Novas explorações sociológicas


Identificámos três pistas de reformulação da teoria social estimuladas pelo estudo dos estados-de-espírito, a saber: a integração da violência no centro da teoria social, a atenção a, e a caracterização do, mecanismo do segredo social e, ainda, a reapreciação do homo social mais rico que o indivíduo e menos coerente que o sujeito ou a pessoa.

Sociologia da instabilidade: O homo social realmente existente não se opõe nem é o essencial do homo individual.  O homo social responde aos sociólogos como responde aos psicólogos ou aos juristas: de forma instável, dependente do seu estado de humor, do que entende ser aquilo que seja a sua responsabilidade mas também o seu interesse, em função das suas competências, habilitações e disposições, portanto dependente do contexto institucional, processual e de interacção histórico, em curso e previsível, em função da prévia preparação/treino de que tenha sido sujeito e da percepção que tenha das circunstâncias. O homo social é não apenas emergente de complexas e densas construções bio-fisiológicas psico-sociais, como é também é parte integrante de um mundo feito das suas extensões (tecnológicas, nomeadamente) e de exercícios simbióticos (desde as guerras que (con)fundem identidades até pandemias ou simples epidemias) que nos revelam a nossa intimidade com o cosmos (quer dizer: com a vida e com a morte).

Ciências de emergência: as identidades individuais, grupais, institucionais ou sociais são construídas sob a forma de necessidades. Não há determinismo capaz de impor soluções pré-estabelecidas ou conspirativas às fronteiras e às formas e (in)sucesso de estabilização das identidades. Por necessidade entende-se aqui a actividade vital que caracteriza o estado da matéria viva. A necessidade de  viver tem de ser concretizada: aí não há escolha. Já nos conteúdos e formas, uma infinidade de escolhas é possível, mas não todas ao mesmo tempo. E, principalmente, certas formas de existência vital são contraditórias - de forma saudável ou não - com outras formas de exercício da vitalidade: a violência não é anti-social. É, isso sim, uma necessidade de que emerge também a sociedade. Anti-social, se quisermos considerar tratar isso,  é, em primeiro lugar, a violência que coloca em causa a vitalidade da vida na Terra. Em segundo lugar, a violência que coloca em risco sociedades humanas - atacadas pela fome, pela sede, por doenças tratáveis pelos sistemas de saúde. Em terceiro lugar, a violência que desrespeita a dignidade humana. É certo que todas as formas de avaliação moral podem estar ligadas umas às outras. Politicamente, porém, num mundo hierarquizado (ainda que em rede), as responsabilidades e as potencialidades dos actos imorais - violências capazes de aumentarem os riscos de inviabilização das condições de emergência da boa vida - não são (por natureza das coisas) as mesmas em todos os níveis sociais.

Segredos sociais: a transparência universal da Razão em luta contra as trevas e a ignorância é um mito moderno a que convém contrapor a gestão dos segredos sociais. Cada ser humano vive a contradição entre aquilo que diz e aquilo que faz. Há muitas maneiras de encarar a contradição, mas há que a tratar de alguma forma. E não há forma de a resolver ou de a superar. O que se diz e o que se faz, quando é relevante, pode afectar as potencialidades vitais, seja dos indivíduos, seja das sociedades, ou até do cosmos. No Oriente, perder a face pode implicar o suicídio, por exemplo. Por toda a humanidade e por todas as classes sociais há mecanismos semelhantes, nem sempre tão explícitos ou assumidos. Morrer de amor ou de humilhação, por exemplo, são formas da vida se incompatibilizar com as possibilidades de dizer e fazer acessíveis. Os acidentes de trabalho, as doenças profissionais, a morbilidade observada em certos meios habitacionais influenciados por radioactividade, campos magnéticos ou outras condições ambientais, tudo isso podem ser segredos sociais (ver exemplos concretos AQUI). Conhecimentos existentes mas que não são mobilizáveis por circunstâncias as mais diversas: porque a morte de um turista por um tubarão pode arruinar os negócios sazonais de toda uma região, ou porque a defesa de uma criança abusada questiona as instituições que a deviam defender ou a honra do abusador. São também segredos sociais os factos escondidos por declarações de autoridade sobre o que deva ser entendido como a verdade, seja por via dos tribunais ou da ideologia política, seja por via da ciência, incluindo as ciências sociais.

Perguntas frequentes:

Capacidade de previsão:

Sendo a sociologia uma disciplina que aspira a ser uma ciência, e nesse sentido, ter pretensões de "prever" realidades sociais mais ou menos complexas (sabemos perfeitamente a quase utopia desta pretensão devido à volatilidade do que chamamos de social, ou "factos sociais" a la Durkheim), como podemos prever estados-de-espírito? Ou seja, sendo sistemas de disposições que podem estar "encapotados" em complexos histórico-sociais que determinam essas disposições a vários níveis (penso nos planos de análise: o bio-ético; jurídico e o institucional) pode a tua contrução teórica aspirar a prever que um determinado estado-de-espírito possa ocorrer?

Mário Gomes Caeiro, domingo, 5 de Outubro de 2008

Resposta

1º os estados de espírito descobrem-se. Isto é, a sociologia é convidada a estabelecer como programa científico a descoberta de estados-de-espírito empiricamente verificáveis e observáveis numa e em várias civilizações e sociedades. O carácter de uma cidade, de um povo, de uma região ou de uma civilização poderão, eventualmente ser identificáveis cientificamente através de um ou mais estados-de-espírito típicos, seja na sua emergência (existência) seja na sua frequência e modo de utilização.

2º num sentido fraco, os estados de espírito poderão ser previsíveis na medida em que numa certa região social e em certas circunstâncias é provável que ele seja observável. Num casamento no Afeganistão é provável que o espírito guerreiro (ou será viril?) seja observável nas pessoas (homens) que disparam para o ar, do mesmo modo que à saída de uma prisão se poderá observar estados de espírito próprios de afirmação de subculturas prisionais (agressividade e ameaças feitas por pessoas com medo, a que se poderá vir a chamar espírito de fafaronice submissa). Claro, que só falta definir sociologicamente tais estados de espírito tanto de forma analítica (em função das dimensões, planos e dinâmicas) como na forma fenomenológica ou descritiva.

3º num sentido forte há uma hipótese construída pelo João Camacho a propósito das prisões, mas que eventualmente pode ser mobilizada para outras instituições, que é a sequência de estados-de-espírito: espírito de revolta ou de subversão que são confrontados por espírito proibicionista de onde pode resultar espírito de submissão. Na escola pode propor-se que o espírito de curiosidade possa ser confrontado com o espírito de disciplina para proporcionar espírito científico. Estas sequências de estados de espírito podem ser estudadas em maior extensão e profundidade de modo a suscitar maior ou menor certeza na previsibilidade de fenómenos emergentes.

Será estado de espírito um conceito diferente de atitude?

Sim. Apesar das aparentes semelhanças, o estado de espírito está para a atitude como o anti-ciclone está para o ciclone. O primeiro é centrífugo e o segundo é centrípeto.

Atitude é um produto conceptual da psicologia social, enclave disciplinar entre duas outras disciplinas. Estado de espírito é um conceito aberto tanto do ponto de vista metodológico como do ponto de vista disciplinar: aceita e pede abordagens complementares fenomenológico-compreensivas, por um lado, e analíticas em planos e dinâmicas por outro, religadas entre si através de ciclos temporais, por outro. Liga a sociologia a todas as outras ciências e saberes, na tradição do positivismo, mas sem a presunção entusiasmada de ser a primeira a líder de todas as outras formas de cognição. Há, de facto, uma espécie de justaposição nas relações entre a psicologia e a sociologia que dão ar de aparentados aos dois conceitos. Mas o estado de espírito é um programa de estudos a desenvolver, à espera de contribuições da física, da astro-física, da biologia, das ciências da saúde, do direito, da filosofia, da teologia, para além das outras ciências sociais para lá da sociologia. Não é uma variável sintética a estudar.

Outra forma de dizer é sugerida por Luc Boltansky, L´Amour et la Justice commme compétences, Paris, Métailié, 1990. Estado de espírito é a positivação instável, ideal-típica, de estados a que se referem competências próprias de cada actor social em protagonizar modelos de estar referenciáveis/reconhecíveis por todos os seres humanos, na sua igualdade de potencialidades bio-sociais. Tais modelos e referências tendem a ser universais tanto no sentido  da sua origem (biológica) como no sentido do seu destino (reconhecimento inter-humano).


regressa à página inicial volta ao início da página