Repensar a sociedade à luz da experiência   

 

 




Apresentação - A precipitação dos radicalismos e a responsabilidade de cada um


Trata-se da disponibilização de um conjunto de seis artigos sobre a presente e persistente agitação social. De uma tentativa nada profissional de ultrapassar as barreiras editoriais para chegar aos potenciais leitores.

Comentários podem ser dirigidos a antonio.dores@iscte.pt.

 

Recomendo excelente comentário sobre os movimentos em Espanha: Ver lo invisible de


A precipitação dos radicalismos

A situação actual caracteriza-se pela reemergência de míriades de micro acções sociais capazes de convergirem extraordinariamente em grande eventos, cuja continuidade prática não é assegurada, e que pretendem, mesmo assim, percutir efeitos institucionais por via sobretudo cultural e moral. Trata-se, pode dizer-se, de uma disseminação pública das práticas desenvolvidas pelo Fórum Social Mundial em recintos fechados desde o início do século e que se rotinizaram.

Nota-se, nestes movimentos, a ausência propositada de protagonistas que os possam representar em negociações ou em processos de integração como parceiros sociais e uma indefinição em termos de interesses (nacionais, de classe, corporativos). Distinguem-se por se encontrarem à margem dos partidos e dos sindicatos e também de palavras de ordem unificadoras. Reclamam democracia sobretudo no relacionamento entre as várias partes do movimento e esperam que a democracia vingue nas instituições, ainda quando as evidências mostram o inverso.

O sentimento crescente no Ocidente e cada vez mais consolidado de que a sociedade terá de se transformar noutra coisa está a ser aproveitado pelos poderes do momento para acelerarem o processo de reorganização social neo-liberal, cujos resultados neo-coloniais,[1] desde o Chile de 1974, são conhecidos, denunciados e combatidos em muitas partes do mundo. Contra a brutalidade das conspirações político-financeiras, mostra a história, a vontade dos povos pode menos do que em estados de guerra. Na verdade, a dependência das sociedades de solidariedade alargadas e globais do sistema de valor padrão não pode ser evitada ou suspensa e, ainda que seja possível fazer recuar as políticas de exclusão social dos mais fracos e abandonados, como mostrará a análise da história europeia desde os anos 80 até agora, as mesmas estratégias e intenções anti-sociais reproduzem-se através de elites sociais formadas em escolas de ciências sociais e cujos fanáticos pontuam os governos nacionais europeus.

Não admira que, depois da recorrência das experiências políticas de avanços e recuos das políticas neo-liberais, nas últimas décadas, os seus apoiantes sintam ser oportuno radicalizar as políticas e ir até ao fim, na esperança de verem o Paraíso. Como não admira que as vítimas reais e sobretudo as potenciais vejam agora o futuro negro e procurem reagir, ainda sem recursos. Ou melhor, desconfiando de todos os recursos disponíveis, já que todos parecem moralmente contaminados pelos vícios do poder, dos jogos formalmente democráticos para cobrirem actos fundamentalmente anti-democráticos. Mais interessante ainda: apoiantes da radicalização neo-liberal tornam-se críticos das suas concretizações práticas (como uma parte importante dos apoiantes do governo de Passos e Portas, que este último se esforço por representar) e tornam-se também participantes, eventualmente muito activos, dos movimentos populares de contestação da situação.


[1] Por neo-coloniais entende-se a mobilização de entidades privadas para cumprirem políticas de Estado, no sentido descrito por John Perkins (2004) Confessions of an Economic Hit Man, Berrett-Koehler Publishers.


As responsabilidades de cada um

Ao rebentar em público a crise do subprime, em 2008, surgiram declarações inesperadas na boca de comentadores mediáticos encartados cujo papel é muitas vezes acusado de ser acompanhar o longo desmantelar das políticas de coesão social e de bem-estar para a classe média. Falou-se da incompetência dos economistas e da ciência económica dominante na previsão do estoiro da bolha – sem desprestígio para as agências de avaliação e de regulação – e de efeitos económicos descritos por Marx, arqui-inimigo do capitalismo entretanto enterrado com o comunismo real. Procederam-se a nacionalizações. Reclamou-se a intervenção do Estado. Ficou evidente o logro da ideologia neo-liberal (cujos princípios são menos ideológicos e mais pragmáticos do que a política faz querer) e a necessidade de o combate sair das trincheiras institucionalizadas da política, para tomar o espaço público, de que a rua é o símbolo e os locais de residência e trabalho são extensão. No fim de 2012, de Madrid, chega a notícia de professores e alunos universitários terem saído à rua para organizar as suas aulas, como expressão, precisamente, da necessidade lógica – mas ainda não praticada – de fazer convergir espaços públicos separados entre si, para romper com os processos de alienação da vida política entretanto banalizados e normalizados nas últimas décadas.

Como profissional da sociologia, em nome de que escrevo e falo muitas vezes, tenho que reconhecer e tomar consciência do papel (menos secundário do que daria jeito à minha consciência) da difusão da teoria social nas sociedades actuais, de que a economia e a gestão são protagonistas e o utilitarismo económico o critério de valor único.

No caso da teoria dos movimentos sociais, a grande preocupação de apurar os recursos disponíveis e mobilizados e de assegurar a distinção entre os movimentos sociais verdadeiros e os que não o são, por serem considerados impotentes ou irrelevantes a nível político, revela esse utilitarismo, mesmo quando é anti-neo-liberal. Essa é uma das razões pelas quais a sociologia tem tão pouco a dizer numa ocasião como esta, em que teria tido – caso fosse capaz – oportunidade para afirmar as vantagens da prioridade aos critérios sociológicos de governação dos Estados, quando os critérios económicos faliram. Algo vai rotundamente mal no reino da sociologia, pelo menos para os que dela esperam a denúncia de políticas anti-sociais. Na verdade políticas anti-sociológicas também, como deixou expressamente claro a senhora Tatcher logo nos anos 80 quando afirmou que não existia nada a que se pudesse dar o nome de sociedade. A sociologia desarmou-se e parece estar à mercê de qualquer golpe de misericórdia. Embora, claro, seja possível organizar a resistência e a recuperação do potencial cognitivo da teoria social para compreender a natureza inquieta da espécie humana.


   
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