabilidades executivas de curto prazo. O Presidente têm responsabilidades estratégicas – nos mesmos campos –, de mais longo prazo. Por exemplo, em vez de se aceitar as tendências demográficas como fatalidades, é possível pensá-las politicamente, seja através de políticas de emancipação das mulheres (através da integração do trabalho doméstico na classificação de trabalho de que tem sido excluído) seja através da integração de imigrantes (por natureza, mais prolíficos como progenitores). Organizar o pensamento estratégico político no prazo mais longo, sem ofender a agenda governativa aprovada em eleições (e não as agendas particulares que são introduzidas pelos governantes), é tarefa de Presidente.

Voto Manuel Alegre na esperança de que ele possa fazer recuar a partidocracia, faça avançar as iniciativas cívicas participativas e combata as fontes da corrupção. Eis um programa sensato de moralização da vida política portuguesa que nenhum outro candidato pode representar.


Media e presidenciais

2006-01-12

Parece-me que há uma confusão neste debate que opõe pré-candidatos e as
TV ou media em geral. Essa confusão decorre de e prolonga uma profunda
tradição anti-política (no fundo tradicionalista) que caracteriza Portugal.

1. Nas sociedades modernas (ao contrário das outras) os poderes de
Estado são separados e juridicamente independentes (embora obrigados,
para auto-perpetuação) à famosa solidariedade institucional.

2. O 4º poder diz-se assim porque, com a liberdade de imprensa (de
opinião e de expressão, o que é tudo a mesma coisa), goza de uma larga
autonomia jurídica, desde que adira à solidariedade institucional.

3. Alternativa e doutrinariamente, no campo moderno temos o modelo
totalitário - em que a solidariedade institucional subverte a autonomia
por submissão de todos os outros poderes do Estado a um só, que pode
ser Presidente ou Primeiro Ministro ou Chefe militar - e fora do campo
da modernidade temos os fundamentalismos religiosos ou
étnico-patrióticos, como em África acontece muito, mas também noutros
continentes, incluindo o europeu (cf. Balcãs, recentemente com a
desagregação da Juguslávia).

Em resumo: o direito à livre expressão dos cidadãos não é, nunca foi,
julgo que nunca será, uma oferta, uma dádiva, uma saída de um concurso
de um reality-show. Como a reclamação de um direito de expressão não é
a declaração de uma vítima: é um empreendimento político, que usa a
ambiguidade entre a realidade e a norma, entre o que é e o que se diz
que se desejaria que fosse.

Já agora deixo a minha opinião: a) desta vez muitos expontâneos
sentiram necessidade de dar a cara pela Presidência da República: isto
é um sinal de qualquer coisa; b) o efeito de eucalipto que a política à
portuguesa tem acarinhado deixa a intervenção cívica voluntarista -
aquela que sai das entrenhas, sem preparação - numa posição
ridicularizável; c) a modernização do país (e da Europa, noutro nível)
passa por superar este "gap" entre os cidadãos e a política, pelo que,
independentemente dos erros, pessoas como o Luís Botelho Ribeiro (com
quem sei que discordo politicamente de opções fundamentais) fazem
falta; d) os erros são a única forma de aprender a fazer política:
lutando por isso, como ele fez. Tiro-lhe o chapéu!



O que significam os votos nas presidenciais?

 2006-01-11

 

O carácter do povo português ficará identificado nos próximos anos com os resultado das próximas eleições. Quererá o povo português mostrar-se reaccionário ou quererá tomar nas suas mãos o seu próprio destino? Preferiremos esperar para ver onde isto vai parar, na esperança que ao menos não regressemos às origens? Ou estaremos disponíveis para começar uma reorientação geral, social e institucional, com vista à determinação de uma aposta de futuro?

Basta ter em conta o papel da constituição portuguesa, ignorada na prática das escolas de direito, dos tribunais e da política, e o “europeísmo” pedinte de que somos campeões europeus – e cuja símbolo mais bem sucedido é o jardim da Madeira – para nos darmos conta como temos sido reaccionários. No duplo sentido de contra-revolucionários, o que foi uma coisa boa, dado o rumo que as coisas estavam a tomar em 1975, e de oportunistas na Europa desenvolvida, o que tem sido uma má coisa: para a educação, para o fisco, para a formação profissional e principalmente pela a nossa ética colectiva, completamente desorientada pela chuva de casos de corrupção evidente e impune, de manipulação judiciária nos sentidos mais gravosos que imaginar se podem, depredação dos valores patrimoniais e ecológicos, colonização da política pelos futebóis e pela economias paralelas das mais reles até aos contratos mais estratégicos, a ponto de haver dúvidas sobre o patriotismo dos protagonistas políticos.

Foi neste embalo, em particular do crescimento económico induzido pelos nossos parceiros europeus, que nem nos demos conta das principais discussões do tempo: que fazer com o Estado-Social, perguntavam-se os países que dele beneficiavam. Enquanto por cá, em contra-ciclo, lá se ia aproveitando a sabedoria das políticas “para inglês ver”, os deputados se iam entretendo a dar letra de forma aos princípios mais modernistas, na certeza que nada seria para levar a sério: “meras sugestões” como disse o Presidente Sampaio. Serviam as leis, isso sim, para arrumar nas diversas prateleiras do Estado as clientelas arrogantes, com a justificação paternalista da eterna incapacidade profissional e técnica (fabricada pelos dirigentes) das instituições, que assim se multiplicaram.

Cadilhe confessou: Cavaco agitou o papão do “monstro” que seria o Estado ao mesmo tempo que o criava ele próprio. Tem sido assim a política à portuguesa: todos mentem sem nenhuma ética que não seja o foguetório e a prestidigitação. “Bom, se é para bem do País, se é assim que a CEE quer …” pensámos durante todos estes anos. Afinal são eles que pagam, não é. Por isso quem estranhou que o Cavaco anti-europeísta que ganhou as eleições no PSD se tivesse tornado, sem cambalhota, em pró-europeísta no governo? Sim: lembram-se? Foi assim que o Cavaco tirou das mãos de Soares – que batalhou forte e feio pelo “cheque” europeu – o pão para a boca. A que, de resto, Soares acedeu com fair-play, tendo-se vingado com Macau, qual árvore das patacas cuja história recente está ainda por contar, mas cujo impacto político-económico é inegável na vida portuguesa.

Perante os factos, os portugueses adoptaram uma postura de normalização, cuja principal orientação é apresentada classicamente em Pangloss de Voltaire: temos que ser optimistas porque por si isso levanta o astral e traz bons augúrios. As campanhas políticas pela positiva estão aí para o provar. Face à actual situação, perante o beco sem saída e a pouca vergonha que anda à solta, perante a incapacidade das instituições de fazerem sentido e de se entenderem entre si – muito em particular o judicial, o militar, as forças de segurança e os políticos, para só falarmos das bases institucionais do Estado – qual vai ser a atitude dos portugueses nas urnas?

Reaccionários, é a aposta dos economicistas e principalmente dos que já pedem o branqueamento da fuga organizada aos impostos através da sugestão política de IRC a zero. “Discriminação positiva” para o capital no país da desigualdade é, evidentemente, uma postura reaccionária por mérito indiscutível. Disso mesmo se vem queixando Soares, que diz aos “banqueiros” que pelo caminho da luta de classes que parece estarem a organizar, pelo revanchismo mais oportunista e irresponsável, pela instabilização política que Cavaco trará, não tanto pessoalmente mas por a sua eleição ser um sinal de rendição do povo português, os negócios em Portugal vão ser prejudicados. As sondagens mostram-nos como esta é uma inclinação forte dos votantes. Esperam que os problemas se resolvam por si: “deixem-no trabalhar: ele nunca se engana”, todos estarão a pensar, mesmo que nisso não acreditem: “afinal, todos mentem, não é?”.

Se a alternativa fosse Mário Soares, que resposta poderiamos dar que não seja: “pois é!”. Perito em dizer a cada um o que cada um gosta de ouvir, dizendo-nos ao mesmo tempo aquilo que não queremos ouvir mas em canto de sereia, isto é, como se isso fosse secundário, lá vai querendo levar a água ao moinho. A divisão do PS a seu respeito é um sinal positivo: quer dizer que “há sempre quem diga não!”. Chega de conversa fiada: queremos (pelo menos gostaria que assim fosse) poder discutir a verdade sem interferências do “manto diáfano da fantasia” com que sistematicamente nos temos deixado afastar das responsabilidades cívicas, que são as nossas, a dos eleitores.

José Mourinho, por chamar vigaristas aos adversários, vai ser multado em Inglaterra: lá, espantem-se, isso é um insulto. Porque será? É porque os ingleses – apesar do Blair que têm – no futebol, que é uma coisa séria, é um negócio, penalizam moralmente éticas que desconsideram a honestidade das discussões. Isso marca uma diferença relativamente ao que é possível exigir neste país.

Vamos matar o Pangloss que há em nós?

Há duas candidaturas que trabalham nesse sentido. Lamento, mas Jerónimo de Sousa não é um desses. Essa de “cumprir e fazer cumprir” a nossa esfarrapada Constituição só pode ser piada, no país em que as leis são uma “sugestão”. Este candidato é favorável à política para “inglês ver” que nos tem atazanado, que tem excluído da vida e dos debates políticos todos os que não se submetem às lógicas partidárias, e de que é grão-mestre Soares. A preferência para Soares manifestada por Jerónimo é a preferência pela politiquice profissional, que infelizmente não tem dado provas em Portugal. A República e o Estado, como diz Manuel Alegre, não tem (ou não devia ter) donos. E a apatia da cidadania em Portugal, em contraste com Espanha e outros países da União, mostra o colete-de-forças em que, conscientes ou não, estamos metidos. E com o que é preciso vir a romper, um dia.

A eleição de Manuel Alegre, cuja primeira e principal batalha é a da passagem à segunda volta, representará a vitória da vontade do Povo português de assumir as responsabilidades do espírito de iniciativa e liberdade, sem tutelas, com verdade, de que será preciso dar mostras para encontrarmos colectivamente não apenas a confiança em nós próprios mas também o consenso possível em torno de um projecto nacional apropriado à nossa situação actual e aos rumos belicistas, depressivos e repressivos que nos ameaçam globalmente.


Não ao abuso sexual de crianças – outra vez e sempre!

2005-12-16

Uma criança de 50 dias foi abusada sexualmente, em princípio pelo pai, e selvaticamente batida por alegadamente “não comer”. A comissão de protecção de menores acompanhou o caso, assim como os serviços de urgência de um hospital, sem que tenham recolhido a informação policial disponível de que o pai era suspeito reiterado de abuso sexual de crianças. Os responsáveis máximos das comissões de protecção de menores afirmam publicamente que a comissão em causa e eles próprios fizeram tudo o que estava ao seu alcance fazer para defender a criança, embora tal defesa não tenha sido eficaz ou sequer existente. Uma médica envolvida no caso faz declarações duras contra as práticas e as competências dos profissionais ao serviço das comissões (infelizmente, não ao serviço das crianças). O ministro da tutela lamenta, declara haver necessidade de melhorar formação (como tudo o resto) e pede para que o pessoal médico não faça declarações perturbadoras.

A Plataforma Não ao Abuso Sexual de Crianças reúne associações e pessoas indignadas e alertadas para a necessidade de ultrapassar o estado de choque em que ficou Portugal quando se deu conta da existência maciça de abusos sexuais a menores, inclusivamente os que estejam à guarda directa do Estado. Manifestámo-nos em diversas ocasiões no sentido de não abandonar ao sistema de justiça as responsabilidades de lidar com o nosso embaraço, que são principalmente executivas e cívicas. Infelizmente, passados tantos meses, apesar dos esforços feitos principalmente na perseguição policial de casos já perpetrados de crimes de abuso sexual, não apenas não podemos estar satisfeitos com os resultados produzidos, como principalmente não podemos aceitar a resignação nem a indiferença do Estado português, pela voz daqueles que até agora se  tem apresentado em sua representação, a propósito de mais este caso brutal que veio ao conhecimento público.

Temos consciência, todos, da extensão insuportável dos maus-tratos a crianças que se verificam no nosso país. Há ainda quem imagine que os malfeitores vêm de fora, que são estrangeiros ou alienígenas. É preciso dizer que não é assim! Apesar dos abusadores votarem a as crianças não o poderem fazer, o Estado português responsabilizou-se através de legislação interna e de compromissos internacionais a respeitar e fazer respeitar os direitos das crianças, consignados em documentos legais onde se reconhece a sua particular fragilidade precisamente relativamente àqueles a quem a sociedade entrega as responsabilidades de tutela. É insuportável o laxismo nesta matéria, bem como a resignação das declarações oficiais ofensiva dos sentimentos dos portugueses que não se vêem representados na indiferença moral. Filhos de pobres ou de ricos, de pais jovens ou de pais velhos, vivam com casais casados ,  em união de facto,  em famílias monoparentais ou outros modelos de famílias informais, no Norte ou no Sul, as crianças não podem ser batidas e abusadas sexualmente. É responsabilidade formal do Estado assegurar-nos de assim acontece. Não cabe à discricionariedade do sentimento dos responsáveis deixarem-se abater pela inevitabilidade dos acontecimentos, nem lhes é permitido socorrerem-se da alegada desresponsabilização permitida por eventuais contratos de partilha de tutela das crianças com familiares ou vizinhos e muito menos, evidentemente, pela responsabilidade criminal dos abusadores macabros.

Apelo aos leitores que se manifestem, nomeadamente através da subscrição da petição ao Primeiro-Ministro e ao Ministro da Solidariedade em  http://new.PetitionOnline.com/nasc02/petition.html


Agente não vive duas vezes: é de aproveitar!

 2005-12-16

Um jornal faz capa com os milhões que a União Europeia já garantiu que vão chegar diariamente a Portugal. Tal notícia refere-se às negociações sobre o futuro orçamento da União para os próximos anos e revela como, apesar do estado a que se chegou – de amoralidade pública – uma parte relevante do público (e da opinião pública) continua a aceitar (ou exigir) reduzir a política e a ideologia ao mínimo denominador comum: o vil metal.

Os leitores que estejam à espera de poder continuar as suas actividades de saque nos próximos anos – parece dizer a manchete – podem continuar à espera, porque a administração e os políticos vão ter um bom osso para roer, que é o de saberem como distribuir a dinheiro de modo a que seja possível cumprir as condições de formação de despesa para captar fundos europeus e satisfazer apetites pouco claros, que são sempre os que se fundam na esperteza saloia ou no amiguismo, encostados à ideologia de que os portugueses não têm o cromossoma do planeamento e da organização. São, por natureza, membros de uma desorganização muito bem organizada.

Já houve quem dissesse que os fundos europeus eram dos factos mais responsáveis pelo atraso relativo do desenvolvimento português, na medida em que uma parte importante dos melhores esforços de organização – com excepção do Euro 2004 – são feitos para canalizar os fundos para os lugares certos. Ou incertos? O que nos leva a pensar que a causa da crise actual em Portugal pode muito bem ser um problema estocástico: um engarrafamento nos acessos aos dinheiros comunitários. Vejamos mais de perto o problema:

a)   Portugal tem acesso aos fundos porque é um país atrasado.

b)   Enquanto o atraso herdado foi suficiente para manter o nível de desenvolvimento abaixo dos 75% da média europeia, a região de Lisboa pode manter a dianteira do desenvolvimento português;

c)   Quando o desenvolvimento da região deixou de ser inferior a 75% da média da União, Lisboa e Vale do Tejo “perdeu” fundos, a que deixou de poder concorrer;

d)   Como mostra a teoria aplicada ao pagamento de impostos, mais importante do que viver é saber viver: há que meter travões a fundo e descolar dos 80% em que já se ia. Lisboa reivindica os fundos! Aliás, como repararam, toda a economia europeia abrandou, precisamente para evitar a estratégia de Lisboa.

e)   Mas conseguimos. Não podemos desvalorizar a moeda, desvalorizamo-nos a nós próprios: ser pedinte lá fora é ser reconhecido cá dentro.

f)    Isso explica o carácter esquerdizante do espectro político português, com tantos partidos à esquerda que todos os cinco candidatos a Presidente da República são de esquerda, pelo menos três deles radicais.

g)   Isso também explica porque é que as leis não se cumprem: têm vindo a fazer de Portugal um reality show. Que é de onde têm origem as políticas “realistas”. À moda de Pangloss.

Viva Portugal! Vem aí o Mundial, a praia e os fogos são para os bombeiros, que agente não vive duas vezes!


Temas marginais

 2005-12-04

“É muito interessante trabalhar temas marginais!” Foi mais ou menos assim que um amigo um dia de me dirigiu para elogiar o trabalho que desenvolvia sobre assuntos prisionais e de direitos humanos.

Passado poucos anos, eis-nos confrontados com a dura realidade das prisões secretas da CIA um pouco por todo o mundo, e também na democrática União Europeia, e com as notícias recorrentes de que a tortura é, faz anos, prática corrente integrada na cultura das profissões prisionais norte-americanas, não apenas no Afeganistão e no Iraque, não apenas face a terroristas, mas no território nacional e perante presos comuns e inclusivamente crianças. Quem denuncia a situação é perseguido e vive em risco de vida.

Será este um tema marginal? Há quem pense que o fundamental é os temas económicos e que tudo o resto é secundário. O direito, embora seja o próprio fundamento do Estado – democrático ou não democrático – , parece não incomodar. Basta ver a tranquilidade com que se vive a crise da justiça em Portugal faz anos, sem que nada esteja sequer planeado para melhorias, a não ser a intensificação do passa culpas. Basta ver o escândalo público que o livro de Freitas do Amaral provocou quando comparava as práticas contra o direito da administração Bush pós 11 de Setembro e as práticas dos nazis. O escândalo foi por Freitas ter, eventualmente, ofendido os donos do mundo, não o facto de a mais poderosa nação ocidental estar a falhar em questões de princípio, note-se.

Será que podemos estar mais seguros de que o Estado português está atento à nossa segurança colectiva, na defesa dos princípios do direito, pelo facto de Freitas do Amaral ter a pasta dos Negócios Estrangeiros? Ou será que esse facto apenas levou à neutralização de uma das raras vozes que denunciou os riscos de recuo civilizacional graves? Os dados que temos até agora são os seguintes: o Ministério dos Negócios Estrangeiros garantiu que aviões da CIA não passaram por aeroportos portugueses durante a vigência do governo actual, que seja do seu conhecimento oficial. O mínimo que se pode dizer é que é preocupante. Em linguagem diplomática, parece que Freitas do Amaral estará a pedir socorro. E haverá alguma alma disponível para gritar que o Rei vai nu?

Na época em que o Estado procura auto-reduzir-se ao essencial, isto é ao uso legítimo da força, quando a civilização ocidental se entrega ao uso da força e suspende os critérios de legitimação da acção dos poderosos, haverá economia que nos valha? Ainda se funcionasse …


O ar do mau tempo

2005-11-19

No verão, um episódio pirata importado do Brasil, manipulou a polícia e as televisões, trouxe à flor da pele o racismo português, que os académicos por vezes se entretêm a discutir se existe ou se não existe. O arrastão serviu para que todos pudéssemos observar expressões culturais explícitas do racismo que vai em nós.

O facto de ser tudo, afinal, uma encenação e um insulto – com direito a desmentido, significativamente equívoco das autoridades – nem por isso permitiu reavaliar a situação que causou tais excessos de apreciação depreciativa dos membros mais escuros (ou mesmo pretos) da nossa sociedade que andam de comboio. Nas leituras públicas do desmentido, a linguagem equívoca permitiu a muitos jornalistas – inconformados com a sua própria imagem de mensageiros de tudo o que lhes ponham no colo – duvidarem do próprio desmentido, através de comentários que lhes salvassem a face. O mais contundente dos comentários, com a colaboração da Companhia dos caminhos de ferro, foi a apresentação de imagens de assaltos violentos da linha de Sintra.

O autor destas linhas é preto de 4ª geração. Confunde-se com o público porque as misturas já são muitas e principalmente porque o estatuto social permite evitar os comboios. Mas nem por isso deixa de sentir a injustiça imprópria de um Estado de Direito de, para salvar a face de uma burrada haja quem, com responsabilidades nos media (no Estado e na CP), em vez de assumir os erros e ultrapassá-los, aprofunde o disparate, como quem diz, se não foste tu o criminoso, foi o teu primo anteontem.

Numa altura em que todos acusam todos em grupo, juízes, jornalistas, advogados, políticos, ministério público, gestores de futebol, administradores de empresas públicas ou privadas, há os que não têm maneira de se defenderem … quando decidem ir à praia. E saem fotografados a fugir da polícia com os seus haveres pendurados das mãos, com caras pretas que Deus lhes deu, feitos ladrões de reality show não pago.

Vêm estas linhas tardias a propósito do que se passa na França do estado de sítio, no rescaldo da revolta juvenil dos subúrbios. São terroristas? São fundamentalistas? São traficantes? São estrangeiros? São islâmicos? São a 2ª geração? Quem quer saber se todas as conjecturas racistas multiplicadas pelos comentadores sem ética, histéricos de desorientação, não têm um mínimo de aderência à realidade facilmente acessível? O fundamental é reduzir os principais problemas políticos do nosso tempo a casos de polícia. Por vezes com o pretexto cínico de antecipação política aos neo-nazis e aos fascistas, como de facto aconteceu em França: Le Pen está praticamente desempregado, pois as suas ideias xenófobas são as ideias adoptadas pelo candidato presidencial mais popular.

Compreende-se a histeria: o envelhecimento radical da população europeia torna a maioria dos eleitores muitos susceptíveis às ameaças e dependentes dos seus alegados defensores. É preciso dizer aos mais velhos que a política securitária é avançada pelos mesmos que lhes querem reduzir as reformas, serviços de saúde e sociais. Porque querem reduzir as funções do Estado às funções violentas, e para poderem alimentar a máquina de guerra que estimam necessária para a luta de classes que estão a organizar precisam de muito mais dinheiro: o dinheiro utilizado nos serviços do Estado Social, incluindo os de apoio à terceira idade. Mas principalmente é preciso explicar se os mais velhos não fizeram filhos com o intuito de beneficiarem sozinhos da sociedade de consumo, está na hora de os adoptar, para que o sistema político e económico não continue a ruir: precisamos de imigrantes aos milhões, a que devemos aprender a tratar como filhos e seguros de vida. E não como ameaças.

A nossa melhor defesa estratégica da civilização ocidental não será a de armar policias, espiões, fundamentalistas sem moral e guerreiros sem escrúpulos. De que servirá montar um esquema defensivo contra os estrangeiros para defender o nosso modo de vida quando quem o quer destruir são os nossos próprios governantes, para disso tirarem proveitos? A nossa melhor estratégia é acolher os povos do mundo, no nosso território e noutros territórios que se possam conquistar para a paz e o convívio modernizador, como facilitadores de modernização para o bem-estar, tal qual o aprendemos a fazer até agora, já que o que nos anunciam é o fim desses “privilégios”.

Quando os histéricos de serviço nos informam que a crescente produtividade económica vais deixar de permitir a manutenção dos níveis de vida de que temos usufruído, porque raio de carga de água é que lhes damos ouvidos? É porque estão ao mesmo tempo a dizer-nos que são os estrangeiros (agora a moda é dos chineses, e se eles são muitos …) que nos estão a explorar (?!?) na nossa terra, a tirar-nos os empregos, e na sua própria terra (por trabalharem quase de borla e sem sindicatos) por trabalharem como imigrantes? Já tinha ouvido dizer que não há mercados sem guerras, ou numa versão mais aristocrática, não há almoços grátis. Mas mobilizarem os velhos europeus para a guerra, avisando-os que o fazem para virem a viver pior no futuro, é preciso ter lata. Mas que compensa, isso tem compensado!

Em França, depois de todas as provocações dirigidas contra os jovens que vivem humilhados desde que nascem e a assistir às humilhações quotidianas reservadas aos seus pais, depois de todas as análises torpes, a verdade não tem sido suficiente (como o foi em Espanha que derrubou Aznar por azniar) para pôr em causa as políticas xenófobas. O inverso parece ser o sentido das notícias que nos dão conta da manutenção da popularidade e dos poderes do ministro de quem os jovens pediram a demissão. Nos bairros voltou a normalidade da centena de carros incendiados por semana, que já se vivia anteriormente à revolta. Tudo sob controlo, portanto. Basta saber a quem nos referimos quando se fala em controlo: os jovens das periferias ou as multidões de velhos votantes?


Voto útil

 2005-11-02

 Pela primeira vez desde que se pode votar utilmente que estou inclinado a votar útil.

Ouvi dizer de um político profissional que é um poeta. Não apenas um poeta, mas um poeta de sucesso. Apresenta-se em formação de quadrado poética e parece que assim, apesar do prémio de antiguidade num dos partidos do regime, num dos agrupamentos responsáveis pelo estado a que isto chegou – o estado de emergência -, teve jeito de se manter lúcido. A ponto de inspirar o boneco “A mim ninguém me cala!”.

Atreveu-se a espreitar a vida cá fora, do lado dos cidadãos sem privilégios. E percebeu que a democracia está sequestrada por instituições que deveriam ensiná-la e desenvolvê-la, em vez de permitirem a privados que dela se aproveitem. Diz em voz alta que falta alternância ao simulacro de democracia, que é a que temos. Falta política, concerteza!

As sondagens mostram que tem razão. Os votantes sinalizam, como podem, que é isso, sim. Não é só a mentalidade individualista ou acanhada ou ignorante dos portugueses e das portuguesas: são estruturas políticas que nos reprimem continua e profundamente, de que o exemplo mais óbvio se nos apresenta do lado da justiça. Cujo estranho funcionamento, se bem analisado, por si só seria revelador das causas mais profundas da nossa insatisfação colectiva: a desadequação dos valores enunciados aos valores praticados.

E ainda aqui, na denúncia da hipocrisia, Manuel Alegre faz a diferença. Não faz o seu auto-elogio, nem compatibiliza o incompatível. Não diz ser a amizade o seu principal critério social para se incompatibilizar com os ditos melhores amigos para lhes ganhar em manobras políticas, como aconteceu com Salgado Zenha no passado. Não se refugia na vazia aura de competência inquestionável e magistral, de quem usa a Universidade como palco político, analisando com distância seráfica as monstruosidades por si próprio criadas, como se fossem filhas ilegítimas.

O combate é enorme: de um lado todos os partidos, prometendo manter tudo como está, cada um no seu lugar à espera do veridicto democrático para reconfirmar – outra vez – os respectivos lugares no raking da política. Do outro quem procura, no meio da confusão própria da actividade política democrática, defender que a política não deve ficar-se no interior do sacrosanto dos grupos que lutam pelos poderes partidários. Todos os portugueses, especialmente aqueles que entendem ou poderão sem o saber, ou sem o querer, ter alguma contribuição para dar, devem ser chamados a dá-la. Por maior ou mais pequena que seja, Portugal precisa de todos e cada um dos portugueses precisa de Portugal e das suas instituições. Estas não podem ser, não devem continuar, informalmente privatizadas, como hoje estão. É preciso desenvolver o espírito do serviço público não apenas nos funcionários do Estado mas também nos cidadãos, para que as tentações aberrantes da política suja possam ser perseguidas e derrotadas.

 

Ao contrário do que alguns dizem – aliás, por isso mesmo é que o dizem – a democracia está em causa nestas eleições presidenciais. Não que a democracia esteja em perigo. São os portuguesas e a vida pública que, obviamente, estão em perigo. Perigo de depressão crónica e de perversidade radicalizada, caso não se dê uma chicotada psicológica.


Os Portugueses

31 Outubro 2005

A igualdade dos cidadãos prometida pela modernidade democrática testa-se na vida pública, no espaço público como diria Habermas. Testa-se em função das possibilidades declarativas e das disponibilidades de produzir declarações. Não apenas pela liberdade de expressão, mas também pela liberdade de comunicação e pela abertura da sociedade às declarações fracturantes, pois são essas que têm, ou podem ter significado.

A sociedade portuguesa, mesmo em alturas de necessidade de novas orientações políticas, como é actualmente o caso, mantém-se desconfiada perante as ideias, desagradada perante a diferença, incomodada pela conflitualidade, sofrega perante os ilusionismos, sejam eles futebolísticos, autárquicos, encenações de poder e de competência, sucessos materiais fáceis, na lotaria ou na habilidade do desenrasca, produto mais português que Camões, Amália ou o fado.

A política portuguesa é um ineludível exercício das classes dominantes que, de quando em vez, organizam performances pimba para votações à moda do festival da canção. A política do povo, alegadamente suberano, para inglês ver, continua a ser o trabalho, como no tempo da outra senhora. Por isso os textos de Eça de Queiroz mantém a actualidade apesar de serem muito mais que centenários: trabalho continua a ser sinónimo de emprego ou política de arranjismos partidários e de beneficência, sem que isso seja motivo de estranheza, quanto mais de escândalo. O Estado tem sido, em Portugal, uma forma de ludibriar os seus próprios beneficiários: veja-se o uso arbitrário que se fazem das leis, profusas e confusas o suficiente para que cada um use conforme melhor lhe convier, seja para daí tirar benefício seja para tirar desforço dos pategos, como a elite expressa o seu desprezo pelo soberano. As magistraturas, essas, ignaras e aristocráticas, ora dão ares de soberano absoluto ora de proletários, conforme os interesses próprios a defender. Nunca se sabe ao certo quais são os procedimentos legítimos, quem funciona dentro da legalidade, não há advogado honesto que possa calcular as hipóteses de sucesso de pleito judicial, pois isso depende de forças obscuras da ignorância, da intriga, da impunidade irresponsável dos responsáveis, dos conluios, dos preconceitos e também das conspirações. Por isso se costuma dizer “Não vou em grupos” para se declarar honestidade e transparência de procedimentos, que obviamente são raros em Portugal, país onde a informalidade é um dado cultural (e também político) fonte de inesgotável de efeitos surpresa para os estrangeiros mas também para os próprios autóctones. É a experiência do que se costuma chamar organizações muito bem desorganizadas, onde a hipócrisia e a fidelidade dão as mãos à maior das flexibilidades de coluna vertebral dos agentes, em cima e em baixo.

De repente, a corrupção torna-se um alvo dos discursos políticos, assim como a responsabilidade dos partidos políticos e dos políticos eles próprios. Talvez por isso os principais responsáveis pelo estado de coisas tenham decido dar a cara nas próximas eleições presidenciais. Não querem ficar mal na fotografia da história. Têm medo que algum candidato decida pôr o dedo na ferida. E contam com o gosto português pela delicadeza no trato entre as elites para que os ataques políticos contra os pais da Pátria, na sua presença, sejam contraproducentes a quem ouse avançar e dizer aquilo que circula no anedotário e nos emails da Internet.

Objectivamente, o maior deficit democrático em Portugal é o desprezo dos políticos pelos que não fazem política dentro dos partidos, todos eles com controlos internos fortes à circulação e legitimação de opinião – a erradamente chamada disciplina –, e a impossibilidade de quem tenha ideias ou experiências de vida para partilhar publicamente de aceder aos meios de exposição pública adequados, sem serem colonizados partidariamente. As excepções apenas confirmam a regra, e o volume da actividade cívica em Portugal, comparada com o que se passa em Espanha ou noutros países europeus, mostra que a legitimidade política das instituições de soberania não pode apoiar-se na sociedade, mas na autoridade bruta e brutal – veja-se o que se passa nos tribunais criminais e nas prisões, mas também com as nomeações para cargos de confiança e com a entrega da culpa a um funcionalismo público que aprendeu a viver desorientado pelo rotativismo e pelo compadrio. Isso é também evidente pela necessidade de cada governo mudar a cabeça da administração pública com pessoas da sua confiança, da desconfiança da função pública em relação aos políticos – seus inimigos públicos e patrões temporários, de quem dizem (pelas costas) cobras e lagartos ao mesmo tempo que (pela frente) manifestam subserviência canina e surripiam o que lhes calha na luva (tempo, dinheiro, equipamentos, poder, etc.).

O Estado português não funciona bem porque não é avaliado (nem auto, nem hetero, nem pela tutela, nem pelas inspecções, nem pelo público). Porque se a avaliação funcionasse, se houvesse maior transparência, perder-se-ia a flexibilidade do desenrasca, não seria mais precisas a cunha nem a troca de favores, seriam precisas regras claras e que elas fossem cumpridas, o que têm vindo a interessar a pouca gente. Nem em cima, nem os de baixo, que – sabemos agora – têm vindo a beneficiar não de contrapartidas pelo seu trabalho mas de privilégios, exactamente como nos tempo do antigo regime, em que a troca se fazia em géneros.

Neste ambiente temos 20% de chefias, 15% de licenciados, 20% dos quais fora do país a trabalhar, milhares de licenciados desempregados e muita gente preocupada pelo facto de termos doutores a mais, em primeiro lugar a ordem dos médicos. Nitidamente, como mostram os estudos sobre literacia, os portugueses dão-se particularmente mal com pensamentos disciplinados e claros, tanto na escola – onde o insucesso e o abandono persistem em fazer a nossa vergonha universal – como no trabalho desqualificante (que por si só produz iliteracia acrescida, por ser valorizada precisamente a ignorância subserviente). Há um Portugal moderno a querer sair do velho Portugal aristocrático e hipócrita. Na educação e na justiça, só é explicável o insucesso de 30 anos de democracia pela opressão política dos respectivos sectores, em contraste com outros sectores libertados da vida nacional.

Tal como com a falta de participação cívica, não é porque não existam tendências fortes a favor da democracia: simplesmente isso – o que seja a democracia – ainda se discute menos do que outros assuntos. Em particular nas escolas e na justiça. O horror dos portugueses à política, que entendem como um palco de vigaristas, de onde não são capazes de distinguir honestos e bandidos, muito menos acreditam na ciência dos magistrados, é proverbial e deve ser explicado não apenas por via ancestral, de atraso histórico que jamais foi o nosso problema, mas pelo carácter amistoso e submisso do povo. Afinal há muito mundo por onde fazer vingar a vida, como todos na diáspora e nas antigas colónias bem sabem, para o bem e para o mal.

A história da revolução de Abril talvez nos dê uma sugestão da razão política de ser desta mentalidade aquietada. Tudo acabou quando se revelou a possibilidade de haver uma guerra civil, entre o norte e o sul. A enorme diversidade dos povos portugueses e o seu nacionalismo quase milenar foram caldeados numa tolerância que nos caracteriza, de afeições contrariadas – como no fado – de saudades do que não pudemos ser, para continuarmos juntos. A mobilidade dos votos entre partidos e entre autárquicas, presidenciais e legislativas também mostra como o povo português gosta de ser caudilhista e mesmo vernáculo nos concelhos (ou à porta dos tribunais) de quem não espera outra coisa que não sejam favores, e gosta de ser sensato e conciliador a nível nacional. Quem estiver em condições de pedir maioria absoluta obtém-na.

Os portugueses jogam na política como quem joga na lotaria. E os políticos portugueses aprenderam a fazer cálculos de probabilidades para dividirem entre si os negócios do Estado. Será que isto um dia vai terminar? É nessa perpectiva que se podem observar as próximas eleições presidenciais: estão todos em jogo. Os partidos, a alma de esquerda e sofredora (ou mentirosa?) do PS, mais uma vez despeitada – curiosamente sempre por Mário Soares – e até algumas boas vontades avulsas que procurarão mobilizar os eleitores. Mas também está em jogo a disposição que os Portugueses vão escolher adoptar para si próprios em função das campanhas e dos resultados eleitorais.

O povo prepara-se para exercer os seus raros poderes de soberania. Será que vai decidir acolher o D.Sebastião que voltou do nevoeiro, ou vai preferir um Rei já testado? Se aceitar jogar no ilusionismo, mais uma vez, a classe dominante ficará em casa, tranquila. Mas pode ser que invente uma saída crítica para o regime, ainda que não faltem ilusionistas a cobrir tal saída.


Reformas, Saúde e Europa Fortaleza: a mesma luta!

6 Outubro 2005

Não é a primeira vez que me assalta esta sensação. Parece evidente a necessidade de se dizer qualquer coisa que, todavia, não é dita, como que a desafiar-me para que a diga eu. Mas que efeito pode ter a afirmação do óbvio? Para mais o óbvio que se vai redizer, ainda que em novas circunstâncias?

O óbvio é que estas políticas que nos são apresentadas de necessária retracção dos direitos de reforma e de acesso à saúde adquiridos a pretexto de que o Estado não consegue recursos suficientes são uma opção política de fundo e de longo prazo. E essa opção é a de fazer o progresso coincidir com piores condições de vida para aqueles que, por razões das circunstâncias ou da idade, se vejam fragilizados.

Compreendo aqueles que, como os juvenis, preferem fazer-se de fortes a compreender as fraquezas humanas. Mas já tenho mais dificuldade em compreender que essa postura, a que se costuma chamar "pela positiva", se tenha tornada não apenas a politicamente correcta mas praticamente a única credível e credibilizada: como se costuma dizer, toda a política, à esquerda e à direita, se resumirá à economia: é preciso estimulá-la psicologicamente ?!? E depois admiram-se de faltar a ética? E acham mesmo que isso é uma questão da falta de seriedade dos políticos corruptos? E porque é que os políticos sérios andam a reboque dos esquemas dos corruptos?

O óbvio que é preciso dizer o que já foi dito pelo Partido Socialista há poucos anos: a segurança social – disseram então, se não sonhei – tinha um programa financeiro sólido para décadas, mesmo depois dos saques feitos por governos anteriores para satisfazer as necessidades/debilidades orçamentais. Será que tais décadas se acabaram em poucos anos e eu estive a hibernar?

O óbvio já foi dito pelo Agostinho da Silva e também pela ONU. A União Europeia precisa de milhões de imigrantes e de organizar o desenvolvimento dos países vizinhos, se não quiser ser invadida à força pelos mais afoitos entre os que vivem nos países limítrofes (que com a facilidade de comunicações, são cada vez mais numerosos). Serão esses imigrantes, se os não continuarem a matar e a escorraçar nas fronteiras da União Europeia, que poderão vir a pagar as reformas aos europeus da minha geração, que vai agora pelos cinquenta anos. Se não forem eles, serão os nossos filhos, em menor número que nós e educados a fugir às responsabilidades de solidariedade por nós próprios? Que respeito lhes mereceremos nós que lhes dificultamos ao extremo as possibilidades de se fixarem em perspectivas de actividade profissional continuada e os instabilizamos aos máximo?

A Europa fortaleza é a parte militar da política de aniquilação das políticas públicas de promoção do bem-estar social, de que a quebra das reformas e das garantias de acesso à saúde são a parte financeira. Para que servem os nossos países terem as finanças públicas mais elegantes e, portanto, menos capazes de encobrir nas suas pregas os corruptos, se com isso se vai criar mau ambiente interno, pelo excesso de velhos e pela miséria inelutável em que viverão – como já vivem, e lutas sociais nas fronteiras, seja através da utilização hipócrita das tradições de desrespeito pelos Direitos Humanos dos países limitrofes tornados aliados para organizar a guerra fora da União Europeia contra os potenciais imigrantes, seja através da defesa das fronteiras manu militare, quando o resto falha, contra quem deseja partilhar o nosso modo de viver? E não serão os seriamente corruptos (politicamente, entenda-se) precisamente aqueles que se preocupam mais com a saúde da economia do que com a saúde presente e futura dos cidadãos e com o bem-estar e a pacificação do mundo? Não foi essa primeira filosofia que desvalorizou o crime económico e político ao ponto de valorizar os resultados económicos obtidos independentemente de "filosofias" ideológicas ou éticas? Não continuam os critérios "práticos" a prevalecer na mente de muita gente em Portugal - e no Mundo - sem outras consideração, fazendo segredo dos métodos? Não são esses os critérios que dominam a política actual?

A evidência da banalização dos fenómenos de corrupção política não deve ser combatida. O que deve ser combatido é a estrutura social e política que nos conduziu a este estado de coisas. A luta contra a corrupção generalizada é um combate político, não é uma tarefa do Procurador Geral da República. Um combate por outros critérios de organização política e por outras pessoas, com outras convicções, para evitar o apodrecimento da democracia. O voto maioritário em personagens mafiosos é estrutural e reclama reformas estruturais para dominar a bandidagem.

E é uma política europeia e global, não apenas nacional: façam-se estudos sobre as quantidades de imigrantes e as respectivas qualificações de que a Europa precisa para manter a perspectiva de bem-estar. Eduquemos os nossos filhos a serem solidários com os mais fragilizados, para que um dia aceitem dar-nos condições de vida digna na velhice, quando ficarmos à sua mercê, sem condições físicas e mentais para trabalhar mas ainda muito novos para morrer de vergonha do que deixámos que fizessem em nosso nome.


Movimento para a IV República

5 de Setembro de 2005

Passou a ser lugar comum a noção de estarmos a viver uma crise de regime em Portugal. Todavia, não se vislumbram sinais de regeneração política, o que não pode deixar de estar nos fundamentos da acelerada ciclicidade das desistências e dos abandonos políticos, ao mais alto nível, e a persistência nos cargos de mais baixo nível, mais difíceis de escrutinar publicamente. A arrogância de quem se imagina capaz de, por si só, com a clique de amigos e com os apoios dos boys for the jobs, impor aos portugueses negócios inexplicados e, provavelmente inexplicáveis, alterna com a aparente impotência do Estado, também ela pouco transparente e muito selectiva.

A instabilidade política é, obviamente, induzida pela profunda corruptabilidade do regime. Apesar da avalancha de denúncias dos últimos anos, evidentemente, nada de essencial tem sido possível melhorar. Os partidos já sentiram necessidade de limpar as suas hostes, com evidentes dificuldades e com resultados nada claros. O sentimento de impotência não pode substituir a confiança na democracia. O sentimento de impunidade e os queixumes para saco roto – ou, pior, a perseguição dos denunciantes – corroem o orgulho que temos por Portugal, a vontade de sermos melhores portugueses, as espectativas de vidas melhores para os nossos pais e para os nossos filhos.

A alternância democrática foi capturada pelos arranjos políticos implícitos entre duas facções que parecem degladiar-se quando de facto cooperam na manutenção do estado das coisas. Sociais democratas para beneficiarem directamente dos fundos da coesão social da União Europeia, revelam-se, à direita e à esquerda, neo-liberais na distribuição desses benefícios no interior, estando Portugal com taxas de pobreza e taxas de desigualdade social das mais altas, analfabetismo crónico e iliteracia desgraçadamente única no espaço europeu, ineficiência dos processos de ensino e impedimentos organizados – e injustos – ao desenvolvimento educativo e profissional dos jovens, quando as taxas de desemprego de licenciados são enormes, num país com excassez de pessoas qualificadas. O trabalho, pela pobreza dos sistemas produtivos e da gestão de recursos humanos, ajuda a desqualificar uma mão-de-obra já de si desqualificada, num ciclo de enterra moral e cívica das potencialidades dos portugueses, que continuam a ser mais bem sucedidos lá fora do que reconhecidos no seu próprio país, para realização de uma estafada, miserável mas persistente política de exploração das vantagens competitivas do preço baixo do factor trabalho no nosso País.

Os portugueses têm razões para não acreditarem em políticos que se comportam como aristocratas ou como contabilistas. Até porque já lhes deram todos os créditos possíveis e imaginários, e vemos agora no que resultou. Não está em causa a sinceridade ou a perversidade com que sempre são desenhadas políticas que mexem com interesses. O que está em causa é a necessidade inadiável de mudar de rumo, democraticamente, o que manifestamente tarda e não parece possível com o actual regime. Há pois que ir mais fundo na exploração das potencialidades democráticas e aprender com outros povos mais experientes democraticamente como se podem ultrapassar politicamente crises de nó cego como aquelas que estamos a viver.

 

Procura-se quem represente e suporte a vontade dos portugueses de se mobilizarem democraticamente para as tarefas de produção de uma nova estratégia capaz de colocar o país com capacidades proactivas e inovadoras no mundo global em que estamos inseridos, em benefício dos portugueses e do bem estar para quem viva em Portugal. Essa mobilização não pode deixar de ser radicalmente crítica em relação à intolerável tolerância da cunha e da prateleira, do uso dos dinheiros públicos para distribuir pelos correlionários e pelos arrivistas colectores de financiamentos políticos, do desleixo na colecta de impostos e de organização da segurança social – que se anuncia velhacamente falida aos que dela esperavam que cumprisse o contrato que, entretanto, benefia (escandalosamente) quem nada deveria poder esperar desse seguro social dos trabalhadores portugueses.

Pode caber à Presidência da República abrir debates e dar voz à vontade e às iniciativas de todos os portugueses, e não apenas aqueles que prometem a árvore das patacas ou agricultura biológica das revistas cor-de-rosa. Pode caber ao Presidente da Republica servir a autonomia das instituições políticas, a consonância dos seus comportamentos relativamente à vontade dos Portugueses e não aceitar quaisquer interferências do Sr. Cunha, sejam elas veiculadas por amigalhaços ou por partidos inteiros. A justiça – aquela que é produzida pelas instituições judiciais e a outra, mais difusa, gerada pelo ambiente político e pelas políticas concretas quotidianas – deve ser sistematicamente escrutinada e não apenas para efeitos mediáticos ou para entreter os tele-espectadores. Não faz nenhum sentido entregar a resolução dos problemas estruturais da justiça portuguesa às corporações e às personalidades que construiram e beneficiaram – e continuam a beneficiar – da injustiça que campeia descarada e impunemente. Não é aceitável que bons desempenhos profissionais sejam postos em causa por um sistema de profunda interferência política na administração do Estado, que arreda toda a possibilidade de demonstrações de mérito e, para isso mesmo, faz circular o pessoal de confiança, em alta velocidade, por todos os milhares de lugares disponíveis, tornando impossível qualquer tipo de avaliação de desempenho administrativo e político.

Pode caber ao Presidente da República trazer os portugueses a construirem o Portugal do século XXI, já que o que também está em causa, no magma da globalização e das políticas europeias, é saber o que os portugueses querem ser no futuro: os herdeiros de uma língua e cultura minoritária e folclórica para vender aos turistas da terceira idade? Ou um povo que, mais uma vez, será capaz de dar novos mundos ao mundo, de encontrar caminhos novos para a justiça social, nos quadros financeiros e demográficos que são conhecidos mas em quadros políticos e sociais que temos oportunidade de, com a nossa vontade colectiva, encontrar democraticamente. Para atingir esses objectivos é indispensável começarmos de imediato a alterar comportamentos, nomeadamente a sermos exigentes connosco próprios e não aceitarmos mais entregar os pontos a quem nos melhor garante que não nos incomodará – até porque a experiência mostra como nos enganamos frequentemente nesse juízo. Temos que exigir de nós mesmos, e em primeiro lugar às instituições, que as denúncias e as queixas que chegam à administração serão tratadas em tempo útil, conforme a lei, e de modo empenhado e sério, em vez do velho sacudir de água do capote. Para que serve votar num candidato a Presidente da República com responsabilidades na estruturação de um regime que, manifestamente, caiu da cadeira, sem lhe pedir uma avaliação específica e criteriosa do que nos trouxe a este beco? Para assistirmos ao fecho de mais saídas para o regime? Para adiarmos para amanhã o que se pode começar a fazer hoje?

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os que lutam por sobreviver, aqueles a quem não são reconhecidos os seus direitos e que confrontam com os esquemas kafkianos montados pelo tráfico de influências e pela corrupção, os que são humilhados por querem denunciar situações ilícitas são igualmente responsáveis, se comparados com aqueles que recebem reformas ilegítimas para que possam continuar a acumular benesses e manterem a culpa solteira? Nestes trinta e um anos de democracia, houve quem desse tudo, incluindo o bem estar pessoal e das respectivas famílias, para melhorar Portugal e também houve os que só pensaram em si mesmo, nos seus pregaminhos e nas conjuras que fossem necessárias para não terem obstáculos à afirmação das suas irresponsáveis convicções, ao ponto de o povo confundir os bem intencionados e os mal intencionados de entre os vencedores destas competições organizadas pelo Sr. Cunha.

Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os responsáveis não podem continuar irresponsáveis.


Esquerda dos marretas

3 Agosto 2005

Ao mesmo tempo que os comentadores mediáticos iam notando a esclerose da República portuguesa, dois dos pais fundadores do “monstro” voltavam às origens: Freitas do Amaral “exactamente ao centro, como a (sua) tradição democrata-cristã” e Mário Soares à “aliança das esquerdas”. Quanto mais as técnica e ciência positivas nos distanciam (nas escolas e nas empresas) dos nossos parceiros europeus, mais a ideologia se volta a revelar importante. Pelo menos é isso que transparece do sucesso da renovada vida política destes dois dinossáurios dos dinossáurios, como fizeram questão de lembrar os autarcas incomodados com a luta contra os “desenrascados” do poder local democrático – para alguns uma das principais conquistas do 25 de Abril.

Todos compreendemos o desespero paternal de quem vê descambar a sua própria criatura. Todos podemos respeitar a entrega cívica com estes senadores, sem interesse pessoal que o explique, se disponibilizam para servir o Estado e os portugueses. Mas não é legítima e necessária a pergunta: não há mais ninguém capaz de cumprir o rotativismo democrático efectivo que qualquer democracia precisa? De que modo é que as ideias e ideais que estruturaram ideologicamente a vida nacional nos anos 70 e 80 provaram ser válidas? Que ideias e ideais são precisos actualmente?

Das três respostas necessárias, apenas a primeira é consensual: NÃO. O rotativismo entre PSD e PS debate-se actualmente com a necessidade de expurgar a “má moeda”, tarefa que a direcção do PSD está a ensaiar com as maiores dificuldades – os resultados das eleições autárquicas revelarão melhor o sentido democrático dos portugueses na contabilidade entre candidatos oficiais e locais dos partidos do poder onde este tipo de lutas se tornou público e notório – e que o PS está a sentir nas contradições da governação que acabaram com o estado de graça num instante, ao contrário do que aconteceu com Guterres.

A última resposta é a que mais interessa para o futuro e que falta de todo elaborar, quando os partidos se dividem em guerras internas que impedem os respectivos grupos de estudos de funcionar. Numa situação em que as academias, que poderiam ser chamadas a cumprir aqui um papel relevante, estão mergulhadas numa letargia apenas interrompida pelo fulgor mediático de um ou outro “cientista sem ideologia” por conta própria. Para construir uma resposta não basta uma mente brilhante, um D.Sabastião – que felizmente também não se tem perfilado. É preciso trabalho institucionalizado e plural, coisa que, precisamente, mais falta faz em Portugal. Não só porque o nosso espírito é avesso à organização, mas principalmente porque nos sentimos impotentes (e até amedrontados) face a organizações (corruptas, ignorantes e arrogantes) muito bem organizadas, sob a vigilância de um Estado sem Direito à vista.

Resta-nos, pois, elaborar sobre uma resposta possível à segunda questão, que não sendo a mais decisiva, condiciona grandemente o nosso futuro, antes e depois de haver uma resposta tranquilizadora à crise moral actual: de que somos feitos nós mesmos, os democratas de Abril em 2005?

Somos feitos de marretas, isto é, de descontentes crónicos com as “conquistas” de Abril que fizeram uma classe de políticos inenarrável na sua boçalidade e despudor materialista, digamos assim. Nesse sentido somos todos de esquerda, contra o poder do dia, mesmo quando o poder passa por nós – como ficou bem evidente no consulado de Cavaco Silva, a versão moderna mais próxima do D. Sebastião que aturámos, sem desprimor para todas as outras. Este sentimento é geral: o orçamento não é “nosso” mas “deles”, assim como as obras, a administração, as responsabilidades. Para “nós” reservamo-nos o ripanço de observadores telenoveleiros das crónicas jornalísticas, quantas vezes “poéticas” e tão desfocadas das realidades quanto a propaganda, conforme descrição já célebre de José Gil. Por isso, em Portugal, as aparências continuam a ser importantes. As realidades não interessam a ninguém. Desse modo é possível escolher as partes de umas e de outras que convém em cada momento, pois, como disse o poeta, “a mentira para ser eficaz tem que ter uma ponta de verdade”. À mesa das negociações, seja ela a Concertação Social ou da Liga de Clubes, além do pavoneamento do poder e das ameaças correspondentes, pouco ou nada se consegue. Até porque mesmo quando sai alguma decisão, logo as “dificuldades técnicas” se lhe sobrepõem.

A partidarização da administração pública fez-se, e continua a fazer-se, com o pretexto das incapacidades e incompetências dos funcionários, como se fossem eles que têm ditado as políticas educativas, de recrutamento e de formação com que foram produzidos. Competentes são os fieis, apesar do Estado português ser formalmente laico. Mas praticamente toda a política se faz à esquerda: mesmo no CDS há quem se sinta de esquerda para poder conquistar votos ao PSD – partido social democrata. Com desprezo pela administração pública? Quando o Estado Social – ainda que embrionário – tem sido uma das bandeiras mais fortes e bem conseguidas do regime?

Diz-se que Freitas do Amaral “virou” à esquerda depois de ter tido a experiência de um ano à frente da Assembleia Geral das Nações Unidas e que Mário Soares se tornou esquerdista depois do mandato que fez em Bruxelas. Quer dizer: mergulhados na sociedade portuguesa não se aperceberam quanto esta da esquerda mais radical (da boca para fora) se passou para a direita neo-liberal (da boca para dentro, a ter em conta os amargos de boca). Uma vez no exterior, em contacto com o mundo democrático que – apesar de tudo – vive a pluralidade das convicções, vive a política como ideologia que em Portugal tem vindo a ser mais do recalcada – principalmente nos partidos – reprimida, os nossos mais velhos, manifestamente preocupados, trouxeram-nos a mensagem: reviva a política. Mas com que nível de cinismo e hipocrisia, senhores marretas?

Revisitar Tocqueville parece aconselhável, na parte em que ele se queixava dos modelos sociais franceses da primeira metade do século XIX, os novos senhores pós-aristocráticos que se dedicam em exclusividade a aumentar os seus proventos económicos, ignorando as tradicionais recomendações que separavam actividades honradas das outras e ignorando a política, a não ser na estrita medida em que ela pode interferir com os respectivos interesses. Os dois séculos de diferença não desactualizaram a relevância do reparo. O que nos faz pensar poder ser útil reflectir sobre a tese política principal do aristocrata e alto funcionário, a saber que os valores da liberdade e da igualdade, em determinadas circunstâncias, podem ser contraditórios. É que no caso português, dadas as nossas circunstâncias de “atraso” ou resistência à modernidade, a revolução democrática fez-se pela liberdade primeiro, pela igualdade depois. Parece-me certo – embora admita ser controverso – que sem a revolução propriamente dita (e a sua normalização de 25 de Novembro de 1975) a liberdade que temos vivido seria outra. Certo certo é que sofremos por ser o país da Comunidade Europeia mais desigual, talvez por reacção à “vacina” do igualitarismo revolucionário “real” à portuguesa (também ele eivado de hipocrisia, como todos nós), e nem por isso a economia dá sinais de sustentabilidade. Ao contrário. É precisamente por falta de racionalidade, avaliação e responsabilização – de que a sucessão de governantes cada vez mais desorientados é demonstração cabal –, é resultado da resistência aos princípios democráticos de igualdade – a começar pelos que se referem ao Estado de Direito e à Educação para todos – o nosso entupimento político actual, a que já chamaram “forças de bloqueio”, “pântano”, “apelo de Bruxelas”, “obsessão do deficit” sem nunca nomear o toiro pelo nome. Passamos a vida, cobarde, na cernelha.

 


O m(in)istério da falta de autoridade do Estado

2005-07-04

Recuo em forma de avanço é a formação mais desordenada que se pode imaginar.

Quase triplica o orçamento rectificado com que o ministério da administração interna recua perante o descontentamento generalizado das polícias. O que poderia ser uma medida de bom senso, face ao desnorte do governo anterior nesta área e às evidências do desleixo no investimento que dignificasse a profissão e os profissionais, enquanto servidores da segurança dos cidadãos e já não caceteiros ao serviço do governo, emerge como o seu oposto: mais um sinal da falta de autoridade do Estado.

Depois de cem dias em que praticamente o experimentado ministro não acertou uma, estava a precisar de se redimir. Depois de agressivas manifestações de descontentamento dos polícias que se lhe dirigiram pessoalmente, como não entender o anúncio do prémio orçamental como um recuo? Daí não virá mal ao mundo, quando um ministro dá a mão à palmatória e reconhece o fundo dos argumentos dos polícias, mesmo quando a forma não pode ser reconhecida - e não o foi.

A questão, porém, é que ninguém pode ignorar como a inventona de "arrastão" na praia Carcavelos poderá ter servido para convencer o governo a ceder na austeridade para auxiliar o seu ministro, praticamente náufrago dos seus próprios subordinados. E cabe ao governo e ao ministro esclarecer tim-tim por tim-tim uma versão dos eventos que não comprometa a autoridade do Estado.

Os factos são que a polícia, a propósito do dia 10 de Junho em Carcavelos, emitiu duas posições: uma primeira, antes dos acontecimentos ou praticamente ao mesmo tempo que eles ocorriam, em que reconhecia estar-se em presença de um método de ataque aos banhistas - o brasileiro "arrastão" - perpetrado por 500 pessoas. Outra posição, mais tarde e perante o alarme social gerado, foi a de não reconhecer qualquer organização ou método específico, nem sequer roubos ou violência no areal, a não ser a que a própria polícia desenvolveu e espalhou.

Estando nós a falar da mesma organização policial, e tendo em conta a repercussões mediáticas e políticas do que se seguiram - em particular o próprio anúncio de um aumento significativo do orçamento das forças policiais - é indispensável que os portugueses saibam quem foi (e é) responsável pela produção de uma e de outra das posições contraditórias que vieram a público. Se isso não for cabalmente esclarecido, politicamente a responsabilidade deverá ser assacada ao titular da pasta da administração interna, o mesmo que anunciou o acréscimo de orçamento que anteriormente não estava previsto e que, nesse caso, seria, politicamente, um infractor beneficiado. Quiçá, o organizador da chantagem política contra o seu próprio governo.

A autoridade do Estado está em crise. Não tanto porque os ataques que lhe são desferidos do exterior sejam fortes, ou porque a reacção penal seja pouco intimidatória. Mas antes por responsabilidade dos próprios agentes mais qualificados do Estado: os tribunais que demoram eternidades para tomarem decisões, necessariamente injustas nessas condições; os ministros que desprezam visceralmente os servidores do Estado mas lhes admitem golpes baixos e pressões ilegítimas, desde que elas sejam eficazes para os tolher pessoalmente nos seus lugares; políticas que dependem de conjunturas conspirativas, quando Portugal precisa de uma visão de futuro.

Apesar de compreender que devem existir fortes necessidades de investimento nas polícias, não compreendo que esses investimentos sejam feitos contra vontade do governo para salvar um ministro em dificuldades face ao ímpeto político de acontecimentos mediáticos mais ou menos maquiavélicos. Se um ministro, como parece ser o caso, não é capaz de fazer respeitar a autoridade do Estado, ainda por cima no sector da segurança – cujo objecto primordial é a própria segurança - não será atirando dinheiro aos problemas que Portugal os vê resolvidos. Ainda que desse modo o ministro possa escapar desta situação politicamente complicada.

É, pois, o pior sinal de recuo que poderíamos esperar por parte do governo, na altura em que se discute precisamente sobre a sua capacidade para resistir na defesa do programa de governação.


A crise da banca

2005-06-22

Dadas as circunstâncias de colapso anunciado do Estado português, e a evidência das responsabilidades políticas das classes dominantes em democracia, nomeadamente os beneficiários do sector de obras públicas e do sector financeiro, e dos respectivos consultores e governos, no uso dos incentivos à modernização, desde 1986 – antes disso era a instabilidade política e o FMI – as campanhas políticas de recuperação de imagem e de abandono das práticas até aqui consideradas democráticas emergem.

Uma das vertentes vai no sentido de dizer que o nosso atraso actual se deve às nacionalizações de 1975. Parece óbvio. Mas de facto merece ser um pouco melhor explicado, para não parecermos os governos pós-coloniais que se queixam do colonialismo para justificar as suas tendências cleptocráticas actuais. Qualquer explicação deve passar por saber os custos que o Estado encaixou – nomeadamente em reformas antecipadas e outras indemnizações – e pela apreciação dos resultados (parece que temos o sector financeiro dos mais modernos do mundo.

Outra vertente é menos ideológica e mais pragmática: o velho dividir para reinar. No caso, denegrir para prevenir reacções populares. Refiro-me à campanha de xenofobia e de promoção do racismo levada a cabo vergonhosamente pela maior parte da comunicação social no fim desta Primavera, através da inventona de um arrastão de praia. De facto, como se prova, a concentração da comunicação social nas mãos de pessoas e organizações comprometidas com o status quo, numa altura de necessidade de mudança radical, só pode ser perniciosa. Iremos, com certeza, assistir a mais episódios vergonhosos daqui para a frente: onde falte informação há-de sobrar imaginação “objectiva”, pois não!

Uma terceira vertente é o apelo ao colaboracionismo de classes, grupos profissionais, sindicatos, organizações de toda a espécie, cuja actividade normal irá ser estigmatizada – como se fossem eles os responsáveis pelas políticas “consensuais” desenvolvidas consistentemente durante os últimos vinte anos.

Uma quarta vertente será a manipulação, para efeitos domésticos, da crise europeia das políticas neo-liberais, que tudo indica se irá agudizar.


O mistério da produtividade e/imigrante

 2005-05-31

Os portugueses são conhecidos por serem pouco produtivos no solo pátrio mas dos mais produtivos em solo estrangeiro. O que é que em Portugal os torna a eles, como aos imigrantes que nos chegam, menos produtivos?

Para um país à procura de novos níveis de produtividade, que nos escapam, este debate é decisivo e deve ser organizado, sem a urgência dos dividendos partidários. Os trabalhadores, os profissionais, os empresários, os dirigentes devem ter ideias claras e sintonizadas a este respeito, sem o que não saberão, ao mesmo tempo, defender os seus interesses e o interesse nacional.

A contribuição que aqui deixo refere-se ao tema evocado misteriosamente como “a mentalidade”.

A mentalidade de um povo é fixada não pelas vontades individuais – se assim fosse, não seria explicável a produtividade fora da pátria – mas sim pelo tipo de relacionamento típico entre as pessoas. Se há característica notória é a incapacidade de organização portuguesa, ou melhor, a dependência radical de uma vontade externa condutora da acção colectiva. Não sei porquê, tem-se chamado a isso “individualismo”, quando é submissão. Mesmo durante a revolução de Abril, um estudo sociológico mostrou como a auto-organização da produção dependia de homens que, contra sua vontade, eram mantidos na posição de caudilhos e pedra de toque de pequenas estruturas sociais.

Hoje em dia temos a “sociedade civil” mais inerte de toda a União Europeia, porque as iniciativas cívicas se deixam deslumbrar pelos controleiros ou pelos guias de entidades politicas e confessionais vertiginosamente hierarquizadas, a ponto de o debate de ideias ser praticamente irrelevante nestes meios. Em Portugal sente-se como repugnante que alguém, sem interesse aparente, tome uma posição. O ódio aos políticos vem daí: alguma coisa de muito tangível eles devem estar a beneficiar, pensa-se. Rapidamente emergem processos de intenção (em geral, em surdina) que isolam a ideia (tornada perversa), impedem qualquer debate com significado e soltam aos pescadores de águas turvas.

Nas organizações e nas empresas, como nas escolas, desconfia-se de quem tenha opinião (“mau feitio”) e reprimem-se tais práticas com o duplo pretexto de que haver o risco de ideias novas aumentarem a carga de trabalho e alterarem as rotinas ou de porem em causa a liderança. Os alunos são convidados a copiar os professores acriticamente, e depois não tem ideias próprias para desenvolver e até acham que as suas ideias – que possam espontaneamente emergir – devem ser reprimidas, por serem incómodas e inconvenientes para os colegas e professores. Os professores devem obedecer radicalmente aos programas e às pedagogias – modernas ou tradicionais – sem se responsabilizarem pelas aprendizagens realmente vividas pelos seus alunos. Os trabalhadores são estimulados a resistirem ao trabalho, como se tivesse que ser uma coisa externa e dolorosa, até porque a principal política de “competição” tem sido os salários baixos. Dos quadros exige-se fidelidade às chefias em vez de competência, até porque esta última é sentida, não raramente, como uma ameaça às gerações mais velhas, ainda pior formadas que os mais novos.

Um Portugal diferente terá que ir ao psicólogo e responsabilizar-se solidariamente para romper o ciclo repressivo das potencialidades dos portugueses, que suporta a economia depressiva que temos vindo a desenvolver. Apesar das teorias do “oásis” ou do Portugal na moda, resta-nos a tanga do fio dental. O que duvido é que tenhamos tempo e recursos para esperar que a mesma classe dirigente que nos trouxe ao beco sem saída faça a sua terapia, até porque uma das virtualidades da democracia é a possibilidade que nos oferece de mudar de classe dirigente sem violência.


O prestígio da classe política

2005-05-25

Como por vezes acontece, o povo tem razão. O desprestígio da classe política portuguesa é merecido, como ficou demonstrado à saciedade pelos episódios em volta das promessas eleitorais e o deficit público. Uns e outros, sabendo da situação, prometeram o que não tinham intenção de cumprir e livraram-se das promessas eleitorais uma vez eleitos.

É certo que o povo foi formado a desconfiar dos seus governantes. E concerteza não foi por acaso que se cunhou o verbo “governar-se”. Na senda da política de saque pentasecular, os nossos representantes mantêm-se impotentes face ao poder de quem se governa. Impotentes mas reverentes: jamais Cavaco Silva explicou ao povo o seu tabu, nem Guterres o seu pântano, Durão Barroso os acordos com o Presidente, nem este nos explicou porque é que o sistema judicial se mantém opaco e disfuncional. Os dinossauros acumulam poderes, ao mesmo tempo que a corrupção abafa qualquer iniciativa sem tutela, e ainda se queixam da falta de “espírito” empresarial!

Os governantes também estão formados a desconfiar do povo, que sabem não lhes ter respeito, a não ser quando lhe fazem lembrar dos tempos sem democracia, sem votos.

A volatilidade deste relacionamento entre governantes e governados, expressa positivamente na fragilidade e perversão política dos movimentos associativos em Portugal (por contraste com todos os outros países da União), reflecte-se na instabilidade política, para cujo combate os votantes têm contribuído mais do que os eleitos.

Manifestamente, a doença chegou ao tutano, melhor dito ao “tutu”. Como todos sabem, casa em que não há pão … vão ser precisos princípios democráticos de gestão das crises materiais e emocionais que estão a chegar. O governo já anunciou medidas para conter o deficit público. Os economistas instam-no a proceder a reformas estruturais, que têm sido evitadas faz bué anos. Mas os portugueses descrêem do que mais parece uma reposição de um mau filme português.

É hora de chamar à responsabilidade a classe política que nos trouxe a este beco. É que também há quem nunca tenha entrado para a política por causa do mau ambiente, da subserviência, dos monstros, dos pântanos, das tangas, de que é fundamentalmente feita a política portuguesa. Para ser completamente sincero, muitos dos assuntos em que acabei por mexer por via da actividade cívica muito limitada que tenho desenvolvido, fazem-me ter nojo crescente de algumas pessoas mas principalmente das práticas de arregimentação partidária em vigor neste país.

Será por razões de fanatismo partidário ou ideológico, por sectarismo, por compadrio militante, para camuflar as misérias do financiamento partidário, para explorar a economia paralela, por sentido de competição? Não sei, mas que é moda do jet set em Portugal ser-se reverente com os poderosos, amesquinhador com os outros e compassivo com os confrades, isso é.

Caros concidadãos,

Aprender a aprender não custa tanto dinheiro como tirar um certificado escolar. Mas ajuda muito a produzir as dinâmicas necessárias à recriação de Portugal como país estruturalmente europeu, que se sabe hoje, sem dúvidas, não saber ser, apesar de termos “estado na moda” da demagogia por diversas ocasiões. Aprender a democracia custa apenas a subscrição necessária para fazer um sócio de uma qualquer associação cívica e, mais difícil, a assunção de responsabilidades e protagonismos que se vieram a mostrar necessários, sem receios e com liberdade. É preciso reformar, sem pensões, esta classe política que tem monopolizado o poder em Portugal. Mas para isso é preciso que haja quem esteja disposto a dar o corpo ao manifesto, e uma democracia mais efectiva e não tão limitada como a que temos vivido.


Violência urbana: uma inevitabilidade?

 A propósito do 8º aniversário da ACED, Abril de 2005

  1. Numa sociedade de classe média, como se imagina ser uma democracia, em que a liberdade se une à igualdade (de oportunidades) em nome da produtividade da competição individual, o que é ser-se normal? Qualquer psicólogo saberá dizer que é tudo cada vez mais relativo, embora admita que há situações patológicas que os psiquiatras podem tratar: o que não se deve fazer é reforçar a especificidade de cada pessoa, principalmente nas vertentes negativas, ao ponto de contribuir para o efeito das “profecias que se auto-realizam”, de que são exemplo os estigmas sociais.
  2. O normal é, bastantes vezes, referido como correspondente à cor cinzenta, de rotina invariável, sem emoção. Neste sentido quem quer ser normal? E quem pode fugir à normalidade, que é como quem diz, quem pode competir com a acelerada concorrência de cultura derramada nas televisões, seja ela erudita, científica ou popular.[1] Nos fins-de-semana à noite podemos observar facilmente a náusea geralmente alcoólica dos auto-limitados cinzentões, retidos nas suas rotinas semanais, à procura de “iluminação” nos espaços mais “in”. Lá se encontram todas as vidas, em uníssono, normais, não normais e anormais, à procura de excitação, mas também de direitos e de respeito. A sociabilidade é uma necessidade. Mas de pouco servem as imitações.
  3. Retomando o psicólogo, ser-se normal é uma chatice, isto é, é tão difícil (trabalhar anos a fio sem desejo de realização pelo trabalho) que será preferível assumirmos algum distanciamento. O que nos faltar para a normalidade, tomemo-lo, aconselham-nos, como a idiossincrasia que nos dá cor e identidade: algo de que nos possamos orgulhar.
  4. A transgressão social é uma das formas velhas como o mundo – pelo menos desde o tempo de Adão e Eva – de afirmar a nossa existência individual. De riscar. Isso pode ser feito ao jeito de Howard Hugues ou do Bin Laden. Em geral em menor escala. Mas tem que ser feito. Por isso mesmo não se conhecem, por exemplo, sociedades que não usem drogas de várias espécies ou comunidades onde alguém não se tenha perdido na procura de ser diferente. Existem, sem dúvida, os normais e os seus antagonistas – os não normais. Pensamos mais em actos do que em pessoas.
  5. Os anormais é outra coisa. São aqueles seres humanos a quem se atribui uma perenidade inelutável de certas características menorizantes, estigmatizantes. Pensamos menos nos actos do que nas potencialidades anti-sociais das pessoas.
  6. As diferenças entre normais, não normais e anormais são tanto reais e verificáveis quanto o são projectadas por quem usa a classificação em outros seres humanos, como forma de solidariedade, de conforto, de ajuda ou de agressão, justificada ou não, útil ou não. Classificar informação sobre pessoas é, deveras, complicado e arriscado. Mas essa é a principal tarefa das instituições de segurança, aliás como o é das instituições sociais. Obter informação classificada sobre como mais objectivamente classificar populações, grupos, pessoas, situações.
  7. É normal o respeito da autoridade policial em certas zonas da cidade, como é normal o desrespeito noutras zonas. Não normal é o desrespeito em certas zonas da cidade, como o é o respeito noutras zonas. Anormal é a violência urbana em qualquer lado que se manifeste. Não apenas porque urbanidade não rima com violência, como – dadas as circunstâncias de vida nas grandes cidades e nas metrópoles – a violência pode atear, como um rastilho, toda a vida social, num indesejável colorido que todavia marca o quotidiano de muitas delas, mais do que das nossas, em Portugal.
  8. A violência tem de ser contida nas cidades para nelas se poder viver. E não há, evidentemente, corpo policial nenhum capaz de, por si só, satisfazer esse objectivo. Ao invés: a sua exposição pública e notória é um chamariz que serve de escudo humano à defesa da normalidade da vida, na sua periclitante existência. Sim, é um alvo, como a máquina de atrair os insectos.
  9. Qualquer filme de polícias e ladrões mostra isso mesmo. É preciso sete vidas para fazer uma carreira dedicada às forças da ordem e atingir um agente é crime de lesa-majestade. Mas atingir terceiros também começa a ser cada vez mais inaceitável. Os danos colaterais e o fogo amigo já não são justificáveis pela auto-defesa do agente do Estado, porque se conhecem casos de não-normalidade e de anormalidade nas corporações de segurança e principalmente porque se aceita ser possível – e de todo intolerável – a manipulação das forças do Estado para conspirações que no século XIX eram executadas por bandoleiros aos serviço dos políticos.
  10. Na sociedade da informação, o que separa os não-normais dos anormais é a densidade da informação disponível. Um comportamento desviante socialmente enquadrado não é normal, imagina-se saber. Mas o mesmo comportamento num quadro social estigmatizado, julga-se saber, será percebido como normal, isto é recorrente e, portanto, anormal. Certos bairros da cidade querem-se transparentes e sinceros, porque estão seguros de si. São urbanizados e querem urbanidade. Outros bairros da cidade não estão urbanizados, sofrem do medo que se encolhe nos seus habitantes, que por seu turno o mascaram, quantas vezes com atitudes agressivas. Aqui contam-se os maiores números de vítimas da violência desurbana, mas a polícia é quase sempre recebida como ameaça. Falta-lhes mutuo reconhecimento, falta-lhes (in)formação, falta-lhes alianças que as defendam, ambas as partes, das conspirações de terceiros que, no poder ou no crime, usam os territórios desurbanizados como campo de batalhas estratégicas, de recrutamento de mão-de-obra, de especulação imobiliária, de circulação de influências e mercadorias ilícitas.
  11. Na sociedade do conhecimento irá ser possível integrar, como parece ser a esperança de muitos, a nível global mas também a nível local, segurança externa (defesa dos terrorismos), segurança interna (defesa contra as desurbanidades) e segurança social (defesa contra as desigualdades tornadas cultura).
 

[1] . O nosso “pimba” corresponde ao “pop” para os anglófonos, embora sujeito de conotações bem diferentes das lusas e a proventos também diversos. É um caso de diferente auto-estima ou de diferentes experiências de luta de classes? Ou, mais prosaicamente, de projecto poliítico-cultural?


Contribuição para o balanço histórico dos estatutos de carreira docente

2005-03-17 

O Conselho Nacional do SNESup de dia 12 de Março de 2005 revelou o desconhecimento técnico dos sindicalistas sobre como funciona uma assembleia democrática e manifestou substantivamente, por votação, o repúdio maioritário pela discussão do que sejam interpretações democráticas e não democráticas dos estatutos e do funcionamento dos órgãos sociais do sindicato.

Os fascistas do antigo regime entendiam o facto de deterem o poder do Estado, o facto de “serem chamados” a reunirem como ministros do conselho do Salazar, como uma missão nacional. Entendiam aqueles que queriam discutir ou fazer política (ou sindicalismo) como maníacos do poder, usurpadores potenciais desse mesmo poder, enfim velhacos traidores à pátria – porque a Pátria era Salazar – merecedores de serem objecto de todo o tipo de golpes (baixos e altos) que os contivessem.

Estes fascistas não viviam em torres de marfim defendidas por militares, como hoje vemos acontecer nas reuinões do G8 e quejandas. Viviam a boiar na indiferença nacional, na ideologia de que a “melhor política é o trabalho”, que o chefe é o chefe e mudar isso pode ainda ser pior. De que é devida fidelidade ao chefe, como se deve fidelidade à portugualidade incompreendida pelo comum dos mortais e cujos defensores eram o chefe e os seus fiéis. Já viram o que seria perguntar-se ao ignaro povo português (nós próprios) o que quereria fazer do seu país e do seu destino? Sabem lá como responder a isso! Como se dizia então: o povo português não estava preparado para a Democracia, forma de governo subtil e elaborada, que é muito dispendiosa em termos de energias intelectuais e em tempo de discussão.

30 anos depois do 25 de Abril, Salazar sentir-se-ia reconfortado por saber que no SNESup os seus preceitos políticos fundamentais ainda são apreciados. Passo por cima das técnicas de golpe usadas na produção de decisões, que podem ser apreciadas pelo branqueamento de actas e de resultados de propostas aprovadas ou pela manipulação de assembleias – a simples consulta de documentos o revelará, a quem estiver interessado nisso. Concentro a minha atenção nos aspectos ideológicos, na concepção de sindicalismo que anima a maioria daqueles docentes do ensino superior que se deslocam às reuniões sindicais, num país democratizado.

Primeira constatação: não se deslocam a não ser a pedido especial de alguém que faz o esforço de manter o sindicato. Segunda constatação: os que se deslocam sentem frequentemente desejos de expressar fidelidade a quem manda, principalmente se isso coincidir com quem os conseguiu demover a aceitar ir às reuniões (de que de resto sentem ser um dos custo da democracia). Terceira constatação: jamais discutem política – isso é o trabalho sujo dos políticos – nem sequer se interessam pelo assunto (o verdadeiro sindicalismo não é isso!!). Aguentam todas as provocações estoicamente (prometem interiormente nunca mais se meterem em estuchas dessas, a menos que os amigos os voltem a obrigar a isso) e votam conforme estava combinado, quando chegar a altura (finalmente!). Será que esta gente não trabalha? Devem perguntar-se a si próprios, confundido trabalho com obediência a seja quem for que possa estar em posição de dividir trabalho.

30 anos depois, a gestão democrática no ensino superior, a condução das carreiras dos docentes e as práticas profissionais nas escolas em geral, permitiram o desenvolvimento de (vamos ser ponderados) traços de ideologia fascista. Pelo menos eles emergem no nosso sindicato. O facto de poder ser inconsciente não me anima particularmente. Não anima mais do que o uso de meios  digitais de propaganda – os modernismos no tempo do Salazar eram com o António Ferro. Esse é, devemos reconhecê-lo, um dos mais preocupantes e pesados resultados do Ensino Superior em Portugal.

Estou chateado – como diz o outro – mas disponível para aprofundar a reflexão sobre a democratização do sindicato e do ensino superior, para dela tirar as necessárias consequências práticas, a nível interno e a nível externo das lutas sindicais.


Saldanha Sanches, os autarcas e os portugueses

 2005-03-02

A associação de autarcas portugueses resolveu mandar calar Saldanha Sanches. Para o efeito usou uma das já rotineiras e saudáveis declarações de denúncia da corrupção endémica em Portugal para fazer disso um facto político. E fê-lo numa época de troca de governos, certamente não por acaso: precisamente para confrontar o novo governo com o facto consumado, perante o qual apenas terá que tomar uma de duas posições: contra ou a favor “deles” (onde é que já ouvi isto?).

É sinal de que tudo vai ficar na mesma, quanto à impotência do governo face às corporações, a declaração televisiva do porta-voz do PS, que apesar de reconhecer a inviabilidade legal dos processos que ameaçam dar entrada nos tribunais – para os ocupar e gastar dinheiro público – decidiu manifestar-se contra a “forma” de expressão do Prof. fiscalista.

O que se espera do governo é que cuide dos problemas dos portugueses e não que se deixe envolver em polémicas de carácter ou de forma, e muito menos que preste vassalagem a poderes fácticos intolerantes e prepotentes.

Saldanha Sanches tornou-se conhecido da opinião pública à medida que a questão fiscal se tornou obviamente escandalosa, tanto quanto a incapacidade do Estado em assegurar a credibilidade do sistema fiscal. De tal maneira o assunto é central e incómodo que o professor se tornou comentador reconhecido e influente. Querem calar essa voz? Quem o deseja?

A sua independência partidária tem sido garante da firmeza de posições, em contraste com a subserviência dos nossos legítimos representantes, aparentemente impotentes. Como dizia o outro, é preciso afastar a má moeda, mas não foi essa a intenção manifestada. E foi pena.

Recriar a confiança de que os portugueses precisam para mudar Portugal é a principal tarefa política, actualmente. A fiabilidade do sistema fiscal, a transparência do financiamento autárquico e dos partidos bem como a perseguição da riqueza súbita e inexplicada são tarefas prioritárias, e não se fazem com os que serão mais prejudicados, aqueles que tem por modo de vida acumular privilégios.

O Professor Saldanha Sanches não é uma ameaça para os portugueses. Porque é que é uma ameaça para os autarcas? 


Organizemo-nos

2005-01-09

Em memória do José Baptista

Como se costuma dizer, o dinheiro não faz a felicidade mas ajuda muito. Com o Estado (de que depende quase toda a actividade em Portugal) em crise de finanças, é natural que a depressão se faça sentir.

Mas, e se for ao inverso? Se a saúde económica (má) for resultado de uma prévia desmoralidade? Do mesmo modo que é possível desconfiar de um certo modo de vida esquisito - suportado por práticas ilícitas, por taralhoquice, ou ambas as deficiências - também é possível desconfiar do modo de vida português.

Por exemplo: já se contaram o número de pessoas em "prateleiras" ou "tachos", uns forçados e outros reforçados? Tal instituição decorre da noção de que é preciso barrar quem desobedece ao chefe, de propósito ou porque acha que há maneiras melhores de fazer as coisas práticas. Na linguagem própria dos organizadores portugueses, quem está a criar "problemas pessoais" tem de abandonar o campo, mesmo que isso prejudique o desempenho. Quem passa a fazer parte do problema, ou nele se deixe envolver, deve ser afastado. Não nos podemos admirar, por consequência, do alheamento generalizado dos portugueses face aos problemas nacionais: essa é a sua cultura.

Todos sabemos como os mediterrânicos, também conhecidos por latinos, são temperamentais. Não suportam contrariedades ao exercício dos seus mesquinhos poderes. Durante anos, em Portugal, Espanha e Grécia essa característica cultural foi utilizada pelos ditadores de serviço para mandar. Em regime democrático, será que os modos de organizar as actividades económicas se mantém na dependência da mistura do "desenrasca" com o alegado "amor à camisola" patrioteiro - dito de outra forma: que as fidelidades ainda são mais importantes do que as funcionalidades? Em Portugal, os chefes nunca se enganam e raramente têm dúvidas, ao contrário dos subordinados que não são pagos para pensar.

Nestas condições, não dá para desconfiar que o resultado do trabalho dos portugueses em Portugal não aparece porque isso parece preferível a quem detem poder do que dar a mão à palmatória? Não é isso mesmo que está demonstrado pelo facto de o actual Primeiro Ministro ser empossado para candidato suicida? O facto de haver quem preveja - quiçá com razão - que a luta pelo poder poderá fazer tremer as expectativas, já que do lado da oposição os créditos não são opostos, revela-nos os limites da concepção dominante de poder em Portugal: poder de se servir e de resistir - o político - e jamais poder de operacionalizar ideias como missão cívica - o otário armado em bonzinho.

Recordo o Zé Baptista dizer que o primeiro problema dos portugueses era o da organização, saberes e disposições. Com Ilona Kovacs e Conceição, mostrou o resultado de um estudo sociológico sobre liderança de organizações produtivas durante a revolução de Abril, concluindo que apesar da mobilização inusitada e do basismo que se vivia então, as organizações cooperativas que emergiram na época eram lideradas por homens sós. Independentemente das respectivas vontades, viam-se todos, dirigentes e dirigidos, inflexivelmente nos seus lugares de classe, digamos assim, e uns dos outros para a vida. Nada pós-moderno.

Quase trinta anos depois é preciso constatar a aversão dos portugueses a considerarem os problemas organizativos como merecedores de atenção cognitiva e prioridade política, nomeadamente através da promoção de campanhas nacionais de valorização do mérito absoluto das pessoas em geral e dos trabalhadores em particular, contra as atitudes defensivas banalisadas e persecutórias da concorrência potencial próxima que nos afunda como nação a todos, como o abraço do naufrago.


Penas “Alternativas” e a política da Reforma Prisional em Portugal

30 de Novembro de 2004

Fui convidado para participar num debate televisivo sobre “Penas Alternativas” à prisão, na RTPNorte, no cabo. Estavam comigo, ou melhor, eu com eles, o Secretário de Estado, o Prof. encarregue de acompanhar a aplicação das pulseiras electrónicas e do outro lado da tele conferência, no Porto, o jornalista e um convidado de uma organização interessada nos problema da reforma prisional.

Fui apresentado como professor universitário e, numa primeira ronda foi-me dada a palavra. Usei-a para dizer que havia um equívoco quando se nomeava as medidas em causa como “alternativas”, já que o governo não tinha definido como meta da sua actuação a diminuição do número de presos, o que seria essencial para que a justiça tivesse sentido prático em Portugal (efectivamente, com 3 vezes o tempo de prisão efectiva, o nosso país se acompanhasse a média europeia teria resolvido definitivamente os problemas de sobre lotação e ter-se-ia aproximado da conformidade com a realidade e com a lei portuguesas, com menos crimes violentos e com penas menos severas do que a média europeia).

O Sr. Secretário de Estado apressou-se a confirmar não haver nenhuma intenção do governo de reduzir o número de presos e do lado do académico especialista em pulseiras electrónicas veio a declaração da esperança de que, a médio longo prazo, noutras circunstâncias portanto, as penas “alternativas” possam vir a ser efectivamente alternativas às penas de prisão. O seu argumento era de que tínhamos vantagem, nessa perspectiva, em estar preparados desde já.

Passados ¾ de hora de enunciação dos benefícios das penas “alternativas” relativamente às penas de prisão, a que evidentemente não fui chamado – e também não me pareceu útil reclamar numa situação de evidente desequilíbrio e impreparação do jornalista – a conclusão era a de que apenas faltaria convencer o público, e até os próprios condenados, de que as penas “alternativas” são penosas, de modo a garantir o seu potencial efeito dissuasor (que, diga-se de passagem, nem as penas de prisão está provado que tenham). Lá para o finzinho do debate, gasto o tempo com discursos de circunstância, contraditórios em si mesmos, mas ideologicamente organizados sob a forma de propaganda, na linha da proposta avançada pelo grupo de trabalho do Prof. Freitas do Amaral, o jornalista lá se lembrou que eu ainda estava em estúdio. Tive então oportunidade de levantar a questão de saber como e porque é que os serviços de acompanhamento das penas “alternativas”, que nunca anteriormente funcionaram de modo efectivo para as tarefas que têm entre mãos, começariam a trabalhar de forma aceitável a partir da iniciativa das penas “alternativas”? Talvez por isso o jornalista entendeu chamar-me a atenção de que estaríamos em cima do tempo e era preciso dar ainda a última palavra ao Sr. Secretário de Estado, pessoa simpática que garantiu que era preciso ser optimista, pois não se podia ficar de braços cruzados numa altura destas.

Mas é precisamente o que acontece, em Portugal. Desde 1996, os governos de diversos partidos prometem reformas prisionais que não são capazes de explicitar publicamente qual o sentido, embora estejam de acordo em organizar um Pacto (contra) da Justiça, de que a nuvem de fumo das penas “alternativas” é a solução propagandística, com a vantagem de se conseguir aumentar ainda mais o desproporcionado sistema repressivo contra os primeiros (e únicos!) objectos da Justiça em Portugal – os excluídos – com redução dos custos previsíveis se só fosse usado o sistema prisional.

A política de baixos salários, de resistência à produção de qualificações escolares, secundárias e superiores, e profissionais para os portugueses e trabalhadores em geral, a redução de custos dos serviços sociais, a precariezação dos laços de solidariedade social e intergeracional, são outros aspectos da mesma política imoral que explica a extrema desigualdade social que se vive em Portugal (segundo os padrões europeus), a grande incidência da pobreza e a incapacidade das elites de encontrarem novas soluções de vida que não seja a repressão.

António Pedro Dores


Pacto de regime ou o fim de uma época?

27 Agosto 2004

As negociações entre o Governo, a maioria parlamentar e a oposição para a concretização de um pacto de regime na Justiça ainda não arrancaram mas existe já uma sintonia entre PS e PSD sobre muitas das matérias que deverão ser alvo daquele acordo.”

Inês David Bastos e Joana Horta, “PSD e PS sintonizados em relação ao pacto de regime” em Diário de Notícias, 2004-08-26

No início dos anos oitenta, um sindicalista, acabado de chegar de umas férias em La Havana – que adorou e vivamente recomendou –, pedia-me para estar calado.

Olhando para trás, imagino-me no futuro, a contar aos meus filhos adultos como era o regime acabado de cair. Será assim que começarei a história. 

Na banca nacionalizada em que trabalhava, já nessa altura à espera da privatização, os dirigentes – todos de esquerda, claro – rivalizavam e aliavam-se entre si para encontrarem a melhor posição para participar, no presente ou no futuro, na distribuição de benesses e alcavalas. Uma das condições óbvias era a de colaborarem com os partidos do poder, os partidos que mais tarde entraram numa lógica de rotativismo clientelar ou corporativo ou caciqueiro. Ao sindicalista, cioso dos seus pregaminhos, restava – imagino eu – resistir à degradação do ambiente, já nos anos oitenta se podia sentir, como um fado. Defender as nacionalizações poderia ser o seu mote, isto é, esconder as incompetências mas também as trafulhices, mesmo dos dirigentes e mesmo dos (ainda candidatos a?) partidários do PS e do PSD.

No tempo da evidente decadência esclerosada do regime fala-se da ausência de política, da corrupção e da impunidade. Não foram os partidos que orientaram a sociedade para a modernização, foram os partidários que negociaram entre si os benefícios que poderiam tirar da necessidade de implantação partidária na sociedade, em concorrência mas principalmente em conjunto. Assim se foram construindo teias cada vez mais densas de ofertas de financiamento ilícito a partir dos postos de influência pública, de que os angariadores eram compensados em bens próprios e impunidade geral.

Nalguns casos verificou-se mesmo existirem regimes de monopólio, partilhado por alianças principalmente entre “partidários” de partidos centrais, sempre no poder, uma vez um outra vez outro. Chamava-se a isto estabilidade.

Inquietos ficaram os mandantes quando o orçamento deixou de aguentar tamanha erosão e tantos areeiros. Foram-se desculpando com a crise económica global, mas de tão fixados no vil metal não quiserem (nem poderam) dar atenção à moral, à justiça, à desigualdade social, nem às aspirações culturais e educativas de um povo resignado por três décadas de crescimento económico e atado de pés e mãos a silêncios comprometidos. Os ancestrais, os obscurantistas e os democráticos. Não compreenderam como é que o segredo de justiça que lhes iria dar as dores de cabeça finais.

No futebol, depois de muitos anos de suspeitas de coisas feias na Federação, lá se reorganizaram e começaram até a pagar alguns impostos, e tudo sossegou. Mas a justiça, apesar da sua independência da política estar garantida por lei – ou será por “sugestão” do Estado? – estava destinada a servir de elo fraco do regime. Vá lá agente compreender os desígnios da História.

Quando deram por ela, os governantes à vez decidiram – finalmente – celebrar um pacto de regime para anular o poder de destruição dos disfuncionamentos judiciários. Simplesmente, certamente por alguma falha na gestão da imagem, decidiram celebrá-lo ao mesmo tempo que num dos partidos signatários se ensaiava uma campanha para escolha do lider, o que revelou a todos os portugueses como as decisões políticas mais importantes se fazem entre os angariadores de recursos para os partidos. Sendo uma garantia de estabilidade, precisamente por ser antecipada relativamente aos morosos processos democráticos, não se compreende como os seus resultados acabaram por ser desastrosos... Terá sido por falta de verbas?


Em Desespero de Causa

3 de Agosto de 2004

Partido das Redes - PRR

Os partidários do PRR não têm em comum uma ideologia mas antes um projecto comum e um código ético-político. 

O projecto comum consiste em organizar o trabalho necessário para uma ruptura constitucional com o actual regime político, em nome de a) novo equilíbrio das contas públicas baseado em receitas de estado justas; b) maior liberdade de expressão partidária, para combater as censuras de utilidade eleitoralista e para tornar públicas as negociações políticas de incidência institucional; c) estabelecimento das instituições de estímulo local à participação de todos na vida pública, em particular em movimentos associativos independentes de interesses predominantes na sociedade portuguesa; d) corolário e condição inicial de todas as anteriores mudanças estruturais está no modo de financiamento dos partidos, que deve ser adequado ao actual estado da economia e à necessidade de promoção acelerada da qualificação escolar e profissional dos empresários, profissionais, quadros, técnicos e trabalhadores, sem discriminações de sexo, orientação sexual, estado de saúde ou nacionalidade.

Cabem dentro do partido formas de expressão representativas da vontade democrática dos seus militantes e também, com nível de dignidade idêntico, formas de expressão de vontades de movimentos sociais, sejam eles tradicionalmente dominantes na sociedade portuguesa (partidos do regime, igreja católica, comentadores e jornalistas de opinião) sejam eles ignorados ou marginais no actual estado de coisas.

As ideologias não estão datadas, os seus usos é que estão enviezados por interesses hegemónicos e não públicos. Dentro do PRR podem, portanto, desenvolver-se todas as tendências ideológicas modernizadoras, na condição de aceitarem trabalhar lealmente e em conjunto com as outras para atingir, na prática, os fins comuns em vista.

A representação da nossa posição política não é de partido de governo nem de partido da oposição. De fora do regime, o PRR reclama democraticamente a reorganização política da nação portuguesa, no quadro dos compromissos internecionais do Estado português, de acordo com o princípio constitucional que garante ao povo o direito de de rebelar contra a opressão por parte de uma qualquer clique dirigente. O PRR está numa posição semelhante ao da Ala Liberal da Assembleia da República no tempo de Marcelo Caetano, na esperança de que o regime permita uma reforma pacífica das instituições políticas e uma varridela eficaz do oportunismo instalado na vida portuguesa, sem prejuízos de maior para o povo.

 


Leis precárias

2004-06-21

Mensagem email

 

Bom dia!

Encontrei o seu site através de uma pesquisa sobre o Estabelecimento

Prisional da Carregueira. Tendo em conta a informação nele contida, as

preocupações e as suas motivações, pensei que talvez fosse possivel esclarecer uma dúvida em relação à atribuição de "Precárias":

Eu sei que cada recluso tem direito a umas quantas, determinadas pelo Juiz e pelo Director da prisão, mas o que me parece é que estas são utilizadas como forma de pressão ou chantagem. Por exemplo: Um recluso no E. P. da Carregueira a 15 dias de acabar a pena, que nunca saiu em precária teve por essa altura a oportunidade de o fazer. Parece-me, no mínimo ridículo. Existe algum meio legal de combater este tipo de tirania de uma forma prática e eficaz? Ou a única defesa que os reclusos têm é só a possibilidade de pedir transferência?

Mesmo não sabendo se terá disponibilidade para me responder e tendo em conta que estamos em época de exames e o professor deve estar muito ocupado, aproveito para lhe agradecer... Se não uma resposta, o simples facto de o seu Site ser tão útil e a sua noção de sociologia ter muito a ver com a observação directa dos fenómenos e não só com uma análise ausente e pouco interessada.

Obrigado pelo envolvimento e pela intervenção.

H.

 

 

Olá H.,

Não creio que a solução para problemas como o que levanta seja legal.

Dito isto há que afirmar (politicamente) a ilegalidade do sistema que procede como a Helena se queixa.

 

Por partes:

1. O Direcção Geral Serviços Prisionais afirma publicamente, por altura da Reforma Prisional, faz oito meses talvez, na SIC-Notícias, que a lei não se cumpre nas prisões portuguesas. Não se demitiu, não foi demitido nem explicou o que quis dizer. É este o país que temos: prende pessoas segundo uma lei que quem prende não respeita (nem tem intenção de respeitar, nem ninguém organiza forma de obrigar a respeitar). Volte a ler o primeiro parágrafo da resposta, sff.

 

2. O sistema prisional português foi organizado na lei em função da filosofia progressiva, isto é, que conduz o detido, principalmente o de média e longa duração, de um regime mais fechado para um regime sucessivamente mais aberto, incluindo RAVI, RAVE, precárias e liberdade condicional. Só que não apenas esse regime não vigora (veja taxas de utilização destes institutos) como vigora ao inverso (a actual Reforma Prisional, independentemente do que está escrito, está a organizar sistema de detenção cada vez mais duros a partir do regime mais duro previsto na lei em vigor).

 

3. Parte significativa do abandono de actividades de formação e educação dos reclusos são interrompidas por motivos disciplinares, a que é dada tamanha prioridade que as turmas ficam reduzidas a poucos alunos rapidamente.

 

Em resumo: fora da lei, o sistema prisional não é auditado por entidades juridicamente empenhadas em fazer respeitar a lei mas antes preocupadas em manter o mínimo de credibilidade do sistema de penas ou inclusivamente cúmplice orgânico de interesses inconfessáveis estranhos ao cumprimento da lei (como é o caso da inspecção da direcção geral).

 

Há que denunciar, judicial e publicamente, o que se está a passar e lutar para que as coisas venham um dia a mudar.

 

APD


Luta pela justiça

7 de Junho de 2004

Durante anos, os muros da cadeias portuguesas estiveram defendidos por silêncios cúmplices dos (ir)responsáveis pela defesa dos direitos dos arguidos e condenados. Aos portugueses foi vedado o conhecimento do que se passa intramuros por um sistema judicial que alguns respeitáveis lutadores isolados qualificaram, justamente, de inquisitorial, mais todo o séquito de beneficiários do sistema e a cobardia de muitos outros, temerosos do poder ilícito mas real.[1]

Este poder (i)legal democrático foi afrontado pela primeira vez pelas suas vítimas mais directas, os presos em luta no início deste século, tornando-se um clamor público em Fevereiro de 2001. Acabaram com a política dos “brandos (e hipócritas) costumes”, cuja guarda avançada era a Direcção Geral dos Serviços Prisionais, obrigando a um rebate de consciências a que aderiu, em primeiro lugar, a Ordem dos Advogados e a uma reformulação da política de execução de penas, que culminou na promessa eleitoral(ista?) de Reforma Prisional,por parte dos vencedores das eleições legislativas de 2002.

Sabemos hoje ser a resposta engendrada pela administração para ultrapassar o sistema medieval de penas em vigor em Portugal inspirada nas receitas norte americanas de aumento exponencial da carga repressiva contra os presos, manutenção da impunidade para os crimes do sistema, tecnologização e diversificação das penas e, esperteza saloia, privatização dos custos e benefícios do encarceramento. O irrealismo do projecto não assusta os (mesmos ir)responsáveis de sempre. Nem mesmo há sequer uma tentativa de fazer querer haver alguma coincidência entre este programa oculto e as declarações humanistas para consumo externo, protagonizadas pela comissão governamental encarregue de propor a Reforma Prisional. Como diz a ministra, nunca em Portugal as reformas prisionais anteriores alguma vez foram executadas. No Parlamento, só os partidos fora do arco do poder (PCP e BE) apoiam vigorosamente as intenções de Freitas do Amaral, precisamente por que sabem não passarem disso mesmo.

Os presos preventivos anunciam, coragosamente, vontade de usar os seus direitos de cidadania, intactos e alegadamente garantidos pela Constituição portuguesa, para lutarem para exigir das autoridades o cumprimento das promessas eleitorais. A ACED não pode deixar de se orgulhar deles e de manifestar todo o seu apoio, sabendo por experiência própria os obstáculos e os golpes baixos a que passarão a estar sujeitos.

Ao público queremos dizer que é inaceitável que saiam todos os anos, de prisão preventiva para a liberdade, sem condenação, mais de uma centena de pessoas. Prisão preventiva essa que pode durar vários anos. Mais: prisão preventiva que pode ser usada, como aconteceu no caso mediático de Vale e Azevedo, para prolongar de forma amoral e conspirativa, a condição de prisão de uma vítima do sistema inquisitorial vigente.

Em Portugal não existe pena de morte, mas a morbidade nas prisões é regularmente das mais elevadas da Europa, incluindo a Europa de Leste. Em Portugal não existe prisão perpétua mas é possível que um arguido cumpra várias penas seguidas, eventualmente interpuladas por prisões preventivas, de modo a eternizar a situação, sem que o arguido tenha a possibilidade de saber o que o Estado pretende fazer com a sua vida.

Independentemente do êxito da actual luta dos preventivos, a luta pela justiça em Portugal merece ser engrossada, porque o nosso país pode ser de todos.


[1] ´Nenhum partido arrisca mexer no sistema judiciário porque sabe que, num momento ou outro, pode por ele ser julgado´, acusou F.P.Balsemão, reafirmando-se adepto do reforço dos poderes presidenciais nessa matéria.” em Hermana Cruz, “Balsemão quer revisão dos salários dos políticos” no Jornal de Notícias de 2004-05-29.

 


Abusos sexuais e abusos de poder

1 de Junho de 2004

O caso Casa Pia tem, compreensivelmente, concentrado a atenção pública nos processos judiciários. O secretismo judiciário, que alguns adjectivam traumática mas fundadamente de inquisitorial, foi abalado na sua legitimidade, mas nem por isso deixou de ser regra. A prioridade ao castigo contra os suspeitos ficou evidenciada, para desprestígio geral da justiça, sem que nenhuma reacção prática tenha tentado alterar o sistema vigente. O carácter conspirativo dos processos de investigação penal, bem como dos processos de defesa que os poderosos lhe possam opor, apaixonou, qual telenovela, a opinião pública.

O processo penal serve, precisamente, para separar do campo político do executivo, do legislativo e do representativo situações moralmente irreconhecíveis, anormalidades, patologias sociais para as quais não haja receitas conhecidas. O facto do processo judicial em Portugal ser muito longo dá oportunidade aos restantes poderes de Estado reagirem, rectificando, sistemas de prevenção e de detecção de problemas solidariamente com a sociedade, entretanto mais facilmente mobilizável para causas relevantes, neste caso, a protecção das crianças institucionalizadas.

O que perturba no caso Casa Pia é a inércia irresponsável manifestada pelo Estado português, não apenas perante as questões da judiciais mas também face à evidência dos abusos organizados, sob a forma de negócios, em torno dos problemas sociais. Porque é que Portugal é dos países do mundo com mais sites pedófilos? Porque é que o Estado evita indemnizar as vítimas dos abusos, por muitas que sejam – essa seria uma forma de as mobilizar para as denúncias públicas que pudessem clarificar a dimensão do fenómeno? Será pela mesma razão que o Estado encarregou a Casa Pia de tutelar os representantes legais das vítimas... da Casa Pia? Quais as razões que levaram dois dos advogados contratados a abandonar os seus postos? Porque não foram públicas tais razões, já que públicos são os respectivos compromissos?

Independentemente dos resultados deste processo judicial, quem terá paciência para acompanhar outros que se anunciam, a menos que tenham arguidos famosos? Mais catorze processos judiciais, como se anuncia, ajudarão, mais do que este, a ultrapassar as oportunidades de abuso contra crianças internadas? Ou o efeito de normalização da problemática, pelo cansaço e desorientação, remeterá para as campanhas eleitorais demagógicas e populistas a discussão sobre a dimensão da pena e a gravidade do castigo dos acusados, abandonadas que estão as crianças à sua sorte?

Os meios de comunicação social têm, nesta fase, as suas responsabilidade. De não se deixarem continuar a arrastar apenas pela paixão da contenda judicial e de prestarem um serviço público inestimável: remeter para os responsáveis políticos e institucionais o anúncio de acções preventivas úteis que, de facto, têm sido escandalosamente descuradas. Cada vez mais o público pergunta: e as vítimas?

Se uma das lições tiradas deste processo é a vantagem prática de organizar sistemas variados e flexíveis de avaliação independente das instituições a avaliar – se isso estivesse implementado e credibilizado pelas instituições públicas e pela comunicação social, as denúncias anteriores não teriam caído em saco roto – então, o que há a fazer para romper com o status quo de degradação e inércia moral vigente é estimular fortemente – através de políticas específicas financeiramente dotadas de meios – a empregabilidade em organizações cívicas livres e independentes, susceptíveis de resistirem às ameaças dos interesses instalados. Lição como esta, afinal, conviria também a resultados de outros processos perturbadores da moral social, onde falta transparência e sobra oportunismo e abuso de poder.


  Bagdad na Carregueira

10 de Maio 2004

No mesmo tempo em que se organiza uma alegada reforma prisional em Portugal, o mundo fica a saber como os polícias de mundo organizam as suas cadeias de máxima segurança, como entendem a liberdade que apregoam.

Guantanamo escapou ao escândalo, porque ainda estávamos muito próximos do 11 de Setembro e os sentimentos de vingança “democrática” tornavam clandestinas as denúncias de tortura e arbitrariedade nas prisões e nos isolamentos fora de toda a Lei, nacional ou internacional. O entusiasmo e impunidade securitários levaram a administração Bush ao desastre no Iraque (vale a pena, em retrospectiva, reavaliar quem foram os amigos dos americanos, se os seus aliados ou os outros?).

Há alturas históricas em que fica evidente serem as prisões pedras de toque da moral política dos poderosos e dos povos que representam. Desculpe-se-me o incómodo, mas não sinto estar em condições de criticar o brutal Ramsfeld se, antes disso, não olhar o meu quintal. Recentemente, mais uma morte suspeita de um jovem detido em cela disciplinar, depois de uma rixa com guardas (padrão já tipificado) e um levantamento de rancho contra a violência sistemática na nova prisão da Carregueira, onde têm acontecido vários casos de violência ilegítima contra os presos.

No parlamento a oposição mais à esquerda desafia o governo a cumprir os desígnios conhecidos da reforma prisional, convencida que não será capaz, o PS procura não se comprometer ele próprio com aquilo com que está de acordo – por ter sido o seu primeiro promotor – os partidos do governo revelam-se virginais militantes de ideias desempoeiradas, cuja eficácia prática ninguém sequer se dá ao trabalho de discutir. Todos sabem que, no essencial, o processo legislativo nada tem a ver com o que se passa no terreno: mais violência institucional traduzida em mais guardas prisionais, mobilização dos serviços de reinserção social para actividades de controlo social (sic), investimentos em sistemas repressivos mais sofisticados e caros (alas de segurança para utilização arbitrária, prisão de alta segurança), investimentos privados capazes de produzir a engenharia financeira a troco da uma potencial privatização sistemática no futuro.

As prisões portuguesas são (mal) adaptadas a uma sociedade exploradora de mão-de-obra barata, desqualificada, temerosa e relativamente pacífica. À medida que tal modelo social se torna incompetente, o que temos assistido é a políticas de intimidação contra os trabalhadores, os funcionários públicos, os imigrantes, os corpos especializados do estado. Queremos viver nessas condições? Se não o queremos, um dos aspectos da vida que deveríamos dar atenção é ao modo como são tratados os prisioneiros em Portugal, e não deixar passar a oportunidade da discussão da reforma prisional em vão. Ficaremos mais e melhor informados da moralidade e das intenções das “nossas” classes dominantes para não serem incomodadas!

> A propósito ler rotinas prisionais EEUU exportadas para o Iraque


A Reforma Prisional do Parlamento

5 de Maio de 2004

 Que significa estar a oposição mais à esquerda a apoiar a Reforma Prisional, tal e qual a comissão instituída pelo governo a preconiza? Que significa o partido da ministra que deverá por em prática a reforma estar ausente do debate em comissão? Que significado tem a displicência do partido de poder na oposição, mais interessado na chicana política do que em dar contributos, ideias – como outros fizeram – para acrescentar o ramalhete de propostas inovadores, fundamentais ou prioritárias?

Em primeiro lugar significa o que já se sabia: Freitas do Amaral, presidente da comissão de proposta, é, nos dias que correm, dos actores políticos mais à esquerda na vida portuguesa. Tudo se passa como se ele tivesse continuado firmemente “exactamente ao centro”, como afirmava nos idos de setenta, quando mantinha a direcção do partido mais à direita, mas tudo o resto se tenha passado para o outro lado.

Em segundo lugar, assistimos ao resultado da vergonha sentida pelos portugueses por terem a tutela política e moral do pior sistema de penas de toda a Europa, fundamentalmente ocasionada pelos relatórios da Provedoria, pelas lutas dos presos por justiça, pelo descrédito da Direcção Geral dos Serviços Prisionais e também por não ser mais possível esconder à comunidade internacional o desleixo do estado português nesta matéria. Ao contrário do que se possa dizer, os casos de presos mediáticos vieram a ocorrer depois de o governo – durante a campanha eleitoral e imediatamente depois da tomada de posse – se ter comprometido com uma reforma prisional.

Em terceiro lugar significa a prevalência da ignorância e da vontade de assim continuarmos todos quanto à importância política do assunto e quanto às possibilidades práticas realistas de transformar o sistema de penas em algo de que os portugueses se possam orgulhar, como se orgulham os povos nórdicos, dos povos economicamente mais prósperos od mundo.

A dança trocada dos figurantes políticos, mais interessados em posicionarem-se uns contra os outros a respeito da Reforma Prisional do que em oirganizar pistas políticas para que um dia, quando for politicamente possível (que não é manifestamente esta a ocasião), Portugal poder estar preparado para organizar e tutelar um sistema de penas condigno, significa que todos sabem ser qualquer reforma do sistema prisional lenha para queimar políticos. Por isso a Ministra da Justiça decidiu organizar, por moto próprio e clandestinamente relativamente ao Parlamento, a execução da reforma prisional enunciada e iniciada pelo Partido Socialista no poder – mais guardas, prisão de alta segurança e construção ou reabilitação das outras prisões, preparação para a privatização do sistema prisional, como forma de suportar os encargos financeiros e garantir a continuidade de uma política de altas condenações judiciais contra os excluídos – ao mesmo tempo que entrega à oposição um osso para roer: a reforma prisional mais avançada do mundo que não passará do papel.

No debate da comissão parlamentar que debateu o assunto em 28 de Abril de 2004, houve quem remetesse para os sociólogos e os psicólogos a explicação porque, em Portugal, as leis raramente se cumprem, como aconteceu de resto com a anterior lei prisional de 1979. Não lhes passou pela cabeça que isso pudesse ser o problema político.  Em termos chãos: como é que se pode fazer para que no futuro, tão cedo quanto possível, os estabelecimentos prisionais passem a respeitar a letra e o espírito das leis, segundo as quais os condenados são conduzidos ao sequestro punitivo?

Para além de um problema ético este é um problema político, quer se meta ou não a cabeça na areia. Atente-se no que se está a passar nos EUA e ponham-se as barbas de molho. Na Califórnia os republicanos no poder declararam durante a campanha eleitoral vencedora ser uma das suas prioridades fazer diminuir o poder político da indústria carcerária. A administração Bush, em véspera de eleições, é atacada pela denúncia do seu desleixo pelo respeito das regras morais da civilização que diz defender e dirigir, a propósito da prisão de Bagda supostamente libertada e, logo a seguir, de Guantanamo e das prisões americanas.

Em Portugal, depois da dureza Guterrista em meados da década de noventa, vive-se o reconhecimento político da falta de tutela legítima do sistema de penas – o que justifica a reforma alegadamente em curso – bem contra as tendências políticas do governo. Não é de agora que anda tudo às avessas. O que não tem parado é o orçamento, que de perto de um salário mínimo por detido têm vindo a crescer exponencialmente, devendo estar próximos dos 3 salários mínimos. Com a privatização perder-se-á o controlo (que de facto nunca existiu rigorosamente) sobre as despesas. O que se recusa pagar em termos de prevenção, diminuição de riscos, assistência social, políticas de integração, paga-se multiplicado para castigar e intimidar com um sistema judicial injusto, dito em crise, mas que ninguém com poder está interessado em mudar, na prática.


Corrupção, EP

3 de Maio de 2004

A luta judicial contra a corrupção existe. Pergunta-se porque só agora ela se iniciou. O Primeiro Ministro vem colher os louros de ter prometido (aquando da destituição da procuradora Mª José Morgado) que tal combate não iria parar.

Em meados dos anos 90 procurei denunciar fumos de corrupção numa instituição junto de órgãos de comunicação social. Fui informado que o caso de que tinha conhecimento era tão vulgar que não seria notícia. Queixei-me informal e formalmente a altos responsáveis do Estado sem que o interesse por investigar emergisse, como eu desejaria. Como me disse um colega e amigo, "Isto é assim em todo o lado. Não vale a pena. Temos que ser realistas!"

Pergunto-me se tantos dirigentes (e jornalistas) sabiam que a corrupção existia e a aceitavam como normal, se tantos portugueses foram castigados por a terem denunciado (o que não foi o meu caso), não se sentem (não são) responsáveis pelo "excesso" de corrupção que assola o País actualmente? Perguntado de outra maneira: alguém acredita que o combate judicial contra a corrupção é suficiente para a fazer reduzir-se a níveis que não comprometem a produtividade e a solidariedade social?

O combate à corrupção começa pela reforma profunda do financiamento dos partidos (e, portanto, da Democracia). Não é uma luta que se trave de uma vez por todas. Pelo contrário, é uma vigilância que constantemente deve ser exercida, de preferência não como acção policial mas antes como acção cívica, de afirmação de valores de ombridade e solidariedade, mas também como acção económica, contributo para a eficácia e a produtividade geral.

A independência da Justiça não deve constituir, repito o que outros já disseram, um pretexto de continuação da desmobilização cúmplice do executivo, do parlamento e das restantes instituições democráticas face aos corruptos e à corrupção. Os louros do PM são de plástico, quando precisamos de louros acabados de colher, para o Portugal dos próximos 30 anos possa cumprir os desejos de afirmação que alguns vamos alimentando na clandestindade, envergonhadamente.


Prisão de Bagdad

3 de Maio de 2004

Pouco antes da guerra do Iraque se iniciar, Saddam declarou ter libertado os seus prisioneiros, provavelmente como forma de chamar a atenção ao Mundo para como os norte-americanos tratam os seus próprios prisioneiros, e em especial o que se passava (e passa) em Guantanamo. Sem sucesso.

Esta semana a prisão de Bagdad volta a ser notícia, porque as torturas macabras continuam, agora organizadas por soldados americanos, fotografadas e divulgadas pelos próprios. Compreende-se a sua surpresa: "Porque razão a opinião pública nacional e mundial levaram a mal, desta vez, estas graças? Porque são diferentes das Maxmax ou das enlouquecedoras celas brancas? Será que o facto da tecnologia ser mais rudimentar faz diferença?" devem perguntar-se os militares, fotógrafos de atrocidades encenadas para passar o tempo. Como diz o oficial encarregue de se mostrar indignado, surpreendido e humilhado com o comportamento de meia dúzia de militares, o problema foi terem fotografado …

Será que no Iraque os negócios de batata, de prostituição, de abuso e violação de menores e mulheres não acontecem? Foi só na Somália, da primeira guerra do Iraque, nos Balcãs, que isso aconteceu? Porque é preciso haver fotografias para que as denúncias cheguem às autoridades, pior via da comunicação siocial? Será que se o comando militar tivesse conhecimento directamente e quisesse actuar de forma a acabar com tais actividades o poderia fazer oferecendo ao público os factos e os culpados?

Verdade seja dita que os militares nos pouparam ter que ouvir desculpas mais radicais de tais comportamentos do que a alegada falta de treino e organização (se calhar era por razões semelhantes que os iraquianos torturavam os seus prisioneiros ….). Isso, apesar de tudo, dá-nos uma esperança. Mas se se quiser que durante as guerras o poder suba à cabeça dos carcereiros libertadores seria boa ideia começar a treiná-los em casa, onde os prisioneiros são seus patrícios, mesmo que renegados.


A privatização das prisões

19 Abril 2004

O EUA conseguiram reduzir a taxa de desemprego: 1/4 dos jovens negros norte-americanos ou estão na cadeia ou sob alçada penal. Não se trata apenas de um truque para manipular estatísticas, apesar da importância dos números na guerra de propaganda. As prisões têm um papel "dissuasor" contra ser-se negro. Ou ser-se hispânico. Ou ser-se simplesmente "loser".

No século XIX os condenados eram sobretudo vadios, alcoólicos, pobres, trabalhadores. No século XXI são estrangeiros, drogados, pobres, excluídos. A globalização reuniu alianças transnacionais entre as novas tecnologias financeiras e bélicas, na defesa do “nosso modo de vida”, e entre os que não querem ou não podem trabalhar e os traficantes, no outro lado da vida. Não se sabe quem imita quem: o progressivo século XIX ou o decadente século XXI, a luta de classes ou anarquia nos mercados, os dirigentes ou os bandidos.

O progresso, e a moral, já não são o que foram. O argumento é: se as prisões nunca ressocializaram ninguém, ao menos que castiguem os criminosos. Para uns, apenas os criminosos pobres. Para outros, idealistas, todos os criminosos. Nenhuns explicam como evitar que os crimes se perpetuem dentro e fora das prisões, ao ponto das autoridades anunciarem que deixaram de cumprir a Lei.

Denunciada a evidente confusão entre a marginalidade ideológica das prisões e a sua marginalidade política – que se pode manter durante algum tempo, mas não muito tempo – rapidamente os demagogos levantaram a bandeira: à Reforma Prisional! Incapazes de dar conta do que aí se preparava, os governantes decidiram-se por uma nuvem de fumo: quais aprendizes de feiticeiros, procuraram fazer muito barulho do lado do legislador, com Freitas do Amaral à frente, e manter o rumo sorrateiro das negociatas no terreno.

“Os privados são mais eficientes” na opressão, porque não estão vinculados a regras públicas. Denúncias de trabalho escravo podem passar a acrescentar-se às já nossas conhecidas de má alimentação, cuidados de saúde, arbitrariedade no tratamento, maus tratos e torturas. Privatizam-se que lucros: os do tráfico, dos negócios intramuros, dos desvios de fundos, os do aumento do orçamento do Estado? Que garantias existem de que a soberania de segurança e de justiça, aquelas que se afirma serem inalienáveis pelo Estado, sejam efectivamente exercidas se na situação actual não o são? Os mesmos presos que não podem ser sujeitos, segundo a ministra, a experiências que lhes possam reduzir os riscos das doenças infecto-contagiosas, já podem ser sujeitos a experiências de alienação das responsabilidades morais e políticas do Estado?

Para a lei a intenção, frouxa, de humanizar as cadeias. Para as cadeias a isenção prática de cumprir com a lei, através da privatização promíscua, na qual nunca mais ninguém será responsável. Eis uma boa síntese da tradição com o espírito modernista do tempo.

Compreende-se a vergonha do ministério, apenas recentemente ultrapassada por insistência da Comunicação Social, de assumir o projecto de privatização das prisões. No campo académico, esse é o tema de todas as denúncias sobre as experiências em curso noutros países, que condicionaram efectiva e duradoiramente as penas judiciais no sentido de as agravar em quantidade e em orçamento – precisamente o inverso do que fica escrito nas intenções declaradas na proposta legislativa de Freitas do Amaral. Nota-se a ansiedade, de avançar agora no terreno de modo a condicionar as discussões políticas do documento legal. Regista-se a santa aliança com ex-ministros da justiça de governos anteriores. Assim se explica a ausência da avaliação oficial sobre os resultados dos investimentos a partir de 1996 – aparentemente indispensável – no estudo preparatório da Reforma Prisional.

No século XIX o Estado protegia os fura-greves, em favor dos interesses dos empresários. No século XXI são os empresários dos sectores de segurança, em troca de um novo sector económico para explorar em Portugal, que protegem o Estado de ser pressionado para cumprir as suas obrigações constitucionais e legais.


O sistema e a justiça

19 Abril 2004

A falta de confiança dos portugueses na justiça está a corroer a legitimidade democrática do Estado? Ou será ao inverso: a quebra da confiança e da participação democráticas nos Estado está a corroer a Justiça? Ou, pior que tudo, a crise da justiça é possível de se aprofundar dada a crise do Estado, numa espécie de solidariedade negativa para os direitos e liberdades dos cidadãos?

A Justiça supranacional europeia, que muitas vezes têm condenado o Estado português, não é capaz de evitar prisões preventivas injustificadas, delongas injustas das decisões judiciais, a ineficácia dos eventuais efeitos pressuasivos que se podem esperar das instituições judiciais, a manipulação dos tribunais para finalidades privadas por quem saiba usar as fraquezas e cumplicidades oferecidas, o desenvolvimento de serviços de corrupção da legalidade e das instituições instalados aos mais altos níveis das hierarquias.

A crise da justiça foi oficialmente reconhecida cinco anos atrás. O recente Congresso da Justiça foi muito mais debatido antes de acontecer, nomeadamente no que toca à identidade dos convidados e dos excluídos, do que de seguida: as suas conclusões terão ficado secretas no controlo que as corporações se comprometeram a passar a desenvolver junto dos seus oficiais. Tratou-ae de estabelecer um pacto para dessolidarizar oficial e mais completamente o sistema de Justiça em Portugal do Estado e do regime democrático, a favor dos interesses corporativamente representados. Ouçam as vozes dissidentes, publicadas em livro este ano, de António Marinho Pinto, Maria José Morgado ou Saldanha Sanches. Os magistrados dão prioridade às suas comodidades pessoais, as polícias passam ao lado do crime organizado, o fisco está organizado para garantir a impossibilidade de incomodar os poderosos (que assim se tornam ricos), são algumas das teses apresentadas. Suficientes para envergonhar ou mesmo prender qualquer cidadão, tais acusações não obtêm dos respectivos alvos nenhuma reacção. Nem pública, de repúdio (por ser contraproducente) nem privada, de arrepiar caminho.

Cavaco Silva recusou-se a prosseguir para um terceiro mandato. Guterres recusou-se a acabar o segundo mandato. Com Durão Barraso a corrupção no governo tornou-se um fait-divers das revistas cor-de-rosa. No país onde há pessoas presas por não terem dinheiro para pagar a multa por usarem sem bilhete os transportes públicos.

Não. Não é apenas a sina de um país exótico, de brandos costumes para os bem nascidos e desprezo para a ralé. É a versão lusitana do espírito atlantista.

Práticas quotidianas de desenrasca (espírito empresarial anglo-saxónico) são pensadas como fados dos povos (american way of live traduzido, em português, por nossas maneiras de viver agarrados aos tachos) e encobrem uma desorganização muito bem organizada (petróleo no caso norte americano, fundos europeus e subsídios no caso português). Para eles é estratégico ignorar a direito internacional - direitos aplicáveis à guerra e direitos humanos. Para nós é decisivo apenas respeitar o direito de quem possa querer pagar as despesas da modernização importada. Neste aspecto, com a guerra do Iraque, e perante a ameaça europeia de nos "prejudicar" na distribuição de fundos para Portugal a partir de 1996, o governo optou pela cartada americana: meteu-nos na guerra e dividiu a política externa do país, numa versão democrática da neutralidade salazarista perante a II Grande Guerra.

Em 1945, para a oposição parecia insustentável o regime ditaturial vigente. Para inglês ver, Salazar organizou uma fachada democrática, que na justiça ainda predura nos dias de hoje: a lei deve ser aplicada de modo a que os interesses mais relevantes sejam confirmados: na alvorada do século XXI, a taxas de criminalidade das mais baixas da Europa corresponde o maior número de presos, os tempos de cadeia mais longos, os maiores números de óbitos em prisão, a maior taxa de presos preventivos, o sistema prisional mais degradado, a maior impunidade dos mais poderosos na Europa. Como disse o Presidente, a lei são sugestões que os magistrados usam, ou de que abusam, conforme o arguido que lhe calha em sorte. É mais importante, na justiça portuguesa, a encenação de poder em cada sessão de tribunal - ou declaração pública - do que a qualidade jurídica ou simplesmente racional dos documentos judiciais.

Imaginar-se que este estado de coisas apenas atingue os pobres e desvalidos ou que é insustentável na sua irracionalidade e na sua oposição à produtividade social, política e económica, é apenas um sonho piedoso. A Federação de Futebol partilhou o poder com a Liga de Clubes para que os mesmos continuassem nos seus postos. A Junta Autónoma das Estradas foi dividida numa primeira fase e refundida numa segunda e a ponte de Entre-os-Rios caiu, sem culpados. A CIP pediu que não continuassem a ser exigidas contribuições para o sistema político a quem queira concorrer às obras públicas. O Tribunal de Contas continua a não ser mais do que um registo histórico dos escorregamentos dos executivos. A Justiça, mesmo quando é precisa para reorientar a solidariedade nacional, continua a pairar sem lógica ou propósito, durante o tempo que for preciso, até se submeter, irresponsavelmente, ao jogo de influências do mais forte. Em qualquer destes casos podemos encontrar heróicos denunciantes da nudez do Rei. Isolados e, por isso, simples latidos enquanto a caravana passa. Para o abismo de alguns - para já os 200 mil famintos calculados existirem em Portugal - o desespero ou desconfiança da maioria - vejam-se os consumos de anti-depressivos - a benefício de poucos. Não é por acaso que Portugal, além de ser o país mais pobre da Europa, é também aquele onde as maiores desigualdades compatibilizam os maiores rendimentos da Europa com os mais baixos salários.

A gravidade da situação  não é apenas financeira e do Estado. É o funcionamento das instituições que minam a possibilidade de nos organizarmos como os países a que nos queremos comparar. Desde 1986 fomos bons alunos da Europa. Em 2002 ficou claro não ser sustentável manter a mesma abordagem de desfalque do Estado. Trinta anos depois do 25 de Abril é claro que o atlantismo não trará nada de melhor e o próprio governo - agora com nova promessa de mais fundos europeus - prepara-se para tirar da sua política externa internamente divisionista (para não dizer anti-democrática) o valor das chantagens bem sucedidas.

A política de captação de fundos europeus engordou alguns poucos, manteve muitos outros fora dos benefícios e principalmente deixou-nos a (quase) todos sem norte, sem razões e apoios para aplicar as respectivas capacidades produtivas ou participativas. Nas condições portuguesas, caso se queira dar sentido à solidariedade nacional, aumentar a produtividade depende da disposição de participação. As possibilidades económicas de desenvolver o país dependem da haver ou não condições de trabalho: lá onde as haja, os portugueses têm mostrado poderem ombrear com os melhores, da construção civil ou na investigação científica, no desporto ou na literatura, na indústria ou nos computadores.

Portugal precisa de sacudir a anestesia moral de que sofre e que lhe é veiculada por um consórcio de interesses que urge denunciar, combater e derrotar. Portugal precisa de justiça moral e de políticas democráticas capazes de lutar pela confiança dos portugueses. Estes - e não os fundos e os desenrascanços - são o maior tesouro do país.


Justiça de ric(t)os

Lisboa, 8 de Abril de 2004

 

Reclama-se que só há justiça para os pobres. Face ao aumento da influência da corrupção na vida política e económica, reclamam-se acções repressivas também contra os poderosos. Os pilha-galinhas, como se costuma dizer na gíria policial e judicial, provocam malefícios à sociedade, no seu conjunto, menores do que os provocados apenas por alguns dos esquemas de corrupção que se sabem existirem (veja-se o caso da ponte de Entre-os-Rios ou da defesa corporativa de agentes do Estado, mesmo quando falham deveres de zelo primários).

 

Argumenta-se serem os pruridos contra as polícias, decorrentes do trauma da antiga polícia política, que têm obstruído os financiamentos indispensáveis à modernização científica das primeiras e impedido a perseguição dos criminosos mais sofisticados. Porém, também há quem defenda que tanto ou mais importante que isso é a estratégia de investigação ser politicamente orientada para perseguir crimes especialmente gravosos para o Estado e a economia, bem como para as pessoas, em vez de esperar passivamente pelas queixas e denúncias, posteriormente seleccionadas sem critério. Prende-se (preventiva e precipitadamente) para investigar, presumindo culpado o arguido, se ele “parecer” sê-lo; o que é recorrente, errado e moralmente intolerável. Não deveria haver gente acima de suspeita, nem gente sem direitos.

 

O caso Casa Pia, pela sua notoriedade, veio revelar juizes preocupados em inverter a tendência punitiva da justiça portuguesa, mas só no que toca a arguidos selectos e argumentando de maneira insustentável (confusão de estigmas com direito penal, desqualificação de testemunhos por razões de modo de vida, depois dos seus préstimos ao tribunal terem sido aceites mas de a substância testemunhal não ter sido conforme o esperado). A indignação é legítima e necessária. O alarme público é crescente e justificado. A benevolência para certos prisioneiros não é novidade: faz parte de um sistema injusto.


Magistrados desprezam o Povo

Lisboa, 6 de Abril de 2004

 

Há acórdãos reveladores. Para descredibilizar um arguido ou uma testemunha podem usar-se argumentos estritamente ideológicos, de apreciação superficial de caracter (pelo aspecto, por exemplo), estigmas sociais. Independentemente da convicção e das intenções dos senhores magistrados, o facto é que a sua irresponsabilidade (de acordo com a lei) é tornada irrestrita (moral e civicamente) pelo laxismo conhecido e persistente dos Conselhos Superiores das Magistraturas perante actuações fora da lei dos seus tutelados.

 

Estas práticas de mobilização de supostas convicções dos magistrados para julgar em nome da Lei e do Povo, em nome do Estado, são como manteiga ao sol quando não restam regras morais orientadoras e competências intelectuais de referência. A ignorância de muitos magistrados sobre matérias fora do Direito é geralmente reconhecida (e acusado o Centro de Estudos Judiciários por isso) e mesmo sobre Direito temos assistido a discussões públicas demonstrativas do sentido errático ou mesmo radicalmente contraditório das práticas judiciais.

 

Aqui chegámos depois de uma parte da magistratura portuguesa ter servido, fora da Lei, o antigo regime, contra os políticos de então, perseguidos pelo Estado. Passou-se uma revolução sem que as responsabilidades desses sinistros e amorais personagens fossem julgadas, imaginando-se, eventualmente, que o brilho da Democracia seria suficiente para tornar a Lei respeitável aos olhos dos novos magistrados. Foi o inverso que aconteceu: há quem diga que “os novos são piores que os velhos fascistas”, porque não se sentem nem se encontram em oposição a um regime odiado.

 

Como tem vindo a explicar Marinho e Pinto, o desenvolvimento corporativo e sindical das magistraturas em Portugal, em contraste com as condições do exercício da justiça oferecidas pelo Estado, redundam na promoção de práticas de comodidade pessoal que se sobrepõem às lutas pela legitimidade dos actos judiciais. Quem sofre (e se queixa, à sua maneira) é o povo (nas cadeias, por exemplo) assim desprezado. 

 


Alarme público  

Lisboa, 28 Março 2004

 

A culpa de Entre-os-Rios ficou solteira! Inominável. A decisão do juiz deixou o país em estado de choque.

 

Depois do ex-bastonário da Ordem dos Advogados ter afirmado do alto da autoridade do seu cargo que em Portugal não havia Estado de Direito e de Freitas do Amaral ter dito que em matéria de Direito teríamos que aprender tudo desde o princípio, o facto de só terem restado causas naturais para arcar com a culpas da queda da ponte obriga-nos a concluir que há que prender preventivamente o S.Pedro por ter causado alarme público provocado.

 

De entre os argumentos expendidos para branquear a questão relevo a divisão institucional entre o nível judiciário e o nível político dos processos de responsabilização. É extraordinário que esse argumento não seja usado quando se condenam sistematicamente pilha-galinhas ou simplesmente gente pobre pelo seu aspecto – refiro-me a acordãos escritos por juízes – ou quando um largo conjunto de instituições judiciais se coordena para tratar de forma especial alegados crimes, conforme a influência política e social dos arguidos ou dos queixosos (no caso vertente a responsabilidade do MP não pode ser ignorada).

 

A verdade é que a independência da justiça perante os poderes políticos, administrativos e económicos não existe de forma sistemática, mas como excepção. Pode verificar-se isso nos resultados – na qualidade dos julgamentos e das condenações – mas também quotidianamente isso é evidente para quem tenha que visitar um tribunal.

 

Dizem bem os que se questionam sobre o terrorismo: quem pode confiar na justiça portuguesa? Nem na pedofilia, nem na corrupção, nem em Entre-os-Rios, nem nos processos de falência fraudulenta. Esse é o principal óbice à moralização da vida pública e à confiança dos portugueses em si próprios.

 

Se não tratarmos nós da justiça, como temos direito em Democracia, ela tratará de nós. A propósito, quedê os resultados do Congresso da Justiça? Será que foi o abraço do naúfrago?

 


Crime organizado  

Lisboa, 28 Março 2004

 

Inimigo sem rosto, o crime deve ser combatido. Não tem nada a ver com política. É um serviço oferecido pelo Estado moderno aos seus cidadãos. Uma dádiva de segurança. De resto, das raras dádivas que ainda não se admite a privatização a breve trecho, pois isso seria reconhecer, directamente, que se caminha para uma segunda Idade Média, uma nova era de senhores da guerra, sob a égide de uma ordem moral superior e abstracta e sem eficácia prática, dignada, por exemplo, Democracia, Modos de Vida Livre ou Direitos Humanos. Ordem moral essa que não está desarmada, como também não o esteve o Papado durante a primeira Idade Média.

 

Os tempos são outros, mas as origens da localização e liquidação do crime tem a sua tradição. E quando há falta de crimes eles inventam-se. Criminalizam-se os costumes, como o álcool, o jogo, os fumos, ou outras actividades suficientemente vulgares para oferecer um campo de actuação vasto, matéria prima para as actividades securitárias prosperarem a longo prazo.

 

De facto, nesta fase da vida portuguesa, a grande maioria dos criminosos são utilizadores de drogas proíbidas. A sua perseguição tem-se revelado um autêntico maná para os perseguidores, já que cada vez há mais utilizadores de drogas e o mercado não tem parado de aumentar, justificando, conforme tinham profetizado os que lançaram a guerra contra as drogas, ser o uso de drogas prejudicial à sociedade.

 

Há sempre quem queira atribuir a interesses perversos à capacidade de antecipação dos acontecimentos, nas drogas como na guerra ao terrorismo. Fala-se de interesses que provocam campanhas políticas populistas e corruptas. Fala-se também de agências de informação capazes de identificar os inimigos através de técnicas científicas. Mas se não foram capazes de antecipar o 11 de Setembro (apesar da disponibilidade das informações) nem foram capazes de antecipar a queda da ponte de Entre-os-Rios, será que podemos confiar?

 

O crime organizado é uma causa natural (da natureza ou da globalização) ou é resultado de uma desorganização muito bem organizada?

 


O Estado da Democracia

Lisboa, 21 Março 2004

 

A Democracia refere-se à social-democracia ideologicamente vencedora da Guerra Fria e a valores e regras políticas.

 

O 11M revelou-nos como, perante os riscos, os espanhóis preferiram resguardar-se no partido social-democrata. Mas o neo-liberalismo não saiu derrotado, apesar das eleições manipulas sobre cadáveres ainda quentes. Surpresa: apesar do desempenho económico do governo, a moral prevaleceu.

 

A partir da crise do Estado-Social, o Ocidente trilha os caminhos perigosos, limitando àqueles que fazem por merecer a ajuda colectiva. A selecção sobre a quem (não) cabe tal ajuda passou a caber à iniciativa privada, sem piedade, em função das expectativas de recuperação dos investimentos sociais a um prazo tão curto quanto possível. Na prática, são os empresários quem mais tem merecido o apoio do novo Estado pós-social, para promoverem empregos e substituírem o Estado no máximo de actividades possível. Depois merecem quem os empresários escolham.

 

Os empresários ajudam os que sejam seus funcionários e quem os possa ajudar a eles. Os empresários são concorridos, em muitos sectores de actividade, incluindo os mais dinâmicos, por oportunistas, especuladores, corruptores, exploradores, gangsters, mafiosos, com que qualquer governo, independentemente da ideologia e das boas intenções, tem vindo a lidar, dentro e for a das administrações..

 

A democracia reduz-se cada vez mais às votações para os parlamentos. A manipulação da informação atingiu tais proporções, no quotidiano, que foi uma surpresa para os próprios governantes do PP espanhol terem sido punidos. A esperança de se saírem bem, como noutras ocasiões, era forte. E realmente só a mobilização de antigos votantes PSOE desiludidos derrotou os manipuladores. Todavia, o descrédito e a falta de confiança nos políticos de todos os lados, lá como cá e no resto da Europa, continua a ser o elemento mais relevante. E preocupante. Afinal Hitler foi um governante eleito.


Os marretas

Lisboa, 21 Março 2004

 

Freitas do Amaral tem ultrapassado todos pela esquerda. Idem para Mário Soares.

Desta vez brindou-nos com uma proposta que foi entendida como uma provocação: os destinos do mundo devem partir do conhecimento profundo das condições e dos objectivos políticos dos terroristas globais: o diálogo com eles seria positivo, afirmou.

 

Apesar da audiência ser todo o país, os nossos políticos, embaraçados, abafaram o caso, como se lhes fosse possível. Ganham tempo para pensar.

 

Primeira reflexão: Soares dirigia-se ao Mundo, embora falando em português. Não era preciso responderem os seguidistas de serviço. Não estão em condições de tomar qualquer iniciativa. Segunda reflexão: esta iniciativa, como já tinha acontecido na altura do início da guerra do Iraque, mostrou como andam fora de jogo os nossos revolucionários de serviço, sem moral para assumirem riscos políticos. Terceira reflexão: se Soares o disse, será irrealista? Ou será mais um serviço aos seus amigos americanos da CIA?

 

Aplicar um princípio democrático, é precisamente o que propõe Soares. Isso só é surpreendente, porque a Democracia funciona pouco. Nas autarquias são os dinossáurios, em Bruxelas são os burocratas, nas administrações são os boys, nas finanças são o Banco Mundial ou o FMI (cuja receita Portugal está a aplicar mesmo sem a isso ser obrigado).

 

Se a Democracia funcionasse junto dos imigrantes, por exemplo, os fluxos clandestinos seriam rapidamente legalizados e normalizados em vez de explorados até à escravatura. Se esse fosse o caso, os terroristas não poderiam usar auto-estradas encobertas de circulação de pessoas e bens que alimentam o Ocidente de mais valias ilegítimas, utilizando as fronteiras territoriais e financeiras (ditas off-shore) das trocas desiguais.

 

Quem não gostaria de perguntar ao Bin-Laden que relações mantém com os serviços secretos dos países mais relevantes do mundo e com a Arábia Saudita? Se ele pudesse responder, muita coisa poderia mudar.


Presunção de inocência

Lisboa, 14 Março 2004

 

Quando somos vítimas de um crime, temos tendência a reagir em auto-defesa, seja ela legítima (defesa pessoal directa) seja ela retaliatória (premeditação vingativa, como manifestação de força pressuasiva).

 

O Estado de Direito aceita a primeira reacção mas criminaliza a segunda. O Direito coloca-se nessa brecha de incerteza sobre o melhor modo de actuar e projecta numa entidade superior (os Tribunais e o Estado) a decisão definitiva sobre o modo como as partes se poderão sentir novamente integradas na mole, desejavelmente pacífica e cordata, da Humanidade. Por isso, até a decisão oficial fixada, deve presumir-se inocência dos acusados. O tempo que demora até à decisão deve ser trabalhado para acalmar os ânimos.

 

O Direito e o Estado de Direito, como a Democracia, não são nem se pretendem perfeitos, embora às vezes o pareça quando ouvimos certos responsáveis. Todos devem sujeitar-se ao contraditório.

 

Que o sr. Aznar venha defender que os culpados deverão ser entregues à Justiça, está conforme a Justiça. Que venha afirmar a “convicção moral” de que os atentados de Madrid foram perpetrados pela ETA (e se não foram, poderiam tê-lo sido) é politicamente compreensível e facilmente explicável. Vem na linha do desprezo pelos factos exibido pelos partidos da guerra, que se continua a discutir a respeito do Iraque.

 

Que os seus defensores venham condenar os que aproveitam a ocasião para discutir (condenando-a) a política externa da coligação de guerra é que não se percebe. A menos que entendam a Democracia apenas como uma oportunidade de poder para os partidários da violência pela violência na arena internacional, em contradição com a doutrina jurídica ocidental.

 

Não falta nenhuma legitimidade política ao pensamento – de resto reconhecidamente influente na população espanhola e portuguesa – de que a aventura militarista (e securitária) é uma causa relevante da animação da ameaça terrorista, como a lenha o é para o lume. Que a discussão continue.

 


Terrorismo e Estado de Direito.

Lisboa, 14 Março 2004

 

Do 11 de Setembro ficou a noção de que actos tão repugnantes não mereciam nenhuma explicação. Qualquer que ela fosse seria equivalente a uma justificação. O Médio-Oriente, a situação do povo palestiniano, o subdesenvolvimento, a exploração do petróleo, o imperialismo ou a globalização, nada deveria ser lembrado porque nada justificaria a barbárie e a desumanidade. Nenhuma ideia política explica ou justifica a violência.

 

Muita gente resistiu e reclamou contra esta noção que transportava a política para um mundo de tagarelice inconsequente, que é a noção que muitos europeus têm da política. De facto, o desencanto e a descrença, à falta de instituições credíveis e fortes de regulação económica e social, têm transformado a democracia representativa num exercício de jenoflexão perante os poderes fácticos, das administrações, dos lobbies empresariais, das redes de corrupção que não param de emergir a todos os níveis.

 

O debate em torno da veracidade das informações disponibilizadas pelos serviços secretos sobre as armas de destruição massiça cristalizou esta oposição de maneiras de ver: para uns, a falsidade, como de costume, era um mero pretexto político (leia-se irrelevante, um expediente) para lançar a guerra contra o inimigo. Outros entendem esse facto como mais um golpe nas instituições democráticas.

O mesmo debate renasce com o monstruoso atentado a Madrid, em 11 de Março. Como da outra vez, o chefe do governo espanhol avançou contra o inimigo sem informações e decidiu reivindicar para a ETA a autoria do crime apenas na base do seu interesse partidário na peleia pelo governo do país. Quer dizer: são os titulares dos cargos políticos os únicos a terem o direito de determinar, oficialmente e por vontade e interesse próprios (quais exactamente?), os móbeis do crime.

 

A pergunta que se impõe é a seguinte: onde está (ou pode estar) a independência da justiça dos Estados de Direito em que se suportam as democracia ocidentais? 


As Liberdades

Lisboa, 5 Março 2004

 

 O problema é insolúvel. Como deixar agir livremente a besta que vive em nós, de tal modo que não interfira com o mesmo exercício dos nossos semelhantes?

Se pensarmos de forma mecânica, imaginaremos que lá onde houver menos gente e mais espaço as liberdades serão maiores e mais fáceis. Na prática, verificamos, é o inverso. As civilizações humanas menos densamente povoadas tornavam as pessoas menos livres do que hoje em dia podemos ser. É que em comunidades, apesar do espaço mais disponível, a dependência da Natureza obriga os seres humanos a conjugarem esforços para ultrapassarem juntos as dificuldades de satisfazer as necessidades básicas. Ao aproximarem-se uns dos outros e estando, assim, mutuamente dependentes para a sua sobrevivência, os laços sociais são ao mesmo tempo indispensáveis e sem alternativa. Faltam alternativas porque falta gente.

 

As comunidades são assim: intensamente vividas, com as mesmas pessoas enredadas em laços que se estabilizam e se tornam rotineiros, tradicionais e conservadores. Qualquer alteração do status quo é sentida como uma violência imposta por poucos a todos os outros. As sociedades modernas libertaram-nos disso. São densamente povoadas. Temos menos espaço para cada um mas pudemos escolher entre diversas formas de solidariedade social. Na verdade, somos obrigados a fazê-lo, o que nos dá uma trabalheira durante grande parte da vida: estudar, casar, arranjar forma subsistência, estamos sempre a inventar.

Ainda que as nossas companhias modernas mais próximas – os nossos amigos – não sejam capazes de produzir tudo aquilo de que precisamos para viver, os estranhos acabam por nos fornecer tudo e mais do que precisamos, sem sequer sabermos onde estão, como trabalham, o que pensam, quem sejam.

 


Confianças

Lisboa, 5 Março 2004

 

As liberdades são como as miragens: chegados onde parecem estar reunidas as condições do seu exercício, verificamos o logro. Nos desertos encontramo-nos tão sós perante o mundo, e tão indefesos perante os semelhantes, que prescindimos voluntariamente das liberdades, em favor do instinto de sobrevivência. Deus nos acuda. Ao contrário reage o náufrago. Torna-se impaciente na longamente ansiada presença do seu salvador: o abraço tende a ser fatal para ambos.

Historicamente, é quando estamos mais fisicamente impedidos de nos movimentarmos, nas sociedades intensamente urbanizadas, que a imaginação descobre entre a multiplicidade de relações humanas possíveis aquelas que nos libertam, por mais uns momentos. Fora disso, na luta pela sobrevivência na Natureza hostil, a imaginação submete-se mais facilmente ao fatalismo dos poderes mágicos e superiores.

 

Os modernos escolhem, entre os seus conhecidos, aqueles a quem desejam chamar família, amig@s, colegas, camaradas, parceir@s, companheir@s. Aqueles em quem depositarão a sua livre confiança, sabendo que podem não ser retribuídos. Podem mesmo ser afastados ou mesmo perseguidos.

 

Na prática, as liberdades sobrevêm na espuma das sociedades complexas, mas nem todos delas podem usufruir. Por um lado porque os recursos se fazem escassos, na exacta medida em que se fazem desejados os ricos, acumulando riquezas. Por outro lado, porque quem se sinta atraído pela riqueza material, torna-se rival do seu mais próximo semelhante, amig@ e concorrente. E todos esses, ricos ou pobres, estão dispostos a instabilizar a auto-confiança dos demais, na esperança de assim conseguirem vantagens (outra vez materiais, as que melhor garantem as outras).

 

Simbolicamente podemos resumir o que queremos dizer à modernice do triângulo amoroso.  Ninguém sabe exactamente que parte da atracção humana é genuína e que parte é interesseira, já que qualquer delas (talvez mais a primeira) é fugaz, mas sabe tão bem ...


Os medos

Lisboa, 5 Março 2004

 

Na prática, as liberdades sobrevêm na espuma das sociedades modernas, mas nem todos delas podem usufruir. As sociedades pacíficas vivem, por isso, cercadas de medos, um pouco no mesmo sentido que as aldeias vivem cercadas de florestas mágicas. Nunca temos a certeza de que estamos a conquistar a floresta ou se é ela que nos ameaça às portas ou mesmo dentro de casa.

 

Levantamo-nos de manhã, bem dispostos, cantamos para nós mesmos: “What a beautiful world!?!”; não queremos saber das razões de queixa que temos do mundo: “Don´t worry! Be happy!”. Sorrimos quando fazemos exercícios chineses de descontracção e concentração. “What ever will be, will be!”. Na rua, desempregados, à procura de uma identidade perdida, queremos aproveitar a liberdade dos desertos, mas só nos lembramos do abraço do naufrago. É como estar numa prisão, mas com um pátio enorme, a perder de vista. A tortura, para já, não é física: devemos cumprir as normas de boa convivência social. Mas ao mesmo tempo, do outro lado, as falências fraudulentas, a fuga às responsabilidades para com quem trabalhou, a espera do subsídio de desemprego, a ausência de ajudas para o emprego, as restrições de trabalhar nos biscates, a humilhação de resposta obrigatória às chamadas administrativas arbitrárias, a falta de sensibilidade e de respeito.

 

O abuso de confiança que o Estado, em nome da sociedade, exerce contra aqueles que caiem em desgraça abriga-os a voltar à vida na floresta, sem que as pessoas estejam para isso preparadas, sem que possam sequer encontrar entre os seus semelhantes quem possa ter competências para o ajudar a sobreviver. Rapidamente tal abuso passa a ter efeitos físicos, talvez por fome, por depressão, por desgosto, por suicídio. Numa palavra: falta confiança para ultrapassar os medos. Falta liberdade para se sentir human@.