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Teoria dos estados-de-espírito1. Começou por ser, em 2001, uma intuição em ruptura com as "duas culturas" (cf. Snow) e com a diferença entre "maus tratos físicos, condenáveis, e maus tratos psicológicos, por exemplo nas prisões, toleráveis e eventualmente aceitáveis como tratamento" (cf. Foucault). 2. Passou por uma definição sociológica desenvolvida e aplicada durante um ano sabático 2001/2002 (cf. Dores, Espírito Proibicionista) 3. Passou por um processo de legitimação teórica através de um apelo, que acabou por se revelar fácil, à benevolência dos clássicos da sociologia relativamente ao tema (cf. Dores, tese de agregação, 2003) 4. O desenvolvimento apresentado a seguir da figura refere-se ao programa de construção de uma tabela de estados-de-espírito fundamentais que permitam um uso generalizado da abordagem, iniciado em 2004. 5. Mais recentemente, por necessidades de aplicação prática da teoria aos temas do presente projecto, foi construído um espaço tridimensional de análise, considerando eixos (institucional, familiar e individual), planos (jurídico, antropológico e bioético), origem (da vida) e níveis mais elevados (mais espirituais ou mais rarefeitos de materialidade) num polarização centrípeta vs. centrífuga do gráfico que se refere a questões filosofico-civilizacionais e, por fim, a polarização moral positivo-negativo na sua ambivalência (todos os octantes do espaço, excepto um, têm pelo menos uma dimensão negativa - a tracejado). 6. O trabalho irá continuar na procura de encontrar soluções de operacionalização das abordagens aqui referidas. Nomeadamente em torno de conceitos como os de espaço (ver textos sobre "dimensão do pátio") e tempo (falta produzir textos sobre diferenciação das dinâmicas sociais nos eixos - níveis sociais institucionalmente consagrados e produzidos, ciclos lentos de vida consagrados e produzidos pelas famílias e ciclos acelerados consagrados e produzidos por indivíduos competitivos) Tabela de estados-de-espírito
Nasceu de uma intuição. Imaginar uma pessoa sossegada numa cela, com um regime monástico, pode levar-nos a desejar atingir o misticismo que tal vida pode proporcionar. Como se costuma dizer, é estar de férias num hotel pago pelo Estado e pelos contribuintes. Que mal tem isso? Porque é que gente – como eu próprio – se dedica à “defesa dos direitos humanos” dos presos, mais parecendo um bom samaritano que até se pode admirar pela fé que terá que transportar, mas, ao mesmo tempo, se desdenha por ter escolhido logo “defender” os da “pior espécie”, isto é, os homens maus. E porque é que à indiferença com que os direitos do presos são tratados pelas instituições, capazes de se solidarizarem com os abusadores servidores do Estado sempre que algum abuso de poder dá mais escândalo, em geral porque envolve perda de vidas humanas ou lutas corpo a corpo nas prisões, a tal indiferença se juntam as assinaturas solenes de singulares tratados internacionais, que prevêem a intromissão de agencias internacionais na esfera mais intima da soberania nacional para inspecções às prisões? E porque é que os efeitos esperados de tais tratados são tão só os de conter as tendências de produção de maus-tratos, tratamentos degradantes e torturas nas instituições penais? Do mesmo modo que os negócios raramente são condicionados pelos direitos humanos, nas agendas internacionais, mas o inverso é frequente, é-se levado a pensar que o que acaba por ser estruturante é a economia, para o melhor e para o pior, esquecendo-se que esta última decorre de comportamentos morais, historicamente mutáveis e estruturados. O facto de a contabilidade suportar melhor o cálculo económico resulta menos da natureza objectiva das actividades económicas (por alegado defeito das relações sociais que delas, assim, se tornariam dependentes) e decorre antes de um laborioso e bem suportado investimento em ideologias (burguesas no século XIX, de informação e gestão, no século XXI, (cf Boltansky e Chiapello 1999) que tornam dominantes certos entendimentos da vida (salarial à esquerda e empresarial à direita), incluindo no orgulhoso campo da sociologia – atacado e reduzido pelos poderes fácticos com o pretexto da sua potencial inutilidade, da sua expressividade, a que uma parte significativa da classe corresponde prestando reverência à “economia” e ao poder modernista que esta representa, exigente em termos do escrutínio da rentabilidade e da produtividade capitalista, sem a qual não deve haver possibilidade de desenvolver qualquer tipo de actividade (cf. Boudon 2004). Seja a nível micro, para pensar a vida celular, seja a nível macro, para pensar as relações internacionais e interdisciplinares, o estado-de-espírito de cada ser humano, mas também de cada povo e de toda a humanidade, começou a parecer relevante. É que há quem utilize “bem” a prisão para refazer a vida “perdida” como há momentos na vida mundial em que parece que a justiça pode existir entre as nações. Nesses casos, nesses momentos, as instituições e os sistemas económicos são precisamente os mesmos que produziram injustiças e infâmias. Mas, de repente, como surge um marmoto ou uma revolução, não propriamente sem aviso mas antes por lhes ignorarmos os sinais, envolvidos que estamos nas nossas rotinas aparentemente seguras, as instituições e os sistemas económicos podem passar a funcionar num sentido inesperado, e tão inescapável como tinha sido o sentido regular anterior.[1]
Estado-de-espírito é aquilo que diferencia o monge do prisioneiro, mas também um presbitério ou um mosteiro de uma prisão, ou um mesmo povo submetido a uma ditadura ou vivendo em democracia, ou um mundo livre de um mundo temeroso da guerra. Estado-de-espírito não é uma explicação total, como por vezes se concebe a sociologia (também por culpa dos sociólogos). Mas é um contributo para explicações estruturais, porque não. Desde Bourdieu que sabemos que pode muito bem acontecer que coisas que gostamos de pensar serem precárias e aleatórias – como o gosto das pessoas na arte, na culinária, e noutras actividades – podem ser estruturas estruturadas e estruturantes. Nesse caso, porque cingirmo-nos a três ou quatro variáveis já conhecidas, que funcionam bem nos inquéritos, para sintetizarmos a realidade (o que não tem que ser mal feito) e porque não admitimos a possibilidade de enriquecermos a capacidade de análise social com novas dimensões, nomeadamente as espirituais? Evidentemente que não é pacífica a ideia e pode mesmo provocar algum desconforto, por denunciar insuficiências e lacunas na análise social regular. Mas não é disso mesmo que a ciência precisa? De se desenvolver? No desenvolvimento da intuição cheguei à percepção de que a sociologia tal e qual se ensina e se pratica escolheu desenvolver das intuições clássicas apenas algumas das suas potencialidades, a saber: a dimensão económica e social, a dimensão política e social e principalmente a dimensão cultural, muitas vezes confundida com o social. Herança não suficientemente questionada do estrutural funcionalismo (ler, a propósito, Giddens 1985). Ficaram para trás as intuições biosociais (por vezes utilizadas por ideologias duvidosas como teoria social), as intuições sobre a análise dos processos de eficácia e eficiência da legalidade (quando é preciso, continua a partir-se do trabalho pioneiro de Weber sobre o poder) e as intuições sobre tomadas de decisão (o ciência da liderança foi “raptada” pela psicologia social). O conceito de estados-de-espírito deverá dar conta de padrões de interrelação entre pessoas, instituições ou povos no sentido em que todas estas entidades têm necessidade de resolver um mesmo problema (como funcionar de modo sintonizado com os diversos níveis de sociabilidade, que presumo que sejam 3) com recursos similares e partilhados (os seus corpos, as suas mentes e as formas de interrelacionamento entre todos). Podemos admitir existir um número finito desses padrões, da mesma forma que, por exemplo, num jogo desportivo será possível determinar um conjunto de estilos de exercer a função de jogador, que levará o treinador a ajustar as características dos lugares e posições possíveis às características do plantel. Melhor dito: cada jogador será mais ou menos mestre no desempenho de vários comportamentos elementares, inatos ou treinados, que, em conjunto, formarão uma personalidade específica única, mas ao mesmo tempo reconhecível, mesmo quando for surpreendente. Claro que a vida social, apresentada nestes termos, é muito mais plástica do que os comportamentos médios ou extremados que são protagonistas nas estatísticas. Mas o que torna menos desejável e operacional a possibilidade de produção de uma tabela de estados-de-espírito, ao jeito da tabela periódica usada nas químicas, do que as actuais práticas metodológicas das ciências sociais? Não se trata de uma proposta qualitativa que se opõe às propostas quantitativas. Trata-se de uma abordagem capaz de questionar a natureza humana, nos seus limites e potencialidades ontológicas, independentemente da natureza da epistemologia particular das ciências sociais, por diferença com a biologia ou a psiquiatria. Trata-se de relativizar a natureza estrutural das linguagens, das instituições, das tecnologias, dos símbolos, quais tigres de papel sempre que a vontade, a disposição das pessoas, dos grupos, dos povos se manifesta – o que só acontece, como outros fenómenos naturais intensos, de tempos a tempos. Nem por isso a teoria social deve abdicar de questionar a ideologia da naturalização dos quotidianos, das culturas, das economias (como prevenção? Como estímulo? Como arte?).
Bibliografia: Boltansky, Luc e Ève Chiapello, Le Nouvel Esprit du Capitalisme, Paris, Gallimard, 1999. Boudon, Raymond, “La sociologia que realmente importa” em Papers nº 72:215-226, 2004 Giddens, Anthony, The Nation-State and Violence - Vol II A Contemporary Critique of Historical Materialism, Cambridge, Polity, 1985
[1] A célebre frase do “tigre de papel” de Mao Zedong referia-se à fragilidade endémica das estruturas, e não – obviamente – à fraqueza das instituições. Para elas ele tinha outra frase: “o poder está na ponta da espingarda”. Não é muito democrático mas não deixa de ser realista. |
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