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Blogadas
ao Congresso da Cidadania - ruptura e revolução democrática
13/03/2015
à polémica com
FL 6/3/2015
Praxe e fascismo
Por ser frequentador assíduo do Estádio Universitário, em Lisboa, observo
regular e distraidamente as práticas das praxes. Porque sou professor
universitário, recordo-me de quando as praxes se começaram a impor às aulas.
Primeiro durante uma semana. Depois por mais tempo. Paulatinamente foram
aparecendo estudantes fardados nas aulas. As praxes foram proibidas dentro
dos recintos universitários e passaram a praticar-se virtualmente todo o ano
nas imediações das faculdades.
Grande gritaria, palavrões que baste, pinturas de guerra, marchas daqui para
acolá. Dizem-me que é para integração social (todo o ano?). Com o caso das
mortes no Meco fiquei a saber da constituição de uma hierarquia da praxe com
códigos secretos publicados e uma tendência para o endurecimento do
tratamento entre pares e junto dos caloiros, por ser essa a ideia dominante
sobre o que seja a integração social. Era tanto mais integrado quem
detivesse um lugar de poder, tão elevado quanto possível, numa hierarquia de
excelência na aplicação de programas auto consentidos de violência gratuita,
a pretexto de não haver nada de melhor para fazer. A dinâmica
institucionalizada reclamava mínimos de integração para quem quiser
participar em actividades como cantar ou tocar nas tunas académicas. E
oferecia uma carreira de integração social feita de maus tratos auto
infligidos e estimulados mutuamente por adoradores da hierarquia assim
gerada.
Da discussão pública recordo a boçalidade alarve e ignara do Dux de Coimbra,
levado à RTP ao programa Prós e Contras para representar as praxes
directamente. Figura hierárquica máxima, terá eventualmente sido apresentado
como demonstração de a hierarquia ser em si mesma a finalidade da praxe. Não
interessa quem esteja a ocupar os lugares. Qualquer imbecil tem a mesma
probabilidade de subir na hierarquia como outro qualquer.
O argumento único em defesa da praxe foi a liberdade. Liberdade de fazer o
que quiser, como montar uma hierarquia, por muito imbecis que sejam a ideia
e as pessoas que nela participam. Defendido por todos os dirigentes
associativos presentes. Nenhum se declarou adepto da praxe e todos se
limitaram, com a máxima ingenuidade que o dirigente associativo pode
manifestar, defender a liberdade de expressão daqueles que ali, no debate
público, não se manifestaram a não ser por figuras menores e anónimas.
É esta a formação política dos nossos jovens? É, sim. É a formação política
que ensinamos em sociedade e também nas universidades.
A mesma irracional irresponsabilização aconteceu quando chegou a hora de
assumir responsabilidades pelas mortes no Meco. A cobardia do Dux foi
defendida por toda a hierarquia secreta. E a mentira foi o prato do dia.
Para efeitos de defesa jurídica perante os apelos à instauração de acusações
criminais contra o jovem sobrevivente da noite fatídica.
Tudo isto não pode deixar de fazer moça no prestígio daquelas actividades de
integração social, a que Mariano Gago, com frontalidade de louvar, chamou
fascistas. Infelizmente tal intervenção não suscitou um debate mais sério
sobre – precisamente – o fascismo. O que foi e o que é. E o que é que a
praxe terá a ver com o fascismo.
O fascismo poderá ser definido como um modelo de integração social
hierarquizado com idolatria do chefe e em particular do chefe máximo, em que
este raramente assume responsabilidades e jamais aceita ser escrutinado?
Modelo de integração alegando vinculação a tradições populares eternas,
ignaras e buçais imutáveis? Hierarquia controlada informalmente por
eminências pardas – como a brigada do reumático ou os ultras – capazes de
condicionar a acção dos dirigentes visíveis – como o Presidente do Conselho
(de ministros) e o Presidente da República – portanto à margem dos
regulamentos e leis alegadamente em vigor mas na prática escritas para
inglês ver?
Pessoalmente odeio praxes. E apenas uma vez fui confrontado com isso, na
minha juventude. Achei um abuso o que me fizeram, sabendo todos os
abusadores perfeitamente que não aceitaria que mo fizessem. Não me esqueço
do sorriso da autoridade (um adulto) que autorizou e incentivou o abuso:
“Não custa nada! Vês?” Custa ser humilhado e lembrado da nossa impotência
perante o mundo, a começar pela falta de solidariedade dos companheiros,
neste caso desportivos. Uns imbecis aceitaram cumprir os desejos do chefe,
não apenas praxando-se mutuamente como impondo a praxe a terceiros. Não
aceitei. Fez-se. E não se falou mais nisso. Falo disso agora. Porque é a
hora de voltar a recordar os tempos do fascismo já vivido. Para que nunca
mais se volte a viver aquilo que alastra a olhos visto pela Europa: na
Rússia, na Ucrânia, na Hungria, na Grécia, em França, no Reino Unido, na
Holanda.
Ao passar pelo Estádio Universitário em Setembro de 2014, no ano seguinte ao
caso das mortes de praxistas no mar do Meco, os grupos da praxe estavam
sobretudo formados por gente fardada (menos caloiros que no ano anterior) e,
mais importante, não havia gritaria: decoravam-se os versos de uma canção de
cujos versos não me pareceu ouvir palavrões. Não se pode tirar um padrão de
uma observação ou duas, num único dia. A praxe é hoje um negócio com
estabelecimentos especializados na venda de produtos para a praxe aberto
todo o ano. E os praxistas organizam actividades todo o ano. Com excepção
das férias.
Junto da Faculdade de Direito um grupo de uns cinquenta fardados sentava-se
à volta de um outro. De pé usava da palavra: “Que nos chamam cobardes, vá.
Agora que nos falem de mortes? Isso é demais!”. O grupo respondeu em coro,
como acontece nas igrejas: “Sim, chefe!”
Nunca tinha assistido a uma coisa assim. Será que voltarei a assistir? O
jovem que falava continuava a falar no meio do grupo de adoradores … de quê?
Das fardas? Da praxe? Do chefe? Do fascismo? Da cobardia? Da morte não eram
adoradores, parece. Para já.
2014-09-16
Reconstruir a esperança
Pode ser impressão minha.
Mas as notícias sobre os casos judiciais abertos contra corrupção estão a
aumentar. Será isso uma boa notícia? Seria, caso a confiança nas
instituições não estivesse abaixo da linha de água. Infelizmente o problema
é mais fundo.
Portugal foi sempre um local
de passagem para outras margens. Os primeiros reis foram cruzados em
Al-Andaluz. Os Descobrimentos foram a expansão dessa Fé em nome da reposição
do Império. O V Império foi e é a utopia possível para se conjugar com a
lenda de D. Sebastião e as dependências impostas pela globalização, a cujos
ventos o país sempre esteve sujeito. Politicamente congelado durante meio
século sob o salazarismo, ao voltar a abrir as portas ao mundo Portugal, com
o 25 de Abril de 1974, voltou a sentir o ar agitado da modernização.
Encolheu-se (os demógrafos dizem a população envelheceu – aqui a minha
homenagem ao Mário Leston Bandeira que faleceu no dia do trabalhador) e
manteve-se das sociedades mais desiguais da Europa.
O meu pai recusou-se a fazer
aquilo que o meu avô tinha feito com ele: mexer cordelinhos para arranjar um
bom emprego para o filho. Era preciso combater o nepotismo, a discriminação
e a corrupção. Estou seguro que muitos portugueses dessa geração fizeram o
mesmo. Não por serem moralmente especiais. Mas porque foi assim que viveram
esse tempo de esperança. Percebo hoje porque preferiu abandonar o país para
trabalhar (por moto próprio). Foi tratado por parvo. Não que ele mo tenha
dito. Admito até que não compreendeu o que se passou com ele. Eu mesmo só
agora percebi o que aconteceu. Enquanto uns imaginaram mundos melhores,
outros organizavam, com os pés assentes na terra, alguma maneira de subirem
na vida, mascarando isso com serviço público e bem comum. Como então se
dizia, “não é um mal as pessoas na política terem as suas ambições
pessoais”.
Um porto, como é afinal
Portugal, nunca foi, nem talvez possa algum dia vir a ser, um poço de
virtudes. É, como todos sabem, um lugar de desenrasca. Em que cada um troca
o que tem, sentindo-se sempre estrangeiro na sua terra – desde sempre foram
os estrangeirados quem mandou no país, como continua a ser. Como mostram os
inquéritos internacionais com grande clareza, os portugueses limitam-se a
desconfiar de tudo e de todos,
sobretudo de si próprios. De que vale pensar e estabelecer regras (jurídicas
ou morais) se tudo está sempre em grande mudança? Para ser verdadeiro, há
que entender que esta versatilidade nacional é fomentada intencionalmente
pela direcção do porto: primeiro pelo fascismo (o chamado obscurantismo) e
depois pela democracia limitada que vivemos: a nível educativo (onde, apesar
dos avanços, continuamos lanterna vermelha isolada), a nível cívico (com
taxas de participação cívica igualmente destacadas no fim da linha), a nível
judicial (onde se persegue quem sinalize problemas e, ao mesmo tempo, se
rejubila pelo número limitado de queixas recebidas) e, necessariamente, a
nível da transparência.
Não vale a pena esperar de
fora as soluções que precisamos cá dentro. A vitória dos aliados na II
Grande Guerra não apeou Salazar; a NATO não conteve o 25 de Abril; a troika
não combateu as rendas monopolistas nem as inverdades políticas, que
continuam manifestamente a campear. Porém não se pense que basta o povo
unido – como esteve em 15 de Setembro de 2012.
Não será à justiça, ela
própria corrompida por uma selectividade e incapacidade muito bem estudada,
disfarçada de dureza para com os números obscenamente crescentes de
prisioneiros pilha-galinhas, a quem devamos recorrer à procura de socorro
para lutar contra a corrupção. Recorramos antes à memória dos nossos pais –
aqueles que pensaram em aproveitar a revolução para serem melhores. Façamos
justiça a todos os que foram derrotados pelo rolo compressor da modernização
desertificante – do território, dos que assinalaram as perversidades do
regime e do nosso ânimo. Transformemos essas derrotas em vitória. 3-5-2014
Requiem pelo 25 de Abril, em nome de uma nova esperança
Em homenagem ao 25 de Abril, há a reconhecer que a) os discursos oficiais
contra o 25 de Abril inexistem; b) mas há muito quem se recuse a usar o
cravo vermelho. O 25 de Abril para uns é um estado de espírito que pode ou
não concretizar-se, aqui e acolá. Para outros, o 25 de Abril é um facto,
ultrapassado por outros factos, como a descolonização, o 25 de Novembro, a
entrada do FMI em Portugal, a entrada de Portugal na CEE, o fim da hegemonia
da esquerda na política portuguesa.
A violência (guerra colonial e revolução, por exemplo) é um acto soberano
raro (Collins) tabu de reequilíbrio pessoal e social, praticado sobre a
capacidade de autodeterminação das pessoas adversárias, reduzindo-as ao
corpo (abstraindo das suas mentes) (Reemptsa) com vista a libertar as mentes
e as acções dos agressores.
O acto de violência visa estabelecer uma nova estrutura da conflitualidade
(Wieviroka)
e tabus da gestão da instabilidade essencial à vida. Resulta de uma
necessidade própria de um estado de excepção (Agamben) – por isso é raro e
tabu. Transforma a situação a partir do princípio do primado à iniciativa –
que define a soberania no tempo imediatamente subsequente. E coloca certas
pessoas (de outro modo marginais, bandidos) em posições de poder – dentro e
fora da sociedade, tutelando-a espiritual ou/e factualmente.
Totalitarismo ou despotismo é, do ponto de vista da nossa civilização, o
poder que procura e/ou consegue confundir e misturar tutela espiritual e
tutela factual – i.e. o poder de tornar ilegítimos e culposos os estados de
espírito contra factuais em nome de um estado de espírito singular, como
juiz da verdade factual em causa própria, reclamando para si o privilégio da
iniciativa protegida da/por ameaça credível de violência e a inacção de
todos os outros (monopólio estatal da violência, censura, repressão
policial, encarceramento, tortura, mas também teoria social e seus tabus (Lahire)).
A violência mais vulgar – como mostram as actividades policiais e penais,
por exemplo – toma por alvo, adversários ou inimigos os mais fracos entre os
seres sociais. Como o fazem os predadores no topo da cadeia alimentar. Ainda
mais excepcionalmente do que a violência vulgar ocorre a violência heróica,
quando os alvos da violência são os mais fortes e poderosos, quais David
face a Golias. Nessas situações a esperança dos povos de se transformarem de
bandos em sociedades, de povos em Povos, de gentes em humanidade, pode
emergir em espíritos de liberdade, igualdade, fraternidade, jamais
plenamente concretizados. Por isso os heróis são tão perigosos e são
tratados como seres sagrados, isto é, imediatamente traídos, antes que se
tornem eles próprios traidores.
Mas a esperança é a última a morrer. Por isso vivemos, 40 anos depois, este
período de luto. Até que alguma violência heróica sirva a desesperança com
uma nova esperança, em estado nascente (Alberoni).
2014-04-16
Praxes e política
No mesmo dia que saiu um
relatório da Comissão Europeia a dizer que o Estado português pouco tem
feito para combater a corrupção, o programa Prós e Contras trouxe a
debate as praxes académicas, salientando-se a posição “habilidosa” de um
professor de direito que, sem nunca reconhecer as responsabilidades próprias
– ao contrário do que fez o professor de psiquiatria explicitamente –
dispersou culpas para as políticas governamentais e para a autorregulação
dos abusadores organizados “livremente” para que não abusem demais.
Resumindo um debate pobre,
ninguém esteve ali para explicar as violências expressamente impostas pelo
código da praxe – muito bem trazida a debate pela jornalista Fernanda Câncio
– ou as imagens das humilhações das praxes, trazidas pelo realizador de um
documentário com o mesmo nome – que usa o seu trabalho para o combate
anti-praxe. Mas esteve a representante de uma associação anti-praxe
constituída há uma semana, isto é, já bem depois da exploração do escândalo
das mortes de seis jovens em praxe na praia do Meco. Mais vale tarde do que
nunca. E como estamos necessitados de compromissos destes. Obrigado,
O argumento a favor da
praxe foi que ela é “informal”, não existe a não ser na cabeça de quem quer
brincar às praxes, como forma de convívio – como o desporto, o teatro, os
clubs de discussão. É claro, argumentou o presidente da AAC, que é uma coisa
mais ao gosto popular, como a imbecilidade do Dux representante da praxe de
Coimbra. Imbecilidade estudada, ou não fosse representante de estudantes. Os
abusadores clandestinos que se escondem na hierarquia das praxes escudam-se
na imbecilidade dos seus Dux e atrás, também, da conivência do direito e dos
jotas, que usam “livremente” as associações de estudantes para se prepararem
para a vidinha política.
As praxes, para os seus
defensores, são as partes não criminalizáveis das praxes (o traje, as
serenatas, a recepção aos caloiros, a procura de amizades), tal como as
actividades legais dão cobertura aos abusos de poder, aos ilícitos, nos
negócios ou na política. As praxes são uma vigarice organizada por
irresponsáveis, a coberto dos poderes instituídos, para manifestar a
superioridade natural dos superiores. Sejam eles os Dux ou os ricos ou a
troika ou os políticos ou os representantes das associações académicas,
todas, como se viu, fiéis ao seu eleitorado estudantil organizado.
São as jotas a preparar a
integração nas sociedades secretas que, segundo alguns, dominam as
instituições portuguesas, sobretudo as instituições judiciais. Como no
futebol, vêm agora os defensores das praxes e dos abusos sexuais dizer-nos
que quem é contra as praxes deve provar, caso a caso, cada crime cometido
por membros isoláveis (e, em abstracto, condenáveis, e com direito a
defesa). Como em teoria tudo o que seja condenável não é praxe, os juristas
terão aí mais uma fileira de rendimentos por muitos anos.
Há duas formas de desmontar
estes raciocínios: a) a apresentação de casos e mais casos de abusos nas
praxes, como se propõe fazer, e muito bem, a associação anti-praxe
representada no debate; b) impor às instituições universitárias um ambiente
civilizado, anti-competitivo, anti-corrupção, anti-legalista, democrático,
preocupado com a prevenção da violência, em particular de género. Ambos os
raciocínios podem e devem articular-se. Criar um movimento de cura para os
sobreviventes da praxe deve saber mobilizá-los, juntamente com outros
sobreviventes, como os bolseiros da FCT ou os enfermeiros da linha Saúde 24
ou outros precários, para uma luta política mais geral, para uma sociedade
nova que se está a construir em Portugal. E que convinha que não continuasse
a ser protagonizada por sociedades secretas, corrupção mental e corrupção
venal.
2014-02-04
As praxes - universidade do abuso
A abertura de um debate
sobre as praxes e a canalização de informações e testemunhos sobre o
aconteceu na praia da Meco (onde morreram seis jovens) e sobre o que
aconteceu no passado (jovens assassinados cujos casos as instituições não
deram importância; jovens abusados cujas súplicas foram levadas para a
brincadeira e caladas, até que agora têm oportunidade de serem expostas) é
de uma enorme relevância social: vivemos numa sociedade abusadora dos seus
membros e estamos a tomar consciência disso, outra vez.
Da última vez, em Portugal,
foi com a Casa Pia. Também nesse caso a comunicação social (apesar de
amordaçada e sujeita a todas as vilezas) conduziu uma investigação que os
órgãos de polícia e judiciais se recusaram a fazer antes. Assim como os
educadores das crianças abandonadas e isoladas pela vida não só se tinham
recusado a fazer como estavam até habituados a pensar que os abusos eram
normais. Até porque alguns deles eram também praticantes de abusos sexuais
às crianças e jovens. Descobriu-se então o mestre Américo, pregador no
deserto durante anos, sem qualquer eco.
É, portanto, sintomático,
que a par do escândalo das praxes, a ministra da justiça venha revelar a sua
brutalidade ao propor para Portugal um programa de estímulo da
estigmatização social contra alegados pedófilos, em vez de combater os
abusos de poder – sejam sexuais de crianças, de facto os mais repugnantes,
sejam os outros.
Nada a esperar desta classe
política a não ser abusos de poder. Também ela entende serem tais abusos
normais. Como bem sabemos. A proposta de retomar o caso Casa Pia para propor
aos portugueses que se vinguem dos abusadores que sejam apanhados pela
justiça (que não funciona) é uma forma de distrair o ódio que a classe
política está a promover (contra si) juntos dos populares. Quando o que há a
fazer é transformar esse ódio (justificado) em forças positivas de
reconstrução de uma sociedade pervertida pela corrupção política e moral.
Propor aos portugueses uma
lei cuja avaliação negativa está feita é um acto de perversidade. É mais uma
proposta para abusar dos portugueses, num tema que o Estado ignorou enquanto
pode e actualmente trata mal (seria preciso começar por discutir e avaliar
os efeitos práticos da criminalização dos abusos sexuais).
Do mesmo modo, as praxes
comportam uma dimensão de segredo (entre os praxistas contra os praxados,
para lhes fazerem medo mas, sobretudo, para abusar dos mais frágeis de entre
eles/elas), de alheamento das autoridades universitárias, de silenciamento
das vítimas, de estigmatização do saber, do trabalho intelectual e da
ciência, de cumplicidade da sociedade – que assiste e não sabe como actuar
perante a estupidez dos “doutores”.
A ignorância sobre o que é
a violência – monopolizada pelo Estado, em defesa dos seus próprios segredos
– bem como a pragmática individualista dominante, são um dos pratos forte do
ensino. Basta assistir ao desespero das escolas para lidarem com a violência
das crianças (ignorando a violência da própria escola contra crianças
discriminadas pelas suas origens sociais), o recurso às polícias e até a
criminalização para “educar” os jovens. As praxes, prato forte das
universidades portuguesas, começa a perceber-se, é uma forma de
reconhecimento dos humilhados para reforçar a aceitação das humilhações e
para a sua reprodução.
O que as escolas e as
universidades ensinam é a tradição milenar da legitimidade de bater nas
mulheres (e nos escravos) por parte dos seus donos. Por isso os pretextos
sexuais foram banalizados (a começar na brejeirice e acabar no sadismo).
Aproveitar a fragilização de algumas pessoas em certas circunstâncias para
as humilhar de forma irreversível (está à vista pelos testemunhos os efeitos
a longo prazo dessas humilhações, junto de centenas de estudantes ao longo
dos últimos anos) e as apresentar, depois, como prova do poder dos
abusadores. As praxes ensinam os prazeres envolvidos nos abusos, para os
abusadores e para as vítimas. Integrados, como dizem, uns nos outros.
“Amigos” para o resto da vida, como a heroína ou o jogo ficam “amigos” dos
viciados para o resto da vida.
Uma política de prevenção
da violência para evitar abusos sexuais de crianças e mulheres,
manifestamente, não está ao alcance deste Estado abusador, dominado por uma
classe política alheada e corrupta. Também não está ao alcance de um sistema
judicial incapaz de servir as populações, tão empenhado que está em
servir-se da “economia”. Os reitores, gestores ao serviço da economia
política vigente e cúmplices, como a própria sociedade, dos abusadores,
foram denunciados pela reitoria da UTAD, cuja política pró-praxe solidária
conseguiu denunciar os abusos e dar a volta ao texto. Cabe aos movimentos
anti-praxe, aos movimentos feministas anti-violência, aos novíssimos
movimentos sociais que procuram reagir contra os abusos perpetrados pelo
Estado a pretexto da dívida, aliarem-se entre si e organizarem políticas
públicas de prevenção da violência, agindo na sua denúncia, na tomada de
consciência da sua ubiquidade, tomando a iniciativa de apoiar as pessoas
mais fragilizadas entre nós, em solidariedade, evitando criminalizações que
apenas desviam as energias.
2014-02-03
Fundamentalismo penal
Um dos maiores fracassos do
actual regime é, sem dúvida, o sistema judicial. Decretada oficialmente a
crise da justiça, faz quinze anos, não há melhorias e adivinham-se pioras. A
proposta de um registo público para pedófilos, avançada pela Ministra da
Justiça, retoma a campanha de pânico moral lançada há vinte anos nos países
anglófonos. Numa altura em que até a Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/Megan's_Law,
em 2014-01-30) já descobriu que, em termos práticos, a avaliação feita dos
resultados para o público e para as vítimas, em Nova Jérsia, foi zero.
Portanto, trata-se de uma caça às bruxas perversamente organizada em nome da
justiça e de um sistema político disfuncional.
O caso Casa Pia mostrou o
alheamento dos agentes da justiça da defesa das vítimas, a cumplicidade das
instituições do Estado com os abusadores – parece que faziam visitas guiadas
ao jardim zoológica das criancinhas. O desinteresse político em cuidar do
bem-estar das crianças à guarda do Estado revelou-se, também, noutras
instituições de acolhimento, públicas e privadas, tuteladas pelo Estado
(como de resto acontece com pessoas sem autonomia entregues a lares). Nas
prisões portuguesas – isso é menos conhecido – a esmagadora maioria dos
presos têm atrás de si uma história de abandono das famílias e de
experiências de frequência de instituições de acolhimento impróprias e
incapazes.
O público continua a
confundir pedofilia com abuso sexual de crianças, que estão uma para a outra
como o futebol escolar para o futebol profissional. Os pedófilos sentem
atracção sexual por crianças, mas ninguém nem nada os obriga a abusarem de
crianças. E muitos (não há quantificações conhecidas) não o fazem. Há
abusadores sexuais de crianças que são pedófilos. Mas muitos (novamente, não
conheço quantificações) não sentem atracção sexual por crianças: são apenas
abusadores sexuais, pelo prazer de exercer o poder, como os estudantes das
praxes que gostam de humilhar os “coloiros” e, sobretudo, as “caloiras”.
A pedofilia não é lepra,
nem cancro, nem sida. Também não é uma orientação sexual. Não é crime. Crime
é abusar de crianças, sexualmente e de outros modos, como o próprio Estado o
faz, quando permite que crianças passem fome e vivam como pobres, antes
sequer de terem possibilidade de tomar consciência do que é a vida (o que
também ocorre com pessoas de idade ou com necessidades especiais).
Dito isto, o principal para
combater o abuso sexual de crianças é conhecer o fenómeno (em vez de o
esconder e evitar, como tem sido feito depois do acalmar do caso Casa Pia) e
responsabilizar quem seja abusador, incluindo os seus cúmplices (como o
Estado), comprometendo-os a mudarem de campo, isto é, a serem os abusadores
e seus amigos a assumirem as despesas principais de mostrar à sociedade como
será possível acabar com tais práticas miseráveis. Pela lei de Megan, já
sabemos, não vamos lá.
Não precisamos de segredos
de justiça por detrás de listas de bodes expiatórios, para uso de políticas
desumanas, como as de abandono de crianças, idosos e todas as pessoas
fragilizadas à sua sorte, num ambiente competitivo. Precisamos de assumir
que são pessoas como nós que abusam de outras, não uma espécie à parte que
podemos extinguir. No caso do abuso sexual de crianças, geralmente são
abusadas em suas próprias casas, sobretudo quando os abusadores lhes são
familiares, e as ameaçam para se calarem sob pena de castigos. Como a
justiça faz com os abusadores, ao torná-los arguidos – sem resultados
práticos para a prevenção dos abusos de novas crianças.
Os pedófilos não são
monstros. Muitos deles nunca fizeram mal a ninguém. Nem todas as pessoas
organizam a sua vida em função das fantasias sexuais. Os abusadores sexuais
de crianças fazem coisas monstruosas. Não são os únicos seres humanos a
tratarem como lixo outros seres humanos. Por exemplo, nas mãos dos peritos
forenses e dos tribunais, as crianças abusadas e os seus curadores sofrem
revitimações repetidas, ao terem de recordar detalhadamente o que lhes
aconteceu, contando histórias inacreditáveis, sem que ninguém queira saber
do sofrimento causado – incluindo o afecto e a preocupação da vítima
relativamente ao destino do seu agressor (que pode ser o progenitor, amado
apesar de tudo).
Se os abusadores forem
recebidos como seres humanos, pode ser que mais alguns deles colaborem na
luta para prevenir mais abusos sexuais. Há quem acredite (http://home.iscte-iul.pt/~apad/justica%20transformativa),
por tem experiência de trabalho de terreno na prevenção dos abusos sexuais
de crianças, serem eles – os ex-abusadores activos na luta contra os abusos
actuais – a chave que permitirá encontrar a cura dessa epidemia, segundo o
mesmo princípio que funciona com as vacinas.
Se tiverem razão, quando a
justiça justiceira organiza a sua caça às bruxas, ao mesmo tempo, está a
tornar mais improvável a colaboração dos abusadores na luta contra os abusos
sexuais de crianças, mantendo ocultas as condições sociais que permitem que
os abusos continuem a acontecer. A Lei de Megan não ofereceu resultados
práticos. Mas pode muito bem ter sido uma ajuda para perpetuar as condições
sociais e políticas para a continuação dos abusos sexuais de crianças. Como
no combate ao uso das drogas, o fundamentalismo penal pode ser
contraproducente para a protecção das futuras vítimas.
2014-01-30
Entre a ciência e as praxes
Sou tanto pela abolição das
praxes como contra a sua proibição.
As praxes são um sintoma.
Há que compreender a doença social que as faz emergir e reforçarem-se.
Quando começaram, praticavam-se dentro das universidades e duravam poucas
semanas. Hoje foram expulsas das universidades e duram todo o ano. São um
contraponto expressivo à pasteurização instrumental das associações de
estudantes para capturar jotas para a política, treinando-os a organizar
bebedeiras colectivas – dentro das universidades. Qual dos sintomas, as
praxes ou as jotas, é pior?
Nos tempos revolucionários
em que fui estudante universitário nem se ouvia falar das praxes. Eram
coisas do passado, que os estudantes afectos ao regime fascista (na verdade,
estudantes que aceitavam a legitimidade política do Estado Novo) usavam para
fazer a tropa, a obediência cega e hierárquica, dentro da universidade. Eram
tempos em que o CDS, esperança política dos portugueses mais ligados ao
regime deposto, se proponha acompanhar a marcha para o socialismo. Hoje, ao
inverso, o Partido Comunista defende um capitalismo de mercado, contra os
monopólios. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades.
Os prazeres de ser igual a
todos os outros e indiferente às ideologias, à política, à solidariedade,
têm sido usados pelo regime actual com o objectivo de tornar Portugal numa
sociedade normal, indiferente aos destinos do país e do mundo. Quando era
jovem assisti repetidas vezes a gente a gritar “agarra que é ladrão!”, pois
qualquer transeunte suficientemente sólido ajudaria a parar a fuga para
esclarecer se se tratava de um meliante ou não, ali. Olhávamos para a
televisão, espantados, com a indiferença dos nova-iorquinos que passavam de
lado perante alguém caído no chão: não se atreviam a perguntar se precisava
da ajuda. Hoje em dia somos todos nova-iorquinos. Não foi um resultado que
não desejássemos.
Foi uma cultura que
transmitimos às novas gerações: trata da vidinha, que os nossos políticos
tratam da nossa e da deles, à sombra de uma Europa connosco, como a tia do
Brasil do tempo da comédia do cinema português. Transmitimos isso através
das escolas e das universidades. Nomeadamente através da luta para dividir
os educadores (assoberbados de trabalho, tempos de deslocação para o
trabalho e burocracias) dos professores (postos a correr o país, numa
instabilidade provocada, sujeitos a espartilhos programáticos e à
impossibilidade prática de cumprirem com os requisitos da profissão, como
ensinados nos estágios, em particular no que tange ao acompanhamento das
vidas comunitárias dos alunos e a experiência da democracia). Através da
subordinação da investigação científica a projectos orientados
politicamente, por gestores científicos organizados pelo Estado. Através da
esterilização da reacção das crianças e dos jovens à injustiça social e à
incoerência das ideias: os estudantes de sociologia dizem-me, a sério, que
os pobres são perigosos e a causa da pobreza é não saberem poupar. Os
estudantes de economia aceitam que as técnicas de gestão são uma ciência,
sobretudo no que tange ao despedimento de pessoal para emagrecimento das
organizações.
Não é, evidentemente, um
problema exclusivamente português. A nossa vacina anti-totalitária ainda
parece ter efeitos no espectro partidário: mas a dos húngaros, dos gregos,
dos franceses ou estava estragada ou já está fora de validade. A política de
convergência europeia, sabemo-lo hoje, era converseta de ocasião, para
satisfazer os vendedores dos produtos europeus em mercados controlados. Na
primeira crise, a austeridade selectiva rouba ao Sul para dar ao Norte,
segundo um sistema colonial já muito experimentado. E tal como os povos
colonizados, os nossos dirigentes estão encantados com a sua vidinha de
exploração dos compatriotas, enquanto estes cumprem a praxe. Chateados, é
verdade. Mas incrédulos como o sistema tão bonito que os dispensava de
pensar na vida colectiva pode estar a funcionar contra si, continuam a fazer
o costume, esperançados na volta da tia rica.
É preciso deixar claro: só
um povo crítico e informado é soberano. A prática nas praxes (e das jotas de
todas as idades), bem como a dificuldade em criticá-las, são sintomas do
mesmo mal que leva as reitorias a sentirem-se mais preocupadas em lidar com
as praxes do que com a destruição da ciência levada a cabo por este governo.
2014-01-30
A travessia do oceano
O principal problema epistemológico é o de capacitar o pensamento para
aceitar a diversidade dialéctica, a instabilidade, como parte da natureza
humana e não apenas como uma característica do cosmos. É preciso enfrentar o
tabu axial de necessitarmos de algo exterior, como um Deus ou um Estado,
para assegurar a legitimidade da nossa própria existência. Cada sociedade
deve ser capaz de assegurar essa legitimidade a todos e cada um dos seus
seres humanos, para o que precisa de se assegurar que nenhuma outra
sociedade estará em condições de aproveitar da fraqueza do desarmamento
bélico que tal política implica.
Uma das grandes lutas cognitivas tem sido a de ultrapassar a tensão/medo
associada à morte e ao genocídio. As identidades forjam-se na referência
dogmatizada a situações de alto risco que foram ultrapassadas e que devem
ser a fonte de fé na continuidade da nossa existência, sistematicamente
pensadas em contraste com o destino dos derrotados, não falados, tabu, de
cuja existência se deve perder a memória, reforçando a perda dos genes, por
terem sido ultrapassados pela evolução. (As autoridades pretenderem, desde
sempre, libertar-se da “lei da morte” através de monumentos, sepulturas e da
história dos grandes homens – sim, praticamente só homens).
As lutas pela memória e pela identidade dos genocidas são, naturalmente,
lutas pela identidade dos herdeiros dessa memórias – sempre naturalmente
selecionadas para transformar os genocidas em heróis – contrastantes com as
experiências das vítimas e produtoras de segredos sociais capazes de
credibilizar as memórias históricas.
O exemplo do povo judeu, cuja identidade se afirma actualmente na Palestina,
é um caso evidente de luta pela memória, em nome da memória, com resultados
genocidas, apesar de ter começado por ser uma tentativa de recuperar para as
vítimas do Holocausto uma identidade frustrada. O ciclo genocida não foi
interrompido – foi alargado. No caso dos negros assimilados em Portugal (10%
dos lisboetas no século XVI eram de origem africana recente) não ficou
identidade conhecida – no Alentejo fala-se dos negros do Sado, como exemplo
dessa assimilação radical. Nos EUA, ao contrário, a identidade
afro-americana emergiu do grande número dos escravos como das lutas de
emancipação que foram capaz de organizar, resgatando – em parte – a memória
de uma identidade de restos de povos alvo de genocídio amalgamados nas
plantações, dependentes, para comunicarem entre si, dos instrumentos
cognitivos dos esclavagistas que a todos comandam e a todos oprimem.
A fragilização ou epistemicídio dos povos originários, pelo menos no
contexto norte-americano (isto é, ainda que os povos africanos de origem dos
escravos possam ter continuado a existir), levou-os a uma orfandade
identitária que era parte importante da condição escrava (e que faz a
diferença para com os índios, que, mesmo brutalizados, se mantêm nas suas
terras, capazes de reconstruir as suas redes sociais, mesmo depois do
genocídio, como acontece quando reclamam as suas terras que lhes foram
roubadas pelos colonizadores). Compreende-se melhor, assim, os movimentos de
identificação dos negros com tradições intelectuais não africanas mas
globais, como o islamismo ou o comunismo, capazes de lhes oferecerem uma
plataforma de perenidade identitária anti-capitalista, contra a exploração,
capaz de estabilizar a tensão/medo que a ausência de identidade
naturalmente, necessariamente, provoca.
O que precisamos descobrir é o modo como ultrapassar a tensão/medo
identitário sem recorrer, por nossa vez, a práticas genocidas para esse fim.
Do comunismo não se pode aproveitar nem o materialismo nem o determinismo
histórico, actualmente desacreditados pelas críticas ao positivismo e ao
progresso, decorrentes da experiência histórica recente. Pode aproveitar-se
a dialéctica, como a matemática sempre se aproveita, mesmo quando os
cálculos estão errados. Neste cruzamento da civilização a espiritualidade,
sobretudo a não organizada, em contraponto com o materialismo, emerge como
uma potência pacificadora capaz de produzir identidades individuais
susceptíveis de serem o sustentáculo das formas de transformação pessoal de
que precisamos, cada um no seu ritmo e nos seus contextos. E o progresso ou
desenvolvimento, claro, cada vez é mais evidente ser um beco sem saída,
ecológico e social.
Perante a necessidade de diversificação epistémica – respeito pela
diversidade de modos de viver – há que aproveitar as potencialidades de
criação de identidades de base individual. Em vez de esperarmos por um novo
Marx unificador de todas as lutas globais, devemos aceitar que as lutas
contra qualquer injustiça são legítimas, e merecem a nossa solidariedade, na
condição de serem capazes de evitar a síndrome genocida. Esse, sim, deve ser
combatido por todos os aliados da transformação que eu aqui proponho. Mas
tal combate deve ser feito na condição de, ainda assim, não se usar a
síndrome genocida a pretexto de acabar com a sindrome: isto é, teremos de
nos dar ao trabalho prioritário de seduzir os que não estão em condições de
resistir à síndrome genocida para que possam recuperar para uma condição
humana nova, livre do genocídio identitário, a que afinal todos teremos que
chegar um dia. Assim o espero. Como escreve Alberto Acosta (2013) El Buén
Vivir - Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos,
Barcelona, Icaria&Antrazyt, há epistemologías, como a dos indios dos Andes,
que dão prioridade à harmonização (entre as pessoas e a natureza, entre os
diferentes elementos da natureza e entre as pessoas) em vez da luta (para o
que há que aprender a lutar).
Como disse Ruth W. Gilmore, trata-se de uma democracia abolicionista (gostei
de ouvir, obrigado) em troca da actual democracia representativa. Trata-se
de aprender a capitalizar o poder que emerge dos conflitos para capacitar as
pessoas directamente envolvidas, em vez de exportar esse poder para
instituições, nomeadamente através dos tribunais criminais, mas também,
claro, através das empresas ou dos organismos privados ou de Estado.
Trata-se também, ao contrário da ideia de Fidel de Castro sobre o barco de
escravos que irá contra o iceberg a menos que a revolta ponha alguns dos
revoltosos ao leme, de ser capaz de acreditar que o barco se pode
transformar num submarino ou num avião ou será possível derreter o iceberg
e, sobretudo, construir um poder novo, com lemes suficientes para todos
poderem ter poder, anti-genocida e anti-securitário mas igualmente eficaz na
dispersão da tensão/medo identitária natural nas pessoas, para que seja
possível conviver em diversidade e em paz.
2014-01-19 - para exercício
de aplicação,
notícia de S.Paulo
Atenas 5 anos depois
Em Atenas o
que senti, comprando com a minha outra estadia em 2009, foi uma normalidade
nas ruas (do centro) embora com mais policiamento e um bloqueio do acesso ao
parlamento com uma fileira de grades policiais – apenas abertas para
assistir ao render dos dois guardas que velam o corpo do soldado
desconhecido. Pareceu-me também uma presença mais discreta dos imigrantes a
vender nas ruas – confirmada pela informação do ataque à corrupção que está
a ser conduzida pelo governo, neste caso contra a contrafacção e a economia
paralela. Vê-se também muitas lojas fechadas e aconteceu que num jardim um
homem passeava um cão muito simpático – em Atenas os cães e os gatos
(gordos) são muito dados e sociáveis, parecendo transmitir o espírito
democrático e sociável do povo. Perguntou-nos de onde erámos (metem conversa
com toda a naturalidade e afabilidade) e explicou-nos (apesar de não ter
ideia de Portugal – conhecia era Barcelona e províncias espanholas) estar
desempregado há dois anos, depois de ter perdido um negócio de 200 mil euros
(ar condicionado). Aparentava bom aspecto e nada depressivo. Mas apreensivo,
evidentemente.
Tive
oportunidade de falar com dois colegas, uma criminólogo de direita e um
politólogo institucionalista (ele entende que a Grécia não tem muita
escolha, para ser um país melhor, do que manter a aliança com a EU, face à
situação entre os Balcãs e a Turquia ou, do outro lado do mar, o Egipto e
Palestina).
A
criminóloga explicou-me que a questão dos imigrantes na Grécia está minada
pelos anti-fascistas que acusam todos os que apontam o problema de serem
racistas. Mostrou como ruas inteiras, todas as lojas estão na posse de
estrangeiros, sobretudo paquistaneses, e acusa-os de as usarem com fachada
para actividades ilícitas (economia paralela ou crimes, não especificou).
Pareceu-me haver uma distorção na sua conversa, talvez demasiado confusa
entre crime e imigração, talvez devido ao facto do partido da Aurora Dourada
ter visto seis dos seus parlamentares presos recentemente. Os dois primeiros
por associação a um homicídio de um imigrante e outros quatro por associação
criminosa. Mas ela não se referiu à situação política nem a esta situação em
particular. Mostrou-se sobretudo preocupada com o terrorismo de estrema
esquerda que disse ser desculpado por muitos colegas universitários e
jornalistas e apoiado por activistas. Culpa o “sistema” pelo encobrimento da
situação, por interesses conspirativos, que não foi capaz de explicar como
funcionam.
Não falou
da situação calamitosa nas prisões – reconhecida pelo governo, que procura
soluções práticas para responder à necessidade de prestigiar o sistema
prisional, à medida que ele está no centro de debates políticos (os
parlamentares da Aurora Dourada ocupam uma ala só para eles na prisão de
mulheres de Atenas e as mulheres acumulam-se em sobrelotação (24 num espaço
de 40 metros quadrados) na única ala usada; um ex-terrorista escapou da
cadeia de homens recentemente. O governo respondeu com a construção de uma
cadeia de alta segurança para os ex-terroristas. E estes organizaram-se para
contestar essa medida. Nas ruas, entretanto, as bombas junto de bancos e
instituições estatais fazem-se ouvir, vindas destes sectores políticos, com
pouco risco de acidentes pessoais mas inquietantes, claro). A confusão nas
cadeias pode ser mostrada pelo episódio internacionalmente conhecido do
helicóptero que poisou por duas vezes na cadeia para levar um preso
“importante”, de foro criminal. Agora puseram em cima da prisão arame
farpado para dissuadir o poiso de helicópteros. Não se falou de haver fome
nas prisões, talvez por haver a possibilidade de entrada de alimentação do
exterior, por parte das famílias.
O
politólogo foi mais ponderado na sua apreciação da situação, nem sequer
mencionando – a não ser a meu pedido – as situações que acabamos de referir.
O problema dele é o centrão e as posições políticas de referência: a) tudo
está a melhorar bastante (as receitas estão a aumentar, porque quem não
pagava impostos – os exemplos que deu foi de profissões liberais – passaram
a pagar – outro exemplo foi a repressão do trabalho não declarado, que levou
para o sistema muitos trabalhadores antes na economia paralela e a luta da
polícia contra o comércio de rua, por pressão dos pequenos lojistas em tempo
de crise; falou também do ataque aos custos dos medicamentos). É a troika e
o governo que defendem esta posição e que 2014 será o ano da recuperação; b)
Para outros 27% de desemprego já destruiu muito do tecido social e será
necessário mudar de política, nomeadamente recuperar lentamente os salários,
que é o discurso de oposição, liderado pelo Syrisa. Ele próprio não vê com
clareza o que se está a passar efectivamente, porque não há dados fiáveis
sobre a actual situação altamente volúvel. Mas parece-lhe claro que a
sociedade grega, através das suas redes familiares intensas de entreajuda,
conseguiu proteger-se da miséria – embora haja mais pobreza e gente sem
tecto, não acredita que sejam tantos como os 30 mil que a oposição anuncia.
Como em Portugal, parece haver uma expectativa sobre esta nova
“recuperação”, sendo certo que a desconfiança perante as boas intenções dos
políticos nacionais e europeus está abalada definitivamente.
Do ponto de
vista político há a assinalar a construção de um muro na Bulgária e na
Grécia, nas fronteiras com a Turquia, para atacar o fluxo de Afegãos,
Paquistaneses, Somalis e outros migrantes da África subsariana que utilizam
os canais proporcionados pelos traficantes de pessoas para entrar na Europa.
Aparentemente conseguiu estancar os movimentos, até porque a UE e o Frontex
acordaram com a Turquia de modo a este país reprimir os tráficos de pessoas
que existia na zona.
Do ponto de
vista eleitoral prevê uma vitória clara do Syrisa nas Europeias, da Direita
em segundo lugar e da Aurora Dourada em terceiro, sendo o PASOK relegado
para pequeno partido, eventualmente atrás do PC, da Esquerda (não me lembro
da designação correcta) ou do partido dos independentes (direita
nacionalista, foi assim como o colega os classificou), sendo estes últimos
os naturais aliados do Syrisa. Ambos são europeístas e contra as políticas
de austeridade e da intervenção estrangeira na condução da política
nacional. Este pequeno partido seria caracterizado socialmente por ser
apoiado por gente qualificada ao serviço do estado e das empresas (talvez
inquietados pela desqualificação das suas qualificações). A este respeito
corre a ideia da fuga de profissionais altamente qualificados para fora da
Grécia, mas a primeira colega levou a sério essa informação e o segundo
colega – à falta de dados – acha que pode ser mais uma impressão do que uma
realidade, porque a crise também atinge o norte da Europa e não há assim
tantos lugares para posições altamente qualificadas quanto isso.
Na
universidade, espera-se pela lista de despregados anunciada pelo governo
para breve e os profs já perderam 40% do salário.
2014-01-17
Guerra política e científica no ISCTE
Os jornais, como ocorre frequentemente, cedem
à versão normalizada de observar o que se passa. Chamam-lhe guerra jurídica
nas eleições para a Reitoria do ISCTE e esperam poder colher um vencedor,
após a próxima normalização do poder institucional, ignorando o que se
passa.
Mais grave ainda é os próprios isctecas
estarem na situação dos jornais e dos jornalistas. E contra isso me sentei a
escrever estas linhas.
“Quem é ele?” perguntarão os que preferem
jogos de xadrez a apre(e)nder e aprofundar ideias susceptíveis de conduzirem
moral, eficaz e harmoniosamente a vida de cada um e de todos. Não posso
evitar responder: sou iscteca desde 1980, do lado da sociologia. Do lado dos
que não alinham com sindicatos de voto. E que, por isso, têm acesso limitado
aos recursos imateriais da universidade – como, por exemplo, o estímulo
organizado para ajudar a desenvolver projectos científicos. Nada menos e
nada mais do que isso: alguém parcial que vive o ISCTE como a sua identidade
profissional, e a quem o Reitor pediu para evitar usar o nome da instituição
que dirige junto do seu nome pessoal. (O que não deixa de ser uma honra para
mim, admitir que o meu nome pode ofuscar o de uma universidade inteira).
Do lado de onde vejo o problema e do ponto de
vista em que me coloco ficou claro na campanha para a transformação em
fundação-universidade (no tempo do governo anterior) que se tratava a) de
politizar a gestão do ISCTE, pois os partidos em Portugal tem tido o
exclusivo da organização política – por razões legais e culturais – e porque
a sequência privilegiada da carreira universitária é servir os partidos; b)
de excluir os critérios científicos dos debates de gestão universitária –
burocratizando e disciplinando as cadeias de poder e, portanto, formalizando
juridicamente as estruturas de liderança do que até então eram meros
sindicatos de voto.
Podem dizer tratar-se de uma interpretação
“radical”, “catastrofista”, “negativa”. Conheço a conversa faz muitos anos.
Trata-se de reduzir o debate político (e científico) a questões de carácter
ou de ideologia das pessoas individualmente tomadas e, desse modo, iludir o
debate pela injecção de estigmas na corrente da ignara intrigalhada de
corredores. É um problema “pessoal” ou de “mau feitio”, do mesmo modo que os
abusos de poder são perdoados e escamoteados por os abusadores serem “gajos
porreiros” ou dos “nossos”. Impenetrável. Irrespirável.
Na verdade a questão pode ser reduzida a
coisas simples e claras: a campanha vencedora da eleição do Reitor
centrou-se clara e explicitamente na ideia de que a democracia na
organização das universidades era uma lógica espúria e que a democracia era
tão só aplicável às instituições políticas. A maioria dos docentes votou
“nisto”! E eu passei a ter necessidade de me distinguir de tal gente. Sim:
sou do ISCTE e do departamento de sociologia. Mas eu sou pela democracia
interna e pelo debate, sem os quais não há ciência. E o facto de os
“cientistas” terem aceitado a exclusão da democracia e tardarem tanto a
notar a falta de debate é mau sinal para a Ciência.
As contradições jurídicas são a forma através
da qual a ciência está a ser torturada pela normalização política, neste
caso no ISCTE. O que pode bem ser um espelho do País. Dirigentes abjectos
seguidos por gentes amorfas. O que é lamentável quando o que era preciso
para o nosso bem-estar e das próximas gerações era tudo o contrário.
Diz-se – e eu não concordo – que a política
está dominada pelos interesses financeiros. Neste caso concreto é a
universidade que transida, sem dúvida, pelo desrespeito dos contratos com o
Estado (o que não é novidade – desde que me lembro, sempre foi assim nas
relações do Estado com as Universidades, com excepção do consulado de
Mariano Gago), cede nitidamente à politiquice. Arriscando o suicídio, como
bem dizem os contestatários do reitor, dada a fragilidade moral de toda a
situação em Portugal e, agora também, do ISCTE. Portanto, quem é o suicida?
O reitor agarrado ao poder? Os seus ex-amigos na campanha contra a
democracia interna e actuais detratores? Ou ambos?
Na minha perspectiva, o suicídio do ISCTE
começou com as práticas de sindicatos de voto e de seguidismo científico –
próprio de copistas e da escolástica – que reduziu o debate político e
científico no ISCTE a lutas pelos poderes fácticos, no âmbito de uma elite
auto-iluminada e controleira. O episódio da eleição do reitor é apenas a
ponta do iceberg.
O ISCTE sempre viveu da cumplicidade
contraditória entre a lógica pragmática e capitalista, protagonizada pela
gestão, e a lógica científica e humanista, protagonizada pela sociologia,
aliada a uma miríade de outras subdisciplinas, mais ou menos exóticas por
não serem de fácil germinação nos meios universitários convencionais –
sujeitos a forte processo de normalização que tem vingado nas últimas
décadas. Estupidamente, os jovens turcos, como alguém lhes chamou,
imaginando-se mais inteligentes que todos pelo facto de serem líderes
carismáticos de sindicatos de voto, animados com a oportunidade oferecida
pelo ministro Gago de tomarem o poder, pensaram fazer engenharia social:
transformar o ISCTE numa universidade de investigação competitiva a nível
mundial sob a sua direcção. Convencidos de terem sido eles a fazer o
prestígio da instituição, entenderam poder dispensar os colegas de quem não
gostam ou de quem discordam e perspectivar uma instituição purificada.
(Qualquer gestor de recursos humanos diria ser tal intenção complicada de
realizar. Sobretudo num sector onde os recursos humanos são o maior dos
activos e o fruto a produzir tão impuro como o conhecimento).
Romper o velho equilíbrio tácito e destacar a
Escola de Gestão e a Escola de Sociologia como centros de interesses
próprios e contraditórios, ocasionalmente aliados para subjugar o resto do
ISCTE à luta de titãs gémeos bivitelinos, eis o erro político que irá
destruir o ISCTE. Central, nesta discussão, é a noção de
interdisciplinaridade. Para uns, é a possibilidade de os estudantes
passearem de área científica em área científica, de acordo com a lógica de
saberes à la carte própria de Bolonha – que é ideia predominante.
Para outros, interdisciplinaridade é o respeito dos investigadores e
docentes de cada área disciplinar pelos saberes, trabalhos e conhecimentos
de outras áreas, nomeadamente reclamando a necessidade de interacção
científica directa com especialistas nas áreas disciplinares relevantes para
o trabalho de cada investigador inter ou transdisciplinar.
O ISCTE sempre teve como referência
estratégica a sua potencial interdisciplinaridade. As críticas mais
contundentes das avaliações produzidas, nacionais e internacionais, sempre
foram a do alheamento entre as áreas disciplinares e subdisciplinares entre
si. Dentro do ISCTE, quanto mais fora do ISCTE.
Os males já vêm de trás. São políticos e
científicos. O facto de terem rebentado pelo lado jurídico só significa o
desprezo profundo da actual situação (do pais e do ISCTE) pela democracia e
pela colaboração entre disciplinas (profissionais ou universitárias), entre
as quais o direito. Todos sabemos o estado em que está a justiça em
Portugal…
2013-12-13
Nelson Mandela
Faleceu há poucos minutos
um dos maiores vultos morais e políticos da história recente que foi também
o prisioneiro número um na África de Sul e em todo o mundo. Vimo-lo sair da
cadeia para uma casa sob residência fixa e depois sair em liberdade para
oferecer o que ele sabia sobre isso ao povo que se constituiu em torno de
si. A minha homenagem ao homem. 2013-12-06
Tortura filosófica
José Sócrates, purificado
por um mestrado em Paris, aparece aos palavrões para vender o seu livro
sobre confiança, ao lado de Lula da Silva e Mário Soares. Todos membros da
esquerda possível (por azar, nos tempos que correm, aparentemente
impossível, a não ser em filosofia da treta).
Não li o livro, mas terei
que o ler em breve. Trata de tortura, o que calha no âmbito do meu estreito
campo de intervenção. Escrevo agora para registar o valor dos meus actuais
conhecimentos sobre o assunto e com base nas passagens da apresentação do
livro que ouvi na televisão. Sinto-me capaz de fazer a crítica do que está
escrito, sem perguntar em que dia da semana foram feitas as provas e sem
querer saber sob que primeiro-ministro a deputada Ana Gomes questionou o
governo de Portugal sobre a colaboração dada à CIA para transportar pessoas
para serem torturadas em prisões secretas na Europa.
A filosofia da tortura
falará da tortura feita sobre presos políticos, por distinção da outra feita
sobre presos sociais. É o que se chamará filosofia política da tortura. Isso
permite omitir a tortura praticada sob o governo Sócrates, em Portugal.
Apenas porque essa tortura não foi reconhecida oficialmente, como ocorreu
nos EUA. A tortura não reconhecida, nomeadamente aquela praticada
regularmente nas prisões norte-americanas ou portuguesas contra pessoas
previamente desqualificadas socialmente, essa tortura não é tortura. Pelo
menos do ponto de vista da filosofia política do Sócrates. Essa tortura não
é expressamente encomendada pelos políticos de serviço: é uma tortura que,
do ponto de vista da disciplina filosófica do autor, servirá apenas para
treinar e manter operacionais os torturadores para quando forem
politicamente necessários – tentação a que um político democrata deverá
resistir, para não concretizar o seu lado mais obscuro e maléfico, mesmo em
tempos extremados.
Politicar, na expressão
brasileira do Lula da Silva, será, em conclusão, a forma de recompor um
qualquer aldrabão num esquerdista a filosofar, elevando-se assim da plebe e
arrastando multidões agradecidas pelas prebendas democráticas distribuídas a
seu tempo – coisa que lhes faz falta nestes tempos de comunhão com o resto
da população nos dissabores da austeridade. Com Sócrates no poder, seriam
maiores as oportunidades para as duas salas dos seus muitos amigos de
passarem a ser eles – em vez dos da direita – a receberem os pagamentos
pelos serviços prestados na venda do país aos interesses do capitalismo.
Isso é que é a verdadeira tortura. Filosófica e de ciência política.
Interdisciplinar, portanto.
Será o livro lançado por
Sócrates capaz de me desmentir nalgum ponto? Se o for, pessoalmente retiro
todos os outros pontos, mesmo o que manifestamente são verdadeiros.Lx, 24
Outubro 2013
Ovo da serpente
Jornalistas credenciados
por serem ponderados e distanciados dos interesses em jogo têm escrito e
enviado para publicação – efectivamente realizada – textos a mencionar o
“fascismo” como palavra adequada ao comportamento induzido pelo governo. Nos
media, nas instituições sociais. Mais recentemente dou-me conta de
António Capucho a denunciar caça às bruxas não no PCP mas no PSD. De que é
militante de primeira água e primeira hora. Caça nomeadamente aos que
denunciaram práticas anti-democráticas levadas à prática e reiteradas no
partido – o mais “aberto” do espectro político português.
A abertura do partido é
histórica: no 16 de Abril ficou claro, para os apoiantes do regime fascista,
a noção de que seria preciso virar a casaca. Nenhum dos partidos de então,
incluindo os clandestinos e os mais radicais, estive imaculado quanto à
infiltração de PIDES (ou terá sido ao inverso?). Mas o PSD parecia ser o
preferido pela direita arrependida de ter apoiado quem perdia, na ocasião,
mas ainda assim direita saudosa dos tempos de normalidade
pré-revolucionária. (Ainda por estes dias o Salazar ganha concursos de
prestígio e popularidade; e é fácil ouvir quem o queira ressuscitar para
resolver a crise). Essa direita cobarde e dissimulada, pelos vistos, não se
desvaneceu. Pelo contrário: estará no poder no PSD e no governo. A acreditar
em jornalistas credenciados e em activistas bem conhecidos do PSD.
A democracia nunca soube
defender-se dos totalitarismos, como se usava dizer nos anos 80. Este
simulacro de democracia que temos ainda menos. Falta-lhe convicções e
tomates. Foram todos para as indústrias de bens transacionáveis.
Temos os jotas que
produzimos. Não são transacionáveis. São dispensáveis. Se para tal houver
coragem popular. Lx, 5 Out 2013
As prisões servem para ocultar a perversidade dos poderes
Por uma esquerda liberal dissidente – democracia, direito direito e
virilidade feminina
O estado da esquerda
portuguesa pode ser observado pelo manto pesado com que encobriu a expressão
do pico das mobilizações populares, ocorrido a 15 de Setembro de 2012 –
longe dos anseios populares. A mega manifestação ficou reconhecida
oficialmente como expressão genuína do povo. Até o ministro Gaspar
reconheceu. Nunca mais a esquerda voltou a olhar para tal acontecimento.
Trata-o como trata todos os outros: desvalorizando a acção política popular.
1.
A esquerda ou é democrática ou não
é de esquerda (é por isso que a esquerda está dividida: falta exigência de
democracia em Portugal, tanto no arco do poder, como do lado da esquerda
arredada do poder). Populista procura ser – está sempre disposta a fazer
unidade sem princípios, desde que seja sob as suas palavras de ordem.
Democrática é que não é: do lado da governabilidade, a esquerda faz o mesmo
que a direita; do lado do arco da resistência, a esquerda procura abafar
toda a liberdade de orientações políticas, abortando tanto quanto possa
qualquer desenvolvimento de alternativas reais de poder.
2.
O direito ou é a estruturação
institucional das garantias de possibilidade de lutar pacificamente,
argumentadamente, pela verdade e pela justiça; ou é o nome dado à violação
dos direitos humanos, a pretexto do qual são humilhados e aterrorizados os
que se atrevem a denunciar os abusos de poder: isso não é direito, mas é
muito praticado. Inclusive em Portugal.
3.
Face às actuais circunstâncias de
degradação da democracia e das instituições judiciais apenas a dissidência
política pode reclamar-se da esquerda liberal. Há que denunciar e romper com
os esforços desenvolvidos para levar o povo a marrar com a nova “muralha de
aço”, que são as instituições políticas em Portugal. Organização de marranço
conduzida pelas oposições, que estão por todo o lado: na Presidência da
República, no governo pelo CDS, no PSD em ruptura com o governo, no PS
Dupont do PSD Dupond e pelo BE e PCP, todos ciosos e cooperantes na
ocultação da revolta popular, porque ela não se exprime dentro das
instituições e pode ser escamoteada pelos meios de comunicação social,
paulatinamente substituídos pelas redes informáticas.
Dissidência significa
romper com a direita e com a esquerda deste regime. Significa defender
sistemas de promoção social do bem-estar e da igualdade viáveis, isto é, sem
privilégios de funcionários e de corporações. É preciso ter presente,
todavia que os inimigos principais são o capital global, corruptor e fora da
lei, a classe política corrompida, cujos privilégios urge parar, e os media
concentrados e aliados deste estado de coisas.
A via bélica será uma saída
catastrófica, e contra os interesses populares. Embora também seja a saída
mais provável. Só uma mobilização profissional dos grandes contingentes de
servidores dos serviços sociais – os empregados pelo estado e os
independentes das ONGs nacionais e internacionais – nomeadamente
professores, agentes de serviço social, pessoal de saúde, de forma autónoma,
isto é, organizando-se a partir dos recursos do estado para realizarem na
prática as funções sociais que o estado não quer cumprir e não vai querer
cumprir nos próximos anos. Tal mobilização para a transformação
anti-corporativa e solidária dos profissionais mais qualificados do país
deverá ser feita ao serviço das populações, servindo-as, como seria o
objectivo da contratação pública caso não se vive-se num estado corrompido.
Dissidência significa
associar a verdadeira oposição, de direita e de esquerda, a um espaço de
cooperação, solidariedade e organização com vista a um novo regime político,
respeitador e promotor da democracia, do direito, onde a esquerda liberal
possa ter um futuro como parte (que não é o caso do actual regime).
Uma das primeiras tarefas
da esquerda liberal será, pois, encontrar e promover, à direita,
interlocutores dissidentes autónomos apostados em defender a qualidade de
vida dos povos.
Precisa-se da coragem viril
para cuidar dos desorientados e desvalidos (que bem vistas as coisas, somos
todos nós, neste momento), colaborando na sua (nossa) auto-sustentação, em
liberdade.
2013-05-24
A discussão da constituição
pela sociedade civil deve ser organizada em função de um diagnóstico claro
sobre as razões pelas quais se sente uma tal necessidade neste momento
histórico, e não noutros momentos anteriores. Em particular para compreender
quais sejam os passos necessários para tornar consequente uma tal discussão.
Este texto é uma
contribuição para essa análise, de onde decorrem conclusões sobre as
alterações constitucionais a propor e o tipo de processo político em que
tais alterações poderão e deverão ser consideradas.
Iremos concluir pela
necessidade da emergência de um processo constituinte, capaz de mobilizar e
canalizar potencialidades democráticas das forças transformadores da
sociedade portuguesa ante os riscos de subdesenvolvimento, no quadro de um
sistema político fantoche sob protectorado, apoiado por forças imperiais que
tomaram conta da União Europeia e pelos seus aliados locais, de que se
destacam os partidos políticos e a hierarquia da Igreja Católica, e por
reacções complacentes, à direita e à esquerda, para com práticas
anti-democráticas (o que não augura nada de bom para o futuro). A prioridade
deve ser evitar a degradação rápida do respeito dos direitos humanos já
identificada em Portugal pelo Conselho da Europa, sobretudo no caso das
crianças, dos velhos, das famílias monoparentais e dos não nacionais pobres.
Bem como a crescente tendência para o recurso à violência como modo de vida
e de expressão da frustração política.
CONTINUA
1-1-2013
À espera do cataclismo político anunciado
A tarefa principal, parece-me a mim, é
compreender que a questão não é o governo. É uma questão de regime e
das suas parcerias internacionais que faz de Portugal um
protectorado que apenas recentemente se revelou publicamente mas que
foi construído paulatinamente durante as últimas décadas.
A forma actual de combater o estado de
coisas, aquela que está à nossa mão (relativamente, claro) é denunciar a
perversidade social do regime e dos nossos hábitos políticos de "deixar
andar" e (pior do que isso) de procurar compromissos com as partes mais
limpas do regime, como se não fosse o povo o soberano de jure (sim, é
preciso sacudir com determinação o fascismo quer ficou em nós, em
particular mas não só nos sistemas judiciais).
Para mim é tempo de atacar o Presidente que não
está a cumprir a sua função única de garante do regular funcionamento das
instituições - é ele, para começar - quem tem de sair. Pois está, para além
do mais, a pôr em evidente risco a integridade física e existencial do povo
(pela fome e pela disposição manifesta do Estado em recorrer a meios
violentos e fraudulentos para conter as resistências contra a miséria
punitiva anunciada).26/12/2012
em Às Claras, Público
Perante a greve geral
Caros colegas e amigos,
Peço
desculpa por vos interpelar mas sinto necessidade de me explicar e de vos
explicar as razões do meu mal-estar neste dia de greve geral, para os
efeitos que cada um entender por bem. Não aderi ao apelo para uma greve
geral.
Também eu
gostaria de que um governo qualquer me devolvesse os salários surripiados e
confirmasse que afinal os contratos ainda valem em Portugal e na Europa dos
dias de hoje. Mas isso não vai acontecer, pois não? Tenho todo o gosto em
ombrear com os trabalhadores em luta pelos seus direitos e com aqueles que
já não tem direitos. Mas não será isso que posso fazer nem na escola onde
dou aulas (e que reclama dos seus alunos cada vez mais propinas e cada vez
menos desejo de aprender) nem nas manifestações de rua, onde a separação
entre dois tipos de trabalhadores é evidente – embora tenha a esperança de
que todos se possam encontrar um dia nalgum ponto.
Não aderi à
última greve geral e não aderi a esta. Não significa que isso tenha alguma
importância, que esteja contra a greve ou contra todas as greves. Significa
que nem a minha condição, nem a minha consciência, nem os meus desejos se
adaptam ao abandono da actividade. E quero discutir isso com quem tenha
disponibilidade e interesse em fazer essa discussão. Não aceito mais (ou
melhor, cada vez aceito menos) enfileirar com desejos de exteriorização que
escondem medos de questionar o que se passa mal no interior (de cada um de
nós, das instituições onde trabalhamos e também do regime político que aqui
nos trouxe).
Não sei se
essa discussão vos interessa e por isso não a iniciarei aqui. Limitar-me-ei
a pedir a vossa paciência por mais uns segundos apenas para me assegurar de
que o meu sentimento e pensamento podem passar.
Um
professor universitário com vínculo firme ao Estado, como é o meu caso, deve
ser capaz de utilizar a sua liberdade legalmente assegurada para proteger a
liberdade dos outros (e a sua). Não quando há greve, mas quotidianamente. Se
for esse o caso, fazer greve significa suspender uma actividade livre –
junto dos estudantes ou em processos de investigação – útil à sociedade. (O
mesmo não diria se tivesse responsabilidades de gestão na universidade:
teria de ponderar).
Na prática,
corrijam-me se estou enganado, o regime jurídico em vigor obriga – no caso
das actividades programadas pela universidade – a que elas sejam
transferidas para outros dias (o que significa na prática um boicote ao
princípio da greve e à possibilidade de os alunos fazerem greve). O que
significa que a primeira condição para fazer greve neste sector deveria ser
fazer reconhecer a greve como uma perda de função da universidade, o que não
será o caso actualmente, se estou a ver bem a coisa.
O
importante, para mim, é isto: se o meu trabalho está sob o meu controlo e
para cumprir objectivos cívicos (sobretudo no aspecto cognitivo, já se vê) e
se os meus adversários me impedem de trabalhar o mais que podem –
precisamente por entenderem que aquilo que ensino e divulgo lhes é
inconveniente de alguma maneira – porque razão haveria eu de fazer greve?
Por
solidariedade, poderiam responder. Mas solidariedade em abstracto não me
parece boa ideia. Parece-me mesmo uma péssima ideia. A solidariedade não é
nem caridade (para com os que sofrem mais do que nós) nem uma justificação
para estarmos quentinhos encostados uns aos outros, como judeus a caminho
dos campos sem acreditar no que lhes está a acontecer. Numa escola que votou
“democraticamente” o fim da democracia interna, com a experiência que tenho
de trabalho sindical universitário sem vislumbre de respeito nem pelas
pessoas nem pelos associados nem pelos estatutos, num ambiente universitário
persecutório e num país que aceitou recorrentemente a democracia da mentira
e da vigarice política, explicitamente tornada ritual desde o discurso da
tanga, a solidariedade abstracta não chega. Ou melhor, parece ser apreciada
por comentadores do regime e até banqueiros que chamam a atenção para o
comportamento exemplar de quem organiza estas grandes manifestações
populares – umas vezes nas ruas, outras vezes em casa.
Para
encurtar razões: estou interessado em intervir de forma útil também na
universidade, nos problemas internos da universidade – sim, porque as coisas
hão-de mudar: dificilmente permanecerão na mesma. Para chamar os bois pelos
nomes e não para cumprir programas corporativos. Dois exemplos simples e
complicados, para começar: a) não é aceitável aulas de 3 horas nas
licenciaturas, como se começou a fazer o ano passado por sistema, porque
isso tem custos pedagógicos enormes apenas para facilitar o trabalho de
planeamento das aulas e para benefício da agenda dos docentes. Alinhar nisso
sem o denunciar é ser cúmplice de uma degradação das aprendizagens que não é
benéfica para ninguém. Serve apenas a comodidade dos dirigentes e gestores
do momento; b) não é admissível o controlo administrativo sobre a avaliação
académica e profissional dos docentes, como está a acontecer, e vai ser mais
claro em breve, utilizando a administração para mexer cordelinhos nos
concursos e nas distribuições de serviço e na mobilização ou desmobilização
de competências em função dos interesses dos
apparatchiks.
Ambos estes
assuntos podem ser tratados com muita evidência e constituir uma forma de
mobilização conjunta de docentes e discentes. Escola pública é bem mas não é
suficiente. Ela terá que ser de alta qualidade. Se quisermos nós próprios,
cada um de nós, poder aspirar a tal.
O
descarrilar da situação geral (e tb na nossa escola) parece-me evidente (ou
será a degradação do meu olhar a ver-se ao espelho?). Vai durar anos até a
normalidade voltar. Recordo que da última vez que a normalidade voltou eu
preferiria que ela não tivesse voltado. Mas isso são águas passadas. Não sei
se já é altura de tomarmos em mãos a democracia que nos falta. Mas se for o
tempo, eu estarei disponível. Para receber apelos de adesão a rituais de
manutenção do status quo, ainda que seja contra um perigoso governo
de direita a soldo do estrangeiro, não me apetece.
14-11-2011
Não pode ensinar quem não sabe aprender
No dia dos defuntos, D. José Policarpo insistiu numa versão do “deixem-nos
trabalhar” usado por Cavaco quando foi primeiro-ministro. Pensávamos que a
questão religiosa estaria enterrada – e os vários comentadores, de dentro e
de fora da Igreja, lá se foram esforçando por interpretar da melhor maneira
as palavras do Patriarca, como se ele não se soubesse exprimir por si
próprio – mas D. Policarpo decidiu retomar caminhos seguidos por quem está
defunto. Quem foi incapaz de defender o Bispo do Porto do exílio imposto por
Salazar – precisamente por se ter manifestado, inutilmente segundo dirá o
actual Patriarca, se usar o mesmo critério para avaliar as manifestações.
Foi incapaz de defender os activistas católicos da Capela do Rato, que
também não foram eles quem formou o MFA.
Aliás, se D Policarpo fosse efectivamente contra as manifestações, o melhor
que faria para ser coerente seria estar calado – como de resto está em
alturas que alguns católicos prefeririam ouvi-lo, por exemplo para defender
os direitos humanos onde possam estar a ser violados, sem que a justiça dos
homens atente nisso. D. Policarpo, como deixou bem claro, sabe da utilidade
das manifestações mais simples, como o uso da palavra por Sua Iminência.
Usa-a para definir os seus inimigos, como se esses não fossem filhos de Deus
(só porque presume que não vão a Fátima?).
Portugal precisa de ajuda espiritual, sobretudo num momento tão grave da
vida nacional como este que se vive. Mas são dispensáveis as apologias do
sectarismo. É mau sinal – sobretudo para a Igreja – ser da boca do Patriarca
de onde sai a primeira pedra.
A César o que é de César, senhor Patriarca. Se quiser falar de democracia,
seria melhor primeiro que a praticasse, como alto dirigente que é. Segundo
que estudasse o que se diz que é, hoje, a democracia. Porque essa ideia de
que a democracia é votar e não pensar mais nisso é de um cábula. Como se a
perspectiva de estarmos a ser conduzidos para um empobrecimento definitivo
por instituições banhadas por um lodaçal de corrupção não merecesse aos
brandos costumes nenhum protesto.
Já reparou que a força do Estado é esmagadora com os fracos (veja os índices
pré-modernos de participação cívica e política em Portugal) e mais leve que
uma pena consigo e com todas as pessoas e entidades importantes? A Igreja e
o senhor devem saber ao lado de quem vão estar num tempo de profundos
litígios. A posição que está a tomar é para dentro do seu rebanho? Estará
ele a tresmalhar-se? Ou é a maneira que encontrou para agradecer as benesses
recebidas na Igreja deste governo de má memória – ainda em vida?
Não, senhor Patriarca! Como bem sabe, as manifestações populares e
sectoriais ou de minorias são práticas eminentemente democráticas. Mesmo em
ditadura, onde são proibidas, elas não deixam de se realizar, por serem uma
necessidade existencial para qualquer sociedade. Nos países onde as
manifestações católicas são proibidas, os católicos não deixam de se
manifestar, como de resto é natural que aconteça com os partidários de
qualquer fé, seja ela religiosa ou política. Define a democracia o
reconhecimento do direito à auto-determinação das pessoas. Quer demarcar-se
dessa definição? Define o anti-dogmatismo a capacidade de suspender a
persecução dos interesses próprios, a vidinha como se usa dizer, e deixar-se
surpreender com a persistente unidade, verdadeiramente enigmática, de quem
se vem organizando para se manifestar, por exemplo no 12 de Março de 2011 e
no 15 de Setembro último.
A democracia reduzida ao voto, de que o senhor fala, é extremamente
perigosa, como o mostrou a eleição de Hitler. E insuficiente para a
distinguir de uma ditadura, como o mostrou Salazar, que também organizou
eleições.
2011-11-02
Separar águas e fazer a
barrela
Não sei se é possível
discutir pelo email. Diria que não. Mas é possível reconhecer a existência
de diferentes sensibilidades na abordagem ao crescente activismo na
sociedade portuguesa. Mais do que "descobrir coisas" (que é um trabalho que
nunca acaba) é sobretudo importante saber como trabalhar (ou não) em
conjunto, apesar das diferentes sensibilidades.
Tradicionalmente, em Portugal, reclama-se imenso por haver quem tome
posições de forma "brutal". Há até aquela frase "assim perdes toda a razão".
Quase 40 anos após a derrota da ditadura, a reacção censória do Estado Novo
contra os excessos de linguagem da Primeira República (ao tempo acompanhados
de bengaladas) mantém-se viva no subconsciente de muitos dos portugueses. A
ideia liberal de liberdade de expressão quem a defende? A bem dizer nem os
media nem os tribunais.
Como foi possível resistir tal tique em várias décadas de democracia?
Hoje é evidente que a democracia que aprendemos tem menos democracia do que
aquela que precisamos exactamente neste momento crítico. E se queremos
acompanhar o desejo de "Democracia Verdadeira!" teremos de lutar por ela.
Isto é enfrentar a bófia que nos quer impor limites em nome dos "gatunos",
mas enfrentar também os nossos próprios tiques autoritários inconscientes,
de que nos temos de desfazer se quisermos ter esperança de construir uma
democracia a seguir à queda anunciada do actual regime.
Compreendo o ressentimento de quem se voluntariou quanto à crítica de deriva
da mensagem da intervenção das pessoas da cultura na Praça de Espanha.
Pessoalmente achei a ideia boa e a jornada importante, pelo potencial de
mobilização dos criativos para o lado da revolta. Mas também compreendo as
críticas daqueles, como eu, que entendem que este regime não tem remédio
(estão todos envolvidos nos mesmos caldinhos de classe - a chamada classe
política - e com ela em cima não vamos longe, como se está a ver). O António
Costa tem um largo currículo de malvadezes, tb contra a cultura - como o
envio da polícia para despejar ilegalmente os Okupas de S. Lázaro, não há
muitas semanas. O homem foi ministro da justiça e da administração interna e
nunca reparou que não vivemos num estado de direito. Não é bom aliado para
mudar o regime. É um excelente e poderoso aliado para manter o regime e
adiar a possibilidade de democracia em Portugal.
Em resumo: há quem queira deitar abaixo o governo, substituindo-o por outro
(presidencial para uns, de esquerda para outros). E há quem lute por uma
democracia que deixou sequer de existir na imaginação do povo. Nesta fase da
vida portuguesa a confusão que se estabelece entre estas duas orientações é
grande. A ultrapassagem desta confusão é o fundamental das coisas que há a
descobrir actualmente.
Uma qualquer organização que se forme nesta convulsão social irá, por certo,
confrontar-se com esta alternativa. Não notar que ela existe não ajuda a
caminhar na direcção da democracia. Trabalharmos todos juntos - os que
querem juntar-se ao sistema e os que o querem substituir por outro - serve o
sistema, cuja inércia é grande. É, pois, natural que os gritos do parto da
sociedade nova que pode estar a surgir sejam desagradáveis. São mesmo
acusadores da nossa colaboração colectiva na farsa que agora nos caiu em
cima (todos sabíamos os descaminhos dos dinheiros europeus e não organizámos
nenhuma contestação moral a favor da racionalização e do controlo dos
dinheiros públicos. Como no tempo do fascismo, fora os lutadores
anti-fascistas, mal vistos pela sociedade de então, a generalidade dos
portugueses não levantou ondas). Tais gritos desagradáveis de esperança são
muito melhores do que os gritos de desespero que alimentam os fascismos por
essa Europa fora (Hungria, Grécia pelo menos). E também são melhores que os
queixumes contra os debates de ideias (nem sempre bem organizados ou
clarificadores).
Por mim, por razões de sanidade mental, auto-declarei-me, para consumo
próprio, dissidente deste regime faz uns meses. Sou do contra. A esquerda e
à direita. De cada vez que ouço gritos a favor de uma democratização radical
fico contente. Sei da dor que isso provoca naqueles que ainda esperam,
apesar das evidências, que tudo não tenha passado de um pesadelo e um dia
poderemos voltar àquilo que foi antes. É a dor do divórcio. Precisamente a
mesma. A dor das pessoas abusadas e violadas que amam os seus abusadores e
violadores. É verdade. Vamos ter que fazer o luto. Vamos ter que aprender a
sermos outras pessoas e a viver de outro modo, seja como membros de um povo
colonizado seja como membros de um povo revoltoso, em nome da sua nova
identidade (fascista ou, de preferência, democrática. Esta última, das duas,
é a única incompatível com a colonização).
Fingir que esta democracia ainda funciona, como faz o Cavaco, como fazem
todos partidos, dentro fora do parlamento, como faz a IAC e o CDA (às vezes
a CGTP parece colocar-se fora desta sensibilidade, quando ameaça que "ou vai
a bem ou vai a mal", mas sabendo o que sei imagino que isso seja apenas uma
forma de satisfazer a sensibilidade dos trabalhadores sindicalizados que já
perceberam que isto não pode durar muito mais) parece-me ser meter a cabeça
debaixo da areia e uma recusa por parte dessas organizações de assumirem a
defesa da democracia contra o sistema cleptocrático que nos domina. Mas o
polvo não se irá embora de livre vontade, nem com palmadinhas nas costas,
nem com eleições. Terá que ser identificado, apontado a dedo e substituído
por máquinas de luta contra isso que for identificado.
2012-10-21
Nova versão do MDP, mas para defesa de um regime caduco
Senti o anúncio do Congresso Democrático das Alternativas como uma
oportunidade de firmar aquilo que faz alguns meses me parece necessário: uma
afirmação de disponibilidade de pessoas capazes de conduzirem o povo
português para fora desta democracia decadente em nome de uma democracia em
devir, que assim poderia vir a emergir mais segura e rapidamente, logo que
fosse oportuno.
Não sou distraído e conheço algumas pessoas e práticas de organização bem
pouco democráticas à esquerda. O que não conheci foi outra oportunidade,
agora, numa ocasião de verdadeiro sufoco, de ver surgir uma esperança.
Lembro-me muito bem das recomendações das manifestações da revolução dos
cravos (“Nem fascismo, nem social fascismo”), mas entretanto muita água
passou por de baixo das pontes. Lembro-me também do ódio popular às
sociedades secretas, associadas à corrupção e à construção de uma classe
política lacaia do capital, conhecidas pelos nomes genéricos de Opus Dei e
Maçonaria, versões democráticas dos velhos fascismo e social-fascismo.
Não confio na cultura democrática muito vigarista, aldrabona e descarada
criada pelo regime decadente em que vivemos, e que a todos afecta. Mas
confio nas pessoas e na sua extraordinária capacidade de se recriarem, de se
transformarem, de se produzirem de novo em função de novas circunstâncias
(sem o que não haverá esperança). É o que se costuma dizer: somos uma
espécie inteligente. Por isso alguma coisa de extraordinário há-de ter de
acontecer para que a vida continue a ser possível de ser vivida e isso pode
acontecer a qualquer altura e com os actores mais insuspeitos.
Tomei a decisão de colaborar no congresso. Para onde enviei duas
contribuições, uma a título individual e outra subscrita em conjunto com
outros dois companheiros. Nenhuma foi publicada no lugar onde “todas” as
contribuições foram expostas.
Não gostei. Mas não me tenho em tanta consideração que tenha feito a minha
decisão de não participar no congresso ao vivo por causa disso. O que me
impediu de ir ao congresso para que me inscrevera foi a mentira descarada
sobre a qual tudo estava montado. Isso tornou-se claro pelas incoerências
entre os documentos, entre os discursos e as práticas.
Congresso Democrático ou é de esquerdas (versão esquerdista da velha Aliança
Democrática que registou no tempo de Sá Carneiro a exclusão do PCP do arco
do poder) ou é mais abrangente (como eu preferiria que fosse). Sobre o
assunto não há nenhuma clareza. A obscuridade é a regra. Mas tudo está muito
bem implícito: ser de esquerda tem um significado muito restritivo e ser
democrático é estar a par de um tal segredo.
O Congresso diz-se das Alternativas mas a única alternativa disponível é a
da unidade eleitoral das esquerdas no quadro de eleições antecipadas: um
projecto de tomada do poder, sem contestar o regime caduco que servirá,
julgam os organizadores, para impor um programa de nacionalizações e da
submissão da economia (global?) aos ditames dos novos candidatos a
apparatchik.
O Congresso melhor seria chamado de para a unidade da esquerda (no
singular), que não é perspectiva viável ou aceitável.
A eventual censura ao meu nome ou aos meus textos tornam apenas mais claro a
meus olhos, por um lado, a perversidade dos métodos de certos democratas e,
por outro lado, a natureza dúbia dos discursos em que as amplas alianças se
fazem em cima de princípios estreitos pré fabricados, com as participações
selecionadas ad homina e numa democracia aprofundada excludente
afinal de quem esteja à direita (ou demasiado à esquerda). Continuam a
defesa da linha justa por gente que nunca tem dúvidas e raramente se engana.
Ou pelo menos não discute sem ter a certeza de ganhar, como no caso da banca
do casino.
Não são especuladores de bolsa: são candidatos a substituir a classe
política serventuária da oligarquia actualmente dominante por uma
nomenklatura toda-poderosa, em detrimento de qualquer reacção que possa
haver para emancipar as populações dos seus exploradores.
Claro que não tenho nenhuma solução na manga. Tenho apenas convicções (como
o da urgente necessidade de organizar uma transição democracia-democracia e
evitar derivas fascizantes que estão a emergir por vários lados). Organizar
a democracia implica compromissos democráticos à esquerda, claro, e com as
direitas. Desde que sejam contra os fascizantes e contra o regime actual
decadente e corrupto, a meu ver sem remédio. A defesa da constituição actual
é apenas um pretexto para esconder o conservadorismo do congresso – digo
esconder porque uma declaração de defesa da constituição, numa altura em que
declaradamente ninguém a respeita, nem o Tribunal Constitucional, deveria
ser enfatizada, dada a sua importância para quem queira participar, em vez
de aparecer em tom definitivo na proposta de declaração do congresso, no
meio de muita outra declaração.
Eis uma explicação breve para este momento de hesitação da minha parte. Acho
que devo contribuir para um futuro melhor para todos. Mas não o poderei
fazer através deste congresso. Não dou para os donos da política.
5/10/2012
Organizar a dissidência
As manifestações de 15 de
Setembro de 2012 tornaram claro o divórcio do povo relativamente às
instituições democráticas. Desorganizado, ainda assim manifestou pujante a
sua dignidade, independentemente das opções políticas de cada um.
Seremos dignos de propor ao
povo português novas instituições? Sem as quais o divórcio escorregará
necessariamente para a violência política?
A globalização tornou a
liberdade de circulação dos trabalhadores um acto criminoso, e o
branqueamento de capitais impune. Como na Idade Média, os caminhos para além
das portagens de fronteira estão reservados aos aristocratas. À plebe está
reservada a servidão na sua própria terra.
As instituições
democráticas foram tomadas pelo caruncho: apesar da sua forma perfeita
destilam poder oligárquico, capaz de se mobilizar para dirimir
defensivamente assuntos caseiros – como o caso Casa Pia, as suspeitas de
corrupção ou as fraudes universitárias – enquanto importam dos centros de
poder europeus ou norte-americanos as ordens de guerra contra os povos,
muçulmanos ou cristãos, como os gregos ou os portugueses.
Não há insecticida capaz de
acabar com a praga, pois os tecnocratas ao serviço da globalização caem de
pára-quedas dourados onde os mandam ir. É preciso levantar o soalho e montar
um novo.
Não há programa político
que possa ser útil quando as instituições estão tomadas pelo bicho. Primeiro
será indispensável refundar a democracia em termos úteis para o povo.
Precisamos de um programa mobilizador de energias, como a unidade da
dissidência contra o regime decadente que se recusa a demitir. É isso que
quer dizer precisamos de um outro 25 de Abril. Derrotado o regime é preciso
montar novas instituições democráticas saudáveis.
19-9-2012
Resgatar os
Direitos Humanos nas prisões,
para uma
Democracia decente
É preciso resgatar Portugal
da opressão. Em tempos de ditadura da dívida, não só as condições económicas
e sociais se agravam profundamente como todas as opressões e desigualdades
se acentuam. Não há resgate por um futuro decente sem colocar os Direitos
Humanos no centro do debate político das alternativas. Não há meios Direitos
Humanos como não há meias democracia.
Falar de Direitos Humanos é,
na melhor das hipóteses, falar de boas intenções. Falar de prisões é falar
de más intenções. De tratamentos degradantes ou mesmo torturas infligidas
para satisfação dos sentimentos de vingança e frustrações descarregadas em
quem é indefeso.
Recentemente o tema das
prisões voltou a ter visibilidade. Como é óbvio, pelos piores motivos:
prisões sobrelotadas, condições de alimentação e higiene degradantes,
corrupção, violência e tortura.
Estima-se (à falta de números oficiais) que 50% dos presos
são filhos de pais que estiveram presos, 60% estão na cadeia pela segunda
vez ou mais, 75% foram internados pela primeira vez em instituições juvenis
– sem cometerem crimes – antes da idade de entrarem para a prisão.
A política, no sentido nobre
da palavra, tem de assumir que os direitos humanos são indivisíveis. O que
se passa nas prisões portuguesas é vergonhoso e as piores práticas tendem,
em alturas de autoritarismo político e de crescente desigualdade social, a
reproduzirem-se muito mais frequentemente, e a agravarem-se. No plano
económico como no plano judicial e penal. O que se passa nas prisões é parte
da política de desprezo pela cidadania e pela dignidade das pessoas. É parte
da política de empobrecimento levada a cabo em Portugal.
Pensar alternativas
democráticas passa também por pensar formas de respeito e promoção dos
Direitos Humanos. Nos campos económico, judicial e penal.
Dadas as actuais
circunstâncias – nomeadamente o alienação da política relativamente à
justiça – o campo da execução penal e das políticas criminais deve deixar de
ser posto debaixo do tapete e merecer, como é democrático, uma atenção
elevada, politicamente empenhada. Não é admissível ser necessário uma década
(como o foi) para erradicar os baldes higiénicos ou para instalar salas de
chuto por mera oposição corporativa a tais políticas. Não é admissível a
opacidade agravada com o obscurantismo organizado por falsas explicações e
incapacidade inspectiva das entidades competentes, sem reacção das tutelas
políticas, no governo e na Assembleia da República. Não é admissível que a
legislação produzida com vista a oferecer aos reclusos garantias de produção
de queixas contra eventuais abusos seja contrariada pelas autoridades locais
e, na prática, se tenha tornado um impedimento aos processos de
flexibilização de penas, que somam mais tempo ao já 3 vezes maior tempo
médio de reclusão que a média europeia.
A introdução de tutelas
democráticas nos meios prisionais passa por políticas integradas de
transparência das práticas prisionais, com incidência, por exemplo, em:
-
a produção de
estatísticas adequadas ao conhecimento dos percursos institucionais,
sociais e de saúde dos detidos – e não só estatísticas para gestão do
sistema;
-
a substituição das
políticas de crescente endurecimento dos regimes penais – de que é
exemplo a cadeia de Monsanto, cujas práticas foram importadas dos EUA em
má hora – por políticas de crescente flexibilização de penas e de
abertura ao exterior, interpretando a lei de forma menos criativa, isto
é, levando à letra a prioridade à reintegração social dos reclusos e
abandonando o objectivo da degradação punitiva (não previsto na lei), em
particular desenvolvendo tanto quanto possível os regimes abertos e,
desse modo, através da abertura à concorrência dos mercados internos aos
estabelecimentos prisionais, aliviando a situação de sequestro em que
vivem as autoridades prisionais dentro das suas próprias prisões;
-
o desenvolvimento de
políticas de acesso de voluntários às cadeias, sem obrigar a
compromissos de informação prévia ou posterior seja de que natureza for,
admitindo inclusivamente visitas com o objectivo de prevenção da tortura
por parte de entidades independentes vocacionadas para o efeito,
conforme está previsto ser organizado, assim Portugal ratifique o
Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra a tortura;
-
o proporcionar e
organizar as políticas prisionais em função de debates aprofundados
entre os interessados, cujo diálogo deve ser promovido activamente (por
exemplo, através de fins-de-semana de imersão) em que presos e guardas,
directores e técnicos de reinserção, jornalistas e universitários,
activistas e políticos, polícias e vítimas de crimes, enfim, todos os
interessados se possam confrontar e juntar para defenderem os direitos
humanos
João Mineiro
António Pedro Dores
António Serzedelo
Setembro 2012, apresentado ao Congresso Democrático das Alternativas
Dada a relevância do tema e o modo como é tratado, não
resisto a divulgar junto das minhas reflexões as de um mestre que tanto me
tem ensinado: obrigado
Governança e Justiça
Acho que eles não querem perceber nada. O problema é que toda
a vida institucional foi posta entre parênteses há uma semana. É inútil
supor que as coisas passam porque as manifestações dispersam. Há alguma
verdade nisso. Mas também é verdade que, em política – e não apenas em
política - os estados de espírito enraízam-se e é neles que assentam muitas
coisas. As revoluções também.
O que se pode formular como manifesto daquelas manifestações
de dia 15 de Setembro é arrasador. E não há resposta possível dentro dos
aparelhos politico-partidários. Aquilo não foi uma catarse ocasional. “Que faremos agora?” traduz a atitude da generalidade dos que
saíram à rua. E essa tensão expectante permanece em todas as ruas de todos os
bairros. Há alternativas suficientes à imprensa (que ninguém lê) para que a
imprensa possa apenas fazer um quase nada quanto a isto.
Não foi uma manifestação contra a austeridade, porque, não
pode chamar-se austeridade à solução em cujos termos toda a gente seria
chamada a pagar – além dos limites de inviabilidade do seu sustento – um
deficit que propriamente falando não houve nunca. Trichet disse-o com
clareza em 2005: “Portugal não tem deficit, tem corrupção”. A isto responde
a procuradora Cândida Almeida (em 2012) que o MP nada vê quanto à corrupção
no país. É portanto necessário um inquérito urgente e conclusivo quanto à
actuação do MP. Nada mais claro. O MP é um corpo de magistrados
responsáveis. É preciso pô-los a responder, parece, mas o inquérito há-de
esclarecer melhor as coisas.
De modo que o único bom serviço a prestar ao país seria uma
boa transição. Com todos os sinais de uma transição: inquéritos concluídos, livros
negros publicados, processos criminais públicos e urgentes em tribunais de jurados,
inibições de direitos políticos em todos os casos de desempenho de funções
públicas em situação de conflito de interesses e a garantia concretizada de que nenhum
esforço se pedirá a ninguém sem resolver a questão prévia da recuperação possível dos
fundos sumidos na corrupção (com a premência que o caso exige). Já não é a
história d “os ricos que paguem a crise”. É a exigência de reposições de
verbas. E a de anulações de vantagens ilícitas como a do abuso de informação
privilegiada, por exemplo. “O senhor presidente da república não pode ver a
sua honra em causa em razão das acções da sociedade lusa de negócios”, dizia
o Pinto de Albuquerque. Ai não? Pois a mim parece-me que toda a gente lhe
deixará a honra que lhe reste, seja isso o que for, desde que a casa do
Algarve vá à praça depressa. Devemos consentir-lhe uma defesa escrita, por
princípio. Um processo devido. E uma audiência pública. Mas as coisas não
podem ser longas, pela sua própria natureza. É neste ponto que estamos.
Quanto a tudo. E quanto a todos.
Já passámos a fase das referências de conteúdo indeterminado.
“Justiça”, “equilíbrio”, “sensibilidade”, “modulações”… Isso era antes de 15
de Setembro. A figura da ICAR quando vem dizer essas coisas é a de sempre.
Está atrasada. Agora as coisas são muito mais cruas. Muito mais simples. E
vão magoar na mesma proporção em que se semearam as dores. Em todos os
quadrantes, desejavelmente. Basta não resolver alguma coisa num dos
sectores, para que tudo regresse rapidamente demais ao ponto de partida.
E já ninguém suporta aquelas caras, aqueles léxicos, aquelas
conveniências, com o “quero ajudá-lo/a” de todos os burlões e proxenetas, o
“sr. devia ter ido”, ou “ficado”, “dito” ou “calado”, “visto” ou
“acreditado”, “previsto” ou “ignorado” de todos os funcionários, o “isso
não se pode dizer”, o “não se pode generalizar”, os “limites da liberdade de
expressão”, as
revoadas de condenações contra direito expresso por pretensas
injúrias em face dos protestos legítimos (e as indemnizações a pagar neste
domínio deixariam, em acção de regresso do Estado, muitos decisores em
situações onde ninguém quereria encontrar-se). Sublinho quanto a este último
aspecto que ninguém se lembrou de processar nenhum manifestante por “
injúria qualificada” contra o “senhor primeiro ministro”.
-“ Coelho ladrão teu lugar é na prisão”, diziam os
manifestantes. -“A manifestação é um direito e correu ordeiramente”,
respondem os da “ordem pública”. As duas coisas estão certas quanto à
substancia, ao modo e ao tempo.
Aqui estão as devidas proporções a regressar. Há coisas que
ficam imediatamente postas nos seus sítios. E se num exercício escolar se
puser tudo à escala destas proporções, nada se aguenta de pé. É tão simples
como isto. E diante disto há três posições da “governança”:
·
a estupidamente suicidária, ao estilo “muitas coisas cairão
comigo”;
·
a suicidariamente estúpida, ao estilo “a experiência ensina
que nunca acontece nada”;
·
e a prudente que se traduziria em preparar a mudança com
lealdade,
para que a Justiça possa silenciar a violência (não serão as unidades
anti-motim a fazê-lo).
Gente deseducada no faduncho, na Fátima e no futebol,
crescida no revanchismo e na avidez, ou envilecida - ainda antes de crescer
- no funcionalismo partidário, escolherá as duas primeiras posições. Esta
gente reagirá na mais pura lógica do “hades ver”, porque, justamente, os
estados de espírito enraízam-se. Esse é o (grande)problema. Mas não é
suficientemente grande para impedir que se faça a – sempre concreta –
Justiça. Só os graus de destruição quedam por esclarecer, porque a Justiça
destrói na proporção em que tiver sido destruída e o Direito abandona na
medida em que tiver sido abandonado. Estas conclusões são velhas como a
História conhecida.
Tudo o mais me parecem detalhes. (Embora haja alguns detalhes
importantes).
José Preto, Lisboa 21 Setembro 2012
Mortes, gatunos e vigaristas
Não faz muito tempo, o avisado Prof. Marcelo espantou ao chamar a atenção do
seu público que mais valia entregar à CGTP e ao PCP o enquadramento das
manifestações, do que deixar à organização inorgânica e espontânea a
iniciativa. Tinha receio de o poder cair na rua.
Ora, em 15 de Setembro de 2012 o Prof. Marcelo lá teve que meter a viola no
saco. Mas como qualquer bom comunicador ou comentador encartado, não se
calou. Continuou a mandar postas de pescada, como se ele próprio jamais
tivesse existido e falhado ou o povo português não existisse.
Sem piquete de ordem, nem da polícia nem da CGTP, sem limitações de entrada
ou direito de admissão, as manifestações de 15 de Setembro mostraram que o
perigo da violência não vem do povo. Mesmo (ou sobretudo) à solta. A
violência vem das seguranças: do sector público-privado, bem como das
parcerias media-policiais que fazem os tablóides e até, para quem
estava acima de toda a suspeita, das parcerias universidade-media-consultores
jurídicos do sistema.
Quando os médicos registam um aumento exponencial dos suicídios, de faltas
às consultas por falta de dinheiro para os transportes e encargos de acesso
aos médicos, anúncio de fome alargada e crescente, 1/3 das famílias a
entregar as casas aos bancos, estes safardanas estão muito preocupados com a
violência das ruas (que manifestamente (ainda) não existe) e fazem tabu dos
problemas das pessoas, em nome do optimismo e da confiança (em Deus? no
mercado?).
O povo na rua, dia 15 de Setembro, reconheceu distintamente os gatunos como
uma das causas principais da crise. Sabiamente não os reclamou na cadeia.
Eles terão de ser derrotados politicamente. Na verdade já o estão, como
todos o sabemos. Mas em vez de se apearem, democraticamente, uma vez que
foram apanhados, a probabilidade de se agarrarem ao poder com vista a
cumprir o seu papel anti-democrático de vassalos dos poderes de
Bruxelas-Paris-Berlin é grande. E os riscos de terem de sair à força
aumenta.
Umas semanas antes, à frente da Assembleia da República tinha-se chamado
aldrabão ao ministro Relvas, na verdade por minudências. A crítica deve-se
mais ao descaramento e ao mau exemplo do que à substância do problema (tão
baixo chegou o prestígio das universidades). A expressão do protesto deve-se
sobretudo à suspeita, cada vez mais alicerçada, de este ser um regime de
vigaristas. Muito para além do Relvas. Em particular aqueles que atemorizam
as pessoas com riscos de violência para o que apenas eles próprios e aqueles
a quem querem defender, em particular o regime de que dependem, ameaçam.
O perigo, neste momento, de ataque à democracia e ao povo não vem das
populações. Como é evidente a partir de dia 15 de Setembro. O perigo é o
chefe da polícia dizer que a investigação criminal e a provocação de
desacatos em manifestações por parte de agentes à paisana é a mesma coisa
(como ocorreu em Novembro último) e ter sido coberto (em vez de demitido)
pelo governo – pretensamente democrático – em funções.
O perigo, Prof. Marcelo, vem dos seus amigos de partido. Fora da democracia
e dentro da corrupção faz anos. E não das pessoas com fome e deprimidas.
Pelo menos por enquanto.
2012-09-18
O Povo visto pela sociologia da instabilidade
As manifestações de 15 de Setembro de 2012 foram uma aparição do povo
português, comparável ao 1º de Maio de 1974 ou ao movimento que, lançado
pela rádio TSF, originou o apoio nacional à independência de Timor Leste.
Os sociólogos chamados a explicar o fenómeno terão de reconhecer não haver
teoria social para o tentar. Há uma teoria dos movimentos sociais, que não
se aplica a fenómenos tão fugazes e inorgânicos. A ciência política
demarca-se radicalmente da compreensão de tais fenómenos. No próprio momento
da manifestação, os comentadores políticos – os jornalistas principais e os
dirigentes partidários – inventaram que o problema fora a TSU, quando na
verdade, na manifestação, se gritou “gatunos”. Trata-se do mesmo embuste do
costume: em vez de se tratar politicamente os crimes feitos por políticos em
exercício, enquanto grupo organizado que domina as instituições, reclamam-se
processos judiciais para cada um dos crimes que cada político tenha
eventualmente cometido, para que tudo possa continuar a ser roubado enquanto
duram os julgamentos, entretanto pagos com uma parte do resultado do saque.
“Onde estão as provas?” perguntam eles por sistema. Contando com a
conivência do sistema, não apenas a eventual promiscuidade entre o sistema
político e o sistema judicial (que não impede arrufos) mas também do abuso
da divisão de trabalho inter institucional que tem vindo a criminalizar e
judicializar os costumes, desde as drogas (com mão pesada) até à corrupção
(com mão leve e muitas prescrições), impedindo na prática o funcionamento
legítimo do sistema judicial e, na prática, colocando-o em crise, na medida
em que fica assoberbado de trabalho e incapaz de fazer justiça.
A justiça torna-se cada vez mais, como tudo em que o neo-liberalismo toca,
num centro de negócios competitivo, isto é corrupto.
Os sociólogos, remetidos pelas classificações dos media, para
explicar o social, aquilo que – do ponto de vista deles – não é político,
têm-se deixado acantonar nessa posição politicamente subalterna em termos
epistemológicos e públicos. Pouco interessa o que diga o sociólogo, em
concorrência com as fontes policiais, para explicar o que tenha passado pela
cabeça desgrenhada dos manifestantes, (cf. este exemplo eloquente
http://www.rtp.pt/play/p79/e92702/especial-informacao). As questões
sérias, como insistentemente disseram os comentadores e jornalistas de
serviço, são os temperamentos dos lideres partidários e respectivas
telenovelas casamenteiras ou de divórcio.
Não se deduza destas linhas a inocência da teoria social neste
posicionamento redutor do social a capacho do político (e do económico).
Pelo contrário, a teoria social não se preocupa em definir o seu próprio
objecto de estudo: o povo. Chama-lhe sociedade mas na condição de estar
inerte, de ser uma colecção de indivíduos. Tem de poder ficar bem na
fotografia, no geralmente inquérito por questionário. Se o povo se levanta a
teoria social, como qualquer fotógrafo de cerimoniais, zanga-se e pede às
pessoas para estarem quietas. Caso não seja possível, remetem o assunto para
as enfermidades, as irracionalidades, estudadas pela psicologia de massas.
Na perspectiva da sociologia da instabilidade
http://iscte.pt/~apad/novosite2007/livros.html#INSTAB, o povo português
é tanto aquele que se expressou na rua, contra e à margem das instituições,
como aquele que vota maioritariamente nos partidos do arco do poder, para
que organizem os pagamentos alegadamente devidos ao estrangeiro e aos nossos
parceiros europeus. Como qualquer pessoa, o povo zanga-se. O facto de se
zangar todo praticamente inteiro ao mesmo tempo, é um a reacção a males
institucionais profundos. Claro. Mas do ponto de vista do conceito, não há
que fazer da contradição entre o povo em estado de submissão e o povo em
estado de proibir (a acção do governo) um problema de incoerência popular.
Pelo contrário: o facto da teoria social estar incapaz de descrever um tal
fenómeno apenas significa que a teoria social é especialista em fotografia e
se recusa a reconhecer a sétima arte.
De acordo com a teoria dos estados de espírito, no que toca a questões de
poder, cada entidade social, seja ela uma pessoa, um grupo, uma instituição
ou um povo, portanto qualquer sociedade admite praticamente ao mesmo tempo
vários estados de espírito (aprendidos em geral separadamente), sendo que
alguns deles ou uma mistura específica deles acabam por ser preponderantes à
vez, em cada tempo. Se é assim, o povo português resistiu na postura de
submissão até ao 15 de Setembro de 2012, cobrindo e reforçando –
independentemente do mérito da governação – seja o que for que o Estado
entendesse prosseguir. A vontade de proibir o caminho seguido já tinha sido
manifestada de várias formas. As práticas marginais também começaram a
expressar-se num quadro popular. O governo utiliza isso para organizar a
repressão, como se fosse possível expurgar ou exorcizar tal estado de
espírito. Naquele dia 15 de Setembro, porém, o povo disse “Basta!”, todo
inteiro, incluindo os marginais e os submissos. Adoptou, portanto, uma
postura de proibir o Estado de continuar a roubar o povo (“gatunos!”) e de
destruição da identidade nacional (cantou-se o hino e gritou-se Portugal,
Portugal, como no futebol).
Ainda de acordo com essa teoria,
http://iscte.pt/~apad/estesp/trilogia.htm, ao povo resta ainda a
possibilidade de, caso não se sinta satisfeito com esta mistura em transição
de um espírito de submissão para um espírito de proibir, adoptar um espírito
marginal. Que é, verdadeiramente, o espírito épico da modernidade. Por isso
a modernidade valoriza tanto a juventude, a irreverência, a falta de
memória, a violência como valor positivo (sobretudo quando é atirada contra
terceiros).
Os conservadores, claro, com toda a razão, quais velhos do Restelo, chamam a
atenção dos riscos de o povo vir a adoptar uma postura marginal. O poder cai
na rua, a propriedade, a estabilidade, a tranquilidade, são substituídas
pela instabilidade visceral, original, como quando pequenos grupos de
humanos lutavam pela sobrevivência. Que há de épico nisso é a entrega aos
elementos. O povo, claro, sabedor disso mesmo, só entrará por aí quando a
sua vida (por fome ou risco de perda de identidade) esteja em grave risco.
O povo já percebeu que está a ser conduzido por gente que lhe é estranha.
Mas espera para ver se o caminho do abismo, que tantos já viram e anunciam
faz tanto tempo (há sempre profetas da desgraça), terá ou não um arrepio.
Caso venha a entender não haver arrepio, caso a sua soberania não venha a
ser respeitada, a atitude do povo certamente mudará. O que não significa que
não possa ser controlada (por exemplo, através de intervenções repressivas
ou bélicas). Preferivelmente pela demissão colectiva da classe política, se
é que ainda se regem por princípios democráticos.
2012-09-18
Carta aberta
Exmo. Senhor Presidente da
República portuguesa,
Organizar a democracia – é
responsabilidade de um povo
Há que agradecer aos
companheiros que tomaram a iniciativa de convocar as manifestações de 15 de
Setembro de 2012. Sem eles, sem a sua insistência persistente, sem a sua
confiança no povo, o povo não poderia apresentar-se de forma tão cabal como
aconteceu neste dia histórico.
Há que reconhecer os frutos
da estratégia política a que esses companheiros têm vindo a dar corpo.
Liberdade para o povo se exprimir quando entender; igualdade das diferentes
tendências políticas, organizadas ou não, para participarem sem censuras (o
que não quer dizer sem discussão); fraternidade (anti-sexismo, anti-racismo,
anti-vanguardismo, solidariedade, anti-securitarismo) no modo de organizar a
política.
Está, evidentemente, outra
vez e sempre, tudo por fazer. A revolução (no sentido da experiência do povo
referida a 25 de Abril de 1974) recomeçou. Desta vez em democracia. Mas os
dirigentes políticos e as instituições ainda não se pronunciaram sobre se
optam pelo povo, em respeito pela democracia, ou se optam pelo saque, como
fizeram muitas vezes no passado e como imagino que estes também vão fazer
agora e para o futuro, enquanto puderem. Até serem corridos, como Miguel de
Vasconcelos ou como os fascistas.
Não vale a pena aos
responsáveis políticos e sindicais procurarem os responsáveis pela agitação.
Manifestamente são eles próprios, assim saibam olhar-se ao espelho. Mas
imagino que só tenham espelhos comprados à Branca de Neve. O que obrigará um
esforço arriscado – mas urgente – ao povo português.
Houve as manifestações dos
professores em 2008, a de 15 de Março de 2011 e as suas réplicas. Foram
tímidas demonstrações da existência de um povo, comparada com esta.
Entregámo-nos primeiro aos sindicalistas (os professores desempregados sabem
o resultado) e depois à Assembleia da República (por isso tocou a todos a
resposta dada: sem piedade).
A diferença é que esta
manifestação foi do povo inteiro e consciente. Cantou o Hino para se
anunciar, gritou o seu nome: “Portugal”, “Portugal”, ao modo do futebol. E
fez a sua análise socio-político-económica: “GATUNOS!”
Quem duvida que há um
soberano, uma entidade social efectivamente real que comanda – com as suas
forças próprias – a vida deste país? Não foi uma aparição de Fátima. Como
vão tentar fazer querer os comentadores encartados – que é essa a sua função
servil.
A partir deste momento a
voz dos hipócritas –e ele há tantos – perde a pouca razão que tinha. E o
povo, nas suas diversas expressões, está a partir de agora autorizado a
interpretar a rebelião como um direito, de resto previsto na Constituição.
Há quem pense que a
democracia, principalmente no estado de degradação em que se encontra – já
cheira mal – não será capaz de desenvolver alternativas. Aqui há que
ponderar o que estamos a querer referir por democracia.
Se democracia são as
instituições democráticas, os partidos, os sindicatos, as organizações
patronais, a administração, o sistema judiciário, os órgãos de soberania do
Estado, se democracia é isso, não serve o povo português. O Presidente da
República e o Conselho de Estado que mandou reunir têm obrigação política de
o reconhecer – porque é evidente – e declarar as instituições estarem a
funcionar ao arrepio das suas competências e funções políticas, em prejuízo
evidente do soberano; portanto contra a constituição e contra o Direito. As
instituições estão fora da lei. Como muitos já têm chamado a atenção.
Para a democracia se
realizar, no quadro do actual regime, o Presidente da República tem estrita
obrigação de respeitar o seu compromisso de honra e fazer a declaração
respectiva, tirando daí as consequências como pensar ser melhor para o povo.
Caso contrário, o próprio Presidente arrisca-se a passar a ser considerado
fora da lei e coveiro desta democracia.
Transição pacífica e
organizada entre esta democracia e a próxima que se espera poder ser
possível organizar em breve, depende do Senhor Presidente da República e da
sua capacidade de fazer valer o seu bom juízo junto das restantes
instituições, sobretudo as mais poderosas. Para isso pode contar com o povo,
evidentemente. Para outra atitude, dava jeito pedir a demissão. Que outra
personalidade capaz de conduzir o processo constituinte avance. Pois essa é
evidentemente indispensável seguir-se, assim que possível.
A atitude do Presidente é,
evidentemente, muito difícil. Sobretudo para ele. Só ele saberá como quer
vir a ser apresentado nas aulas de história no próximo futuro.
Aos portugueses cabe-lhes
mudar o (seu) mundo sem tomar o poder, cf John Holloway Change the World
Without Taking Power. Organizar a democracia, essa é a grande lição
destes últimos 40 anos, é um trabalho que não pode ser delegado, sob pena de
grandiosos prejuízos. Formaram-se escolas de bandidos, mais ou menos
secretas, mais ou menos partidárias, para organizar o saque e a respectiva
divisão. Os portugueses satisfizeram-se com as migalhas, porque são
humildes. Perderam de vista a corrupção social. Como se sabe desde Wilkinson
e Pickett Espírito da Igualdade, a diferença de rendimentos tem
efeitos perversos transversais a todos os aspectos da vida social. Isto é,
não basta cada um ficar com o quinhão que lhe seja suficiente para viver. É
preciso que todos e cada um nos asseguremos de existir uma distribuição de
rendimentos tão equitativa quanto possível, para todos e cada um vivermos
melhor. Para termos uma sociedade mais justa, independentemente do regime
político e económico.
Precisamos de um regime
democrático capaz de reconhecer o direito do povo a ser soberano (um sistema
de justiça justo) e de instituições ao seu serviço (pela igualdade social na
base da possibilidade de práticas fraternais, sem as quais, na prática será
difícil ter-se liberdade e igualdade).
Esse regime democrático não
é este que temos hoje. Há que separar as águas: quem está pelo povo e quem
está contra o povo? Senhor Presidente da República?
Não votei em si. Desconfio
com toda a minha razão de si e dos seus. Preciso de si, nesta ocasião,
porque se é verdade que todos somos capazes de nos ressocializar, se o
senhor quiser fazer isso hoje, agora, estará a evitar muitos esforços
desgastantes e em vão bem como muito sangue.
PS: A propósito, vale a pena rever a
SIC,
31.05.2012. Isso explica a proposta do PS as PPP pagarem mais impostos em
troca da TSU?
Texto de contribuições abstractas e concretas
para o debate sobre o que fazer face à evidência de estarmos a deixar-nos
governar por predadores e abusadores.
Propostas:
Gabinetes políticos para atender política e juridicamente, em sigilo, os
injustiçados deste país,
Rigor dos ensino
do português e da matemática ao centro do debate
político.
Ensino e o dinheiro
deveriam circular de baixo para cima.
Os
partidos deixariam de ser centros de negócios para serem
centros de coordenação estratégica
Reclamar
a liberdade de os desempregados organizarem livremente
sem interferência do Estado (que não é capaz de os integrar)
Para os interessados, podem ler o texto
completo AQUI,
apresentado ao Congresso Democrático das Alternativas, Setembro 2012,
Um preso queixa-se de ter apanhado 51 anos de pena por burlas, tomadas como
crimes separados, e teme que o facto de não estar ainda feito o cúmulo
jurídico, quase uma década após a sua entrada na cadeia, queira dizer que se
preparam para o fazer cumprir as penas sucessivamente. Dir-se-ia que estamos
num país moralista. Mas estamos em Portugal, onde vigaristas são escolhidos
para cumprirem funções das mais importantes para o Estado, sofrendo sem
vergonha a pena única de serem motivo de anedotário, protegidos sabemos
todos muito bem porquê e por quem.
Muitos comentadores e políticos entendem dever separar a avaliação política
da avaliação do carácter das pessoas. Não queremos em Portugal o populismo
dos tablóides anglosaxónicos a comandar a opinião pública. Outros levam o
rigor ao pormenor de manifestar indignação pela confusão entre o caso da
licenciatura de Sócrates (que terá frequentado algumas cadeiras do curso de
que obteve certificado) e da licenciatura de Relvas (que não terá
frequentado praticamente nenhuma). Mas o resultado final é que a utilização
do Estado para fins privados, de que os certificados de ensino são apenas os
exemplos mais fáceis de documentar, é assunto tabu na política portuguesa.
Na verdade muitos destes comentadores continuam a discutir alta economia
política – que é o topo da carreira – sem se aterem ou terem sequer
suspeitado de algumas verdades como aquelas recentemente apresentadas por
Paulo Morais sobre
os mecanismos, cumplicidades, anuências, omissões, impunidades, de que
resulta a crise nacional: estamos todos a pagar não apenas o BPN dos
manda-chuva como as fraudes legalizadas na classificação de terrenos, da
produção de leis em favor dos bancos e das empresas de advogados, o pulular
de fundações e de outras benesses para os amigos, a obstrução
politicamente organizada à justiça por partidos e empresas de advogados
disso beneficiários. Não somos os portugueses que vivemos acima das nossas
possibilidades, mas antes os vigaristas que exploram o Estado português é
que vivem conforme as suas possibilidades. O que nos causa problemas,
sobretudo se continuarmos a pensar ou fazer como se o Estado fosse
propriedade privada desses mesmos escroques.
Um amigo dizia, ao ver a Judite de Sousa espantada a perguntar ao Paulo
Morais se estava seguro da gravidade das acusações que fazia, que esperaria
algum tipo de consequências. Ou a frontalidade da denúncia causaria algum
desgosto ao denunciante ou aos denunciados. Espantado ficou o telespectador
quando nos dias seguintes apenas pode dar-se conta da presença de Paulo
Morais em vários meios de comunicação, sem outras consequências.
Num país que admite a vigarice como prática social legítima para quem vive
da política, qualquer verdade fica baça espelhada no lodaçal. Como poderia o
grosso dos comentadores fazer, sem riscos, as suas inócuas e repetitivas
análises se introduzissem a verdade como variável explicativa? Como se
manteria o governo sem a ilusória esperança de que a troika venha cá
para – em segredo – combater a corrupção endémica? É mais doce viver-se de
ilusões do que assumir responsabilidades. É mais fácil colaborar com os
escroques do que expropriar os resultados das chicoespertices políticas.
12-7-2012
Nas últimas semanas e sobretudo nos últimos dias chegaram notícias que
merecem alguma reflexão. A propósito das eleições para o parlamento grego
marcadas para dia 17 de Junho de 2012, correram notícias obviamente falsas,
mas noticiadas pela esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social
europeus, sobre a escolha principal dos eleitores gregos: ficar ou não ficar
no euro e na União Europeia.
A comunicação social, perdoe-se-nos a generalização, fez campanha nas
eleições gregas pela interpretação dominante dos burocratas e diplomatas
europeus em as citar e à revelia das formulações expressas pelos partidos
gregos dominantes, ambos a favor do euro e da União Europeia. A Srª Merkel e
os seus apaniguados decidiram intervir nas eleições gregas ameaçando o
Estado grego com a expulsão – ilegítima, caso se viesse a concretizar – do
euro e da EU, como se houvesse quem seja o “dono da bola”. A edição alemã do
Finantial Times levou este tipo de propaganda ao interior da Grécia de forma
muito directa, apelando ao voto na Nova Democracia, na véspera das eleições,
depois de finda a campanha eleitoral.
Alguns meses atrás os órgãos de soberania gregos foram ultrapassados por uma
iniciativa política europeia que foi capaz de colocar como primeiro-ministro
um senhor da confiança dos mercados, o Sr. Papademos, na sequência de um
anúncio frustrado de um referendo sob a mesmíssima questão que agora foi
introduzida na campanha pelos poderes políticos dominantes e de legitimidade
discutível. O então primeiro-ministro, Sr. Papandreo, legítimo representante
do partido mais votado, desapareceu da vida política.
Que moral pregarão os poderes difusos, em geral simbolizados na figura da
Srª Merkel e dos mercados, quando se mobilizam para castigar as más práticas
de governação gregas – ou de outros países – e se comportam deste modo? O
que os levará a apoiar os partidos que instalaram a má governação e a
corrupção na Grécia, contra alternativas de poder que são estigmatizadas
como anti-europeias (sem que isso corresponda a nenhuma vontade expressa dos
estigmatizados, mas ante a uma ameaça mediática de expulsão cuja
oportunidade e legalidade não estão previstas)?
Em Portugal, o debate dos cruzamentos da corrupção com a política têm
passado sobretudo pela autarquias, embora os volumes de dinheiro que
circulam nessa área do Estado sejam muito inferiores aos que são mobilizados
pelos ministérios e pelas empresas públicas. Alguns presidentes de Câmara,
sobretudo, tornaram-se figuras corruptas reconhecidas publicamente, mas
raramente penalizadas politicamente por isso, por parte dos eleitores. O que
tem sido referido pelos activistas anti-corrupção como um problema cultural
e político relevante no âmbito das suas campanhas anti-corrupção.
O que dizer, então, do apoio político dos poderes fácticos e mediáticos
europeus a partidos responsáveis pela instalação de sistemas de corrupção a
nível nacional, na Grécia? Qual é a lógica da intromissão da CE, do BCE e do
FMI – e dos media internacionais – na vida financeira dos países mais
desregulados da EU se não é também para combater a corrupção através de
reformas estruturais?
Que maior integração política na UE se estará a querer organizar se em vez
de serem os povos europeus a terem direito a voto nas instituições que de
facto mandam na União, como o parlamento alemão ou o parlamento francês, são
os burocratas sem rosto e sem legitimidade política transparentemente
adquirida a intervirem nas votações políticas de países assim menorizados?
Lx, 2012-06-18
A luta contra o abuso sexual de crianças
É bom que o Ministério da Justiça se preocupe
com o abuso sexual de crianças. Mas isso não é suficiente.
a) Segundo a ONU 1/4 das meninas em todo o mundo são abusadas até à
adolescência e 1/7 dos meninos também. Trata-se de uma vitimação das mais
extensas que se podem imaginar. Virtualmente qualquer um está vulnerável a
um abuso sexual. Situação de consequências desconhecidas e devastadoras. Não
há medidas simples para tratar o problema tão ignorado e de tal dimensão;
b) A abertura do espaço europeu faz com que as medidas locais, nacionais,
sejam insuficientes para abordar o assunto, já que os abusadores mais
poderosos organizam as suas actividades de modo colectivo - explorando as
potencialidades da internet, do turismo e as cumplicidades locais a troco de
favores ou pagamentos, envolvendo instituições poderosas nomeadamente as que
mais confiança geram nos cuidados sociais de crianças e jovens em risco;
c) O trabalho policial, escolar e institucional de perseguição dos
abusadores e de protecção das vítimas não tem merecido o investimento
indispensável, apesar dos avanços neste campo serem reais. Pelo que é
preciso saber de que modo as medidas anunciadas são uma necessidade ou uma
mais valia sentida no terreno e se essas medidas serão acompanhadas de
reforço e aceleração das medidas preventivas e de protecção no terreno. A
crítica construtiva das intenções do ministério da Justiça será feita por
aqueles que no terreno se confrontam com as dificuldades práticas da luta
contra o abuso sexual, em geral, e das crianças em particular;
d) O problema não é a pedofilia - uma perturbação do comportamento que faz
adultos sentirem-se sexualmente excitados com crianças - mas sim o abuso
sexual - a vitimação em série e viciosa de crianças por abusadores que podem
não ser pedófilos. Há, pois, um trabalho de informação, debate e
consciencialização a levar a cabo junto das sociedades que se está a fazer
mas que está quase todo por fazer;
e) Só, nenhum ministério será capaz de tratar este problema. Sinalizá-lo a
nível ministerial, como o fez agora o Ministério da Justiça, é um acto de
coragem, que merece apoio e aplauso, independentemente da qualidade
específica das medidas tomadas - cuja crítica pode e deve ser feita. Mas
assinala também a forma parcial como o governo e o Estado (não) lidam com o
assunto. Tratam-no como um tema sectorial, que não é;
f) As críticas a medidas neste campo têm sido tecidas em razão do apelo à
irracionalidade securitária com que nalguns países do mundo (sobretudo
anglosaxónios) têm sido usadas. Com resultados escassos e por vezes
contraproducentes. Nomeadamente por serem integradas em processos de criação
de medo nas populações, cujos resultados directos podem ser maus tratos,
torturas e linchamentos de alegados pedófilos que alegadamente nunca o foram
(foram sim vítimas de erros judiciais).
g) Preocupa-me estas medidas do min. da Justiça serem anunciadas ao mesmo
tempo da política demagógica da "tolerância zero" (pelo min da Administração
Interna). Não sei se há coordenação do governo nestes campos, mas caso haja
coordenação isso é um sinal de risco de má utilização das informações que se
vão passar a recolher, nomeadamente se forem usadas para fins de propaganda
política à custa do ulular das pessoas aterrorizadas com a perversidade
sexual da humanidade;
h) A informação a recolher sobre a identidade e a acção dos potenciais
abusadores sexuais cujo comportamento se sabe ser compulsivo não deve perder
de vista a necessidade da mobilização da cooperação das instâncias de
investigação do Estado, MP, polícias especializados, polícias em geral,
educadores e cuidadores de crianças, tendo em conta que os abusadores são
especialistas em infiltrarem-se precisamente lá onde se cuidam das crianças
abusadas - para mais impunemente delas poderem abusar. Portanto, é
fundamental que as famílias, as mulheres e as crianças, as populações em
geral, se organizem e participem por razões próprias nesta batalha de
civilização para compreenderem esta expressão da natureza perversa da nossa
natureza humana. Confiar no Estado não será suficiente (e provavelmente será
ineficiente). Organizar a ostracização estigmatizante dos abusadores
capturados pelas polícias e condenados pelos tribunais é perigosamente
auto-destrutivo e, na prática, incapaz de atacar um problema desta dimensão
e profundidade.
Reacção à notícia: "A Ministra da
Justiça anunciou que vai avançar até ao final do ano com a criação de um
registo nacional com nome, morada, foto e outros dados pessoais de pedófilos
que já tenham cumprido pena por abuso sexual de menores, para que as
autoridades policiais e as escolas, creches ou instituições que trabalham
com crianças saibam se existe algum pedófilo na zona. Nos casos mais graves,
os dados serão divulgados pelos vizinhos."
2012-07-09
A praia antes do tsunami
As secretas estão à mostra e revelam as pernas até ao primeiro-ministro. O
Pacheco Pereira lança a sua sabedoria sobre a classe dirigente em pânico,
sem saber se já é alemã ou se a senhora Merkel ainda lhe vai pedir mais um
esforço para exaurir até ao fim este jardim à beira mar plantado. Há polícia
na rua que sente ser a última réstia de autoridade e atira-se a quem passa,
porque todos somos suspeitos antes de prova em contrário. Para satisfação do
ministro das polícias, convencido que o seu revanchismo é maquiavelismo.
Os partidos da situação conspiram. Os da oposição escutam atrás das portas a
ver quem revela melhor o sentido da conspiração. Os analistas analisam o
sentido da falta de sentido e a população finge que tudo continua a ser a
mesma conversa da treta com que nos endividaram.
Mas não é: desta vez é a guerra que vamos importar da Europa. A guerra
contra a democracia. Não a democracia grega, que essa faz séculos que
acabou. Mas contra a democracia que ainda resta na Grécia após os subsídios
que serviram para armar o Estado até aos dentes e alimentar uma classe
dominante global na Grécia, cuja animação económica permitiu conquistar a
miríade de lojistas que faziam o grosso da legitimidade do Estado integrado
na União Europeia.
A guerra como na Argélia ou na Palestina, quando os respectivos povos
votaram contra os desejos dos dominantes e da comunidade internacional. Sim.
A Grécia, como o Sul da Europa, foi escolhida para ser a colónia exemplo da
nova fase do capitalismo, na Europa. Também dita, zona económica especial,
onde a Democracia, o Estado de Direito e os Direitos Humanos deixam de ser
valores a respeitar, nem mesmo retoricamente. Por isso o governo aconselhou
os jovens a emigrarem. E fê-lo com sincera e estúpida vontade de ser útil.
Pois sabe que quem ficar cá dentro, caso os deixem continuar a governar, vai
ficar mal tratado. Como aquele homem encontrado uma semana após ter morrido
de fome em casa, em Atenas, com o seu Mercedes estacionado à porta.
Leonidas é o mito grego antigo mais recordado nos dias de hoje. E como
naquele tempo já se sabia, a luta pela vida digna é mais importante que a
derrota que possa ser imposta pelos poderosos. Hoje, porém, os gregos não
têm de estar sozinhos. Nós somos todos gregos.
2012-06-02
PS: em homenagem a Yorgos Mitralis, de visita a Portugal nestes dias
A esquerda e os rituais punitivos
Hoje em dia a sociedade
suporta os crimes mais graves sem haver julgamentos dos poderosos
responsáveis. Enquanto a polícia e a opinião pública estão viradas para a
descoberta e invenção de pequenos delitos, punidos duramente nos corpos de
quem não se sabe nem pode defender.
Jamais a sociedade
desejável foi imaginada sem prisões, sem punições, sem moralismos perversos.
O que todavia é fundamental.
O socialismo real
afundou-se em gulag e o capitalismo continua a fazê-lo. O número de
prisioneiros não pára de crescer.
Pensar em acabar com as
prisões, mais do que deixar os magistrados atarantados, provoca um vazio
doloroso nas pessoas comuns, um sentimento de insegurança irracional mas
profundo. É um tabu no debate político, que apenas torna mais perversa a
situação nas prisões e irracional a vida pública e a vida política.
50% dos presos são filhos
de presos; 60% estão na prisão por mais de uma vez; 80% passaram por
instituições de acolhimento de crianças e jovens. São basicamente os mesmos
de sempre. A droga é o maior pretexto para prender e é também o maior
negócio nas prisões. Querem maior perversidade?
Para quê? Para que os
poderes possam condenar os seus inimigos, em particular os povos que os
contestam? Para os senhores do poder se possam vingar dos seus inimigos e
proteger os seus amigos, sem deixar rasto?
A futura sociedade europeia
democrática, respeitadora do Direito, é uma utopia. Nessa utopia ou caberá a
ideia de perseguição do crime sem uso do sequestro expiatório, para todos,
ou não caberá o respeito pelo Direito.
2012-05-27
A mim também me apetece matar
A luta pela liberdade é
uma luta contra natura. Ao contrário do mito do bom selvagem, os
primeiros humanos tiveram que aprender a lutar contra as adversidades
para poderem sobreviver, quando as árvores deixaram de ter alimento
suficiente e foi preciso descer à savana aberta. Perante o perigo, como
sabe qualquer guerreio, é morrer ou matar.
As sociedades modernas
herdaram e valorizaram todas as lutas pela liberdade que entretanto
foram desenvolvidas pela espécie humana, frequentemente por caminhos
errados, como aquilo da Pax Romana, isto é a imposição imperial do
domínio de alguns sobre os recursos comuns. Ainda hoje lidamos com isso.
A pacificação que acompanha a liberdade e faz o estado de guerra
parecer-nos repugnante, tornou-se uma referência central da política.
Mas, infelizmente, ainda não se conseguiu encontrar um antídoto para a
guerra. Nem para a perversidade.
Compreendo muito bem o
tom irado dos defensores da pena de morte que recomendam a expulsão da
condição humana daqueles que, como eles próprios, se disponham a
despachar para de baixo da terra outro ser humano. Imagino que não se
dão conta do que dizem, o que não é invulgar em seres racionais. Mas
será que persistem em querer mandar matar alguém por (alegadamente)
sentirem uma especial repugnância por quem mate? Ou exprimem-se assim
mas querem dizer outra coisa?
Na verdade a espécie
humana não assim tão diferente dos macacos como gostamos de nos pintar.
Os machos dominantes são-no porque guardam o geniceu (as mulheres e as
crianças) e o celeiro (actualmente mais parecido com um banco). Aos
jovens machos, saídos do geniceu, uma tal ordem parece feita contra si
(o que não deixa de ser verdade). E nalguns casos revoltam-se e
tornam-se marginais.
Sermos todos iguais é
apenas um desejo contra natura e contra factual. Há que lutar pela
liberdade para evitar que a natureza selvagem se torne tão poderosa que
nos impeça de viver outras alegrias que não seja a de ver os outros
sofrer. Não admira que perante a perspectiva de uma boa luta, uns
prefiram o lado da liberdade em campo aberto, com os riscos implicados,
nomeadamente de ser vítima daqueles que, por medo, preferem acolher-se
atrás do macho dominante, para os mais medrosos e indefesos representado
pelo polícia, instigando-o a fazer aos outros o que imagina que outros
lhe querem fazer a si.
Sim, é um problema
imediato mais complicado manter a prioridade à liberdade quando a
macacada, como o Império em que vivemos, grita “à morte!” – nomeadamente
dos emigrantes, onde se inclui a diáspora cabo-verdiana. Mas quem disse
que a luta pela liberdade se faz no sofá? Não se faz certamente atrás da
protecção policial.
http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36007&idSeccao=527&Action=noticia
23 Maio 2012
A luta pela liberdade
A democracia serve para
regular a maneira como devemos organizar-nos para resolver os problemas
comuns. A democracia é uma forma de assegurar a maior igualdade possível
em liberdade. Muitas vezes esquecemos isso, de tal forma a política é
mal tratada nestes tempos de transformação social (e pessoal).
Um sinal da
perversidade dos tempos, e da ausência de espírito democrático, é a
facilidade com que se quer enviar para de baixo do tapete as misérias,
como se nos fossem alheias. Basta surgir um problema, sobretudo daqueles
que todos conhecemos e a ninguém apetece incomodar-se com ele, para a
democracia seja atirada para o lado. Mas não é precisamente para as
ocasiões de crise que a democracia serve? Ou deveria servir? A
democracia só serve para impedir o acesso dos representados ao controlo
do que fazem os representantes, alegadamente representativos?
Caro leitor,
Tome atenção até onde o
conduzi. Porque agora vai ter um choque: o encarceramento não é solução
para as crises conflituais ou para a violência. Sim, os crimes devem ser
punidos. Não, as prisões não são bons instrumentos para fazer justiça. O
Estado de direito (mesmo na teoria) ainda não encontrou forma de
ultrapassar esta tendência humana para arranjar bodes expiatórios e
sacrificá-los à incúria colectiva, à desigualdade de oportunidades. Mas
isso urge fazer, tanto na teoria como na prática. Por razões práticas e
morais.
Razões práticas:
sabe-se não existir, não ser reconhecível, em nenhum país do mundo,
qualquer correlação entre as práticas de encarceramento e as práticas
criminosos, ver por exemplo em Jock Young (1999) The Exclusive
Society, Sage. Há épocas em que crescem crime e número de
prisioneiros, como há épocas de desencontros entre as trajectórias e
volumes dos dois fenómenos sociais. Não se estabeleceu nenhum nexo de
causalidade entre eles. Há quem tenha esperança de um dia vir a ser
possível encontrar um modelo matemático sofisticado capaz de desdizer a
opinião científica dominante: não há relação observável.
O Direito terá que
encontrar formas de intervenção eficazes para assegurar a justiça, e
prevenir futuros crimes. Punindo as práticas criminosas sem recorrer a
outras práticas do mesmo tipo, mas praticadas por agentes do Estado – o
que acontece demasiadas vezes nas prisões. Estamos parados no tempo,
muito por causa do país da Liberdade, os EUA, ainda praticar a pena de
morte, o que atrai naturalmente todas as principais atenções das
preocupações públicas lá e em todo o mundo. O modelo de vida
norte-americano, porém, é cada vez mais evidente, está a vender
liberdade por segurança. Deixando-nos, na prática, a todos mais
inseguros. Do mesmo modo que as punições por vingança e para satisfação
emocional nas nossas incapacidades colectivas de evitar as explosões de
violência, onde não há pena de morte mas há as prisões da morte lenta,
também devem ser repensadas. Actualizadas.
Essa é uma frente de
luta pela liberdade e pela dignidade humanas. Dura mas indispensável
luta teórica e prática. Para que convoco os meus leitores.
http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36001&idSeccao=527&Action=noticia
22 Maio 2012
Economia, povo e estratégias de acção política
http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=35943&idSeccao=527&Action=noticia
A economia tornou-se uma ciência
monoparadigmática numa época dita de capitalismo avançado. A sua
irracionalidade e a irracionalidade da sua legitimidade pública ficou
evidente durante a crise financeira de 2007/8, quando todos notaram como
os controlos económicos estabelecidos de forma ultracomplexa e bem paga
– pagamento justificado pelas altas responsabilidades e exigentes
critérios de moralidade dos reguladores e dos decisores públicos e
privados – afinal não tinham nem eficácia nem justificação. Mas a noção
de capitalismo avançado continuou a parecer válida, para nossa
auto-satisfação, aqueles que vivemos nos países desenvolvidos. O que
sugere um capitalismo definitivamente definitivo, após as dúvidas
historicamente lançadas pelos movimentos operários, pelos regimes
comunistas, todos derrotados. A generosidade desse capitalismo
exprimir-se-á na globalização pela competitividade, isto é para criação
de uma extensa e nova classe média nos países emergentes.
Os economistas, os oficiais e os
alternativos, porém, continuam a monopolizar as explicações da crise.
Utilizam sobretudo gráficos e várias cores que pretendem demonstrativos
de qualquer coisa que os entusiasma e torna, a seus olhos, evidentes
factos contraditórios entre si. Apesar da derrota prática da economia,
enquanto prática cientificamente informada, ei-la transformada em
ideologia política cuja mensagem principal é: quem não sabe economia
deve manter-se alheado da discussão política.
Com a educação que esta nova geração tem, a
mais das gerações anteriores, mais facilmente é produzir aquela
sensação: “Não percebo nada do que diz, mas fala muito bem!”
Quando a explicação económica fundamental
sobre o que se passa é muito simples: o capitalismo tem duas formas de
lucrar: a) destruindo, no que se chama acumulação primitiva ou
expropriação; b) produzindo mercadorias com base na acumulação de valor
para as pessoas detentoras da propriedade anteriormente expropriada.
Após a segunda grande guerra a Europa Ocidental, financiada pelos EUA em
expansão interna, através da política do New Deal, teve os 30 anos
magníficos (para o crescimento económico) que desembocou nas revoluções
juvenis dos anos 60 e na crise do petróleo. Desde então os
contestatários – transformados em yuppies – e as velhas classes
dominantes aliaram-se contra a burocracia e o trabalho rotineiro,
tratando de transferir as classes trabalhadoras para os países do
terceiro mundo, guardando para si o controlo dos recursos e a estratégia
de reservar para o Ocidente apenas os sectores limpos e inteligentes.
Foi a miragem da sociedade da informação, do conhecimento e da ciência
através da globalização. A realidade vivemo-la nós.
Afinal o que ocorre é que entrámos, faz
muitos anos, na época da estratégia a) de acumulação primitiva ou de
roubo, em primeiro lugar nos países emergentes, concorrendo uns com os
outros pelo capital, criando uma classe dominante globalizante através
do esmagamento de outras propostas de desenvolvimento: “não há
alternativa à globalização!” A exportação de capitais e de patentes
industriais para qualquer parte do mundo está explicada. A contenção da
liberdade de circulação dos trabalhadores – ao contrário da doutrina
original – passou a dever-se à reacção positiva de muitos trabalhadores
aos apelos ao empreendorismo. À medida que os tempos passaram, ficou
evidente como o empreendorismo é uma ideologia de superioridade dos
vencedores fundada, na prática, no violento condicionamento das
liberdades de quem não esteja socialmente acreditado. A pouco e pouco, o
Sul começou a desenvolver-se no Norte – hoje a Europa conta com 25% de
pessoas a viver abaixo do limiar de pobreza, apesar do Estado Social –
assim como o Norte no Sul, na Rússia, na China, na Índia, no Brasil.
Diz-se a sociedade da exclusão, a sociedade penitenciária, a sociedade
do trabalho precário, a sociedade do luxo, etc. Os privilégios sociais
voltaram à Europa como apenas no século XVI se tinham conhecido. Apenas
a classe dominante beneficia da globalização, cujos lucros são imensos –
porque imensas são as massas que estão a ser exploradas pelo
capitalismo de produção – sem controlo social, já que os Estados se
tornaram de executores desta política de desenvolvimento em objecto de
ataques especulativos dos mercados seus “amigos”. A velha classe média
europeia torna-se dispensável e insustentável, comparada com as novas
classes médias e com o seu papel no enquadramento dos trabalhadores
(desempregados ou precarizados). Não só os pobres (trabalhadores ou não)
se juntam ao Sul do Norte. Actualmente toca à classe média ser avaliada
na sua inutilidade e engrossar os excluídos da globalização, a começar
pelas classes médias dos PIIGS – alvo dos ensaios políticos que mais ou
mais cedo se generalizarão a outras partes da Europa.
E onde está o povo, pá? Como pergunta os
humoristas cantores, os Homens da Luta. Se houvesse povo ele
deixar-se-ia gozar e menos prezar desta forma? De que falam os juristas
e as constituições quando se referem ao Povo como soberano, em vez dos
reis e de Deus?
Na verdade bem se pode dizer que o povo dos
movimentos operários faz tempo que desapareceu. Nos anos setenta alguns
sociólogos pensaram ver surgir novos movimentos sociais, como o dos
estudantes, das mulheres, os ecologistas, capazes de, na diversidade,
cumprirem o papel dos movimentos operários. O mais bem-sucedido desses
movimentos foi o das mulheres; melhor dito, os das mulheres e similares,
como todos os movimentos que tenham a ver com cuidar dos seres humanos e
das respectivas identidades vernáculas. Os movimentos ecologistas
criaram uma linha de indústrias verdes mas incapaz de alterar o rumo do
desastre ecológico que se anuncia. Os movimentos estudantis mantém
alguma importância mas sem nenhuma consistência estratégica. O Fórum
Social Mundial procurou contrapor à ideologia economiscista ditatorial
um espaço de convergência de todos os movimentos sociais dispersos, como
agora fazem os Indignados, os Occupy e outros que procuram organizar a
contestação à situação. Mas o povo, ele mesmo, ainda não deu sinal de
si.
Com maior probabilidade ele fará sentir a
sua presença lá onde a produção industrial explora directamente – nos
países emergentes, incluindo o Norte de África – e não tanto lá onde o
saque e a expropriação são a prática dominante, como na Europa do Sul,
neste momento. Mas a história não está escrita para o futuro e os nossos
conhecimentos muito lacunares e falíveis.
Condenados a sermos vítimas do saque,
organizado pelas nossas classes dominantes, a quem o voto organizado
pelo sistema político tem vindo a legitimar, podemos reagir? A Grécia
mostra que é possível reagir eleitoralmente. A Islândia mostrou que
provavelmente as eleições não são suficientes para fazer vincular os
dirigentes, independentemente da sua vontade pessoal declarada, às
promessas eleitorais. Lição essa confirmada pelo facto evidente da
mentira ter passado a ser admitida em campanhas políticas como tendo
direito de cidadania em grande parte dos países da Europa. Sem pressão
na rua, não haverá mudanças políticas. E os sindicatos e as polícias têm
sido chamados a prestar esse serviço à classe dominante, no quadro da
competitividade geral reclamada pela última àqueles que tenham
pretensões a não serem dispensados dos serviços, no imediato.
Mas na Europa mais a Norte continua a
viver-se como se a crise fosse culpa dos povos do Sul e dos imigrantes.
Perante as evidências, as classes médias denunciam-se mutuamente como
dispensáveis, na esperança de ainda terem direito à reforma quando
chegar a idade. Não percebendo que a questão da segurança social não é
um problema de contabilidade mas de solidariedade.
Os economistas peritos a quem os media
pagam principescamente para explicarem aos espectadores o que se passa –
sem que estes percebam na realidade nada de fundamental (senão lá se
acabava a razão de ser da função) – são os ideólogos alegadamente
científicos no nosso tempo. Eles surgiram e mantiveram-se historicamente
quando passou a ser necessário explicar a legitimidade do roubo que
passou a ser a estratégia fundamental do capitalismo, no Ocidente, a
partir dos anos 80, com Reagan e Tatcher. Instalado o sistema de
transladação da produção para fora do território Ocidental e esgotadas
as virtualidades do consumo a crédito dos países ricos (a que entretanto
foram promovidos os países do Sul da Europa), há que reorganizar os
direitos a privilégios a nível global. É o que se chama a
competitividade global entre as classes médias, abandonando os
respectivos povos como empecilhos a ascensão individual de cada um. Como
diz o nosso primeiro-ministro: “Emigrem e tornem o desemprego numa
oportunidade!” Como acontece com os imigrantes, alguns morrerão pelo
caminho, mas são os custos da selecção, vistos do alto dos privilégios
dos que servem directamente os lucros dos senhores do mundo.
À medida que se torna não apenas evidente a
estratégia de saque mas também quem são os alvos desse saque, a
democracia e o Estado de Direito, na verdade já muito abalados e
manipulados por interesses estranhos ao Povo soberano e às regras
milenares do Direito, tornam-se impossíveis de exercer. Isto é: lutar
pela democracia e pelo direito são objectivos políticos relevantes e
prioritários, a que a luta por uma outra economia deve estar articulada,
senão mesmo subordinada.
2012-05-13
Homenagem
Carta manuscrita pelo companheiro
farmaceutico grego, reformado de 77 anos, que se suicidou no dia 4 de
Abril de 2012, em frente ao Parlamento Grego.
Fê-lo no mesmo local onde passou 3 meses da
sua vida com os Indignados.
" O governo de ocupação de Tsolakoglou *
aniquilou literalmente os meus meios de subsistência, que consistiam
numa reforma digna para a qual me quotizei durante 35 anos (sem qualquer
contributo do Estado). Como a minha idade já não me permite uma acção
individual mais radical ( ainda que não exclua que se um grego tivesse
empunhado uma Kalachinikov eu teria sido o segundo), eu não encontro
outra solução que não seja uma morte digna, porque recuso procurar
alimentos no lixo. Espero que um dia os jovens sem futuro empunharão as
armas e pedurarão (enforcarão) os traidores, como fizeram os italianos
em 1944 com Mussolini, na Praça Loreto de Milão."
* O general Tsolakoglou, que assinou a
amnistia com as forças invasoras alemãs, foi o chefe do primeiro
governo grego sob a ocupação nazi (de 30/4/1941 a 02/12/1942). Na Grécia
o seu nome é sinónimo de "colaboracionista".
Crise, Corrupção e Sociedade
As evidências da nossa miséria:
Censura na Rádio:
http://ww1.rtp.pt/multimediahtml/audio/este-tempo/2012-01-24/105930
Censura na TV:
http://www.publico.pt/Media/rdp-acaba-com-espaco-de-opiniao-que-serviu-de-palco-a-criticas-duras-a-angola-1530455
Mortes silenciosas:
http://www.rtp.pt/noticias/index.php?t=Doentes-faltam-a-tratamento-por-falta-de-dinheiro.rtp&headline=20&visual=9&article=520630&tm=2
A qualidade da informação e a qualidade das ideias
Hoje foi dia de manifestação dos indignados e os jornalistas oficiosos foram
destacados para cobrir “a violência”. Em directo, no telejornal dizem
qualquer coisa como “Foi tudo pacífico, com excepção da escaramuça provocada
por um bando de nacionalistas que entrou na manifestação para provocar”. A
maneira como o pivot enquadrou as imagens, porém, já tinha feito todo
o efeito desejado: “Houve outra vez violência na manifestação dos
indignados” disse por outras palavras, ao mesmo tempo que uma nuvem de fumo
encobria gente com paus e polícias a correr. No terreno o jornalista tenta
evitar a mentira, mas sem hipótese de lhe escapar, na prática.
Na verdade apenas assisti à notícia passada num dos telejornais. Mas aposto
que esta descrição é boa para os outros. Embora todas as manifestações em
Portugal sejam ultra pacíficas, comparadas com as manifestações pacíficas
que se fazem em qualquer parte da Europa, por razões de activismo político
dos editorialistas dos media de referência os telejornais insistem em
fazer coberturas das manifestações com critérios inversos aos usados para
cobrir as guerras. Neste último caso é preciso o wikileaks para
apresentar testemunhos de crimes de guerra – e por isso os seus alegados
autores são sujeitos a tortura nos EUA, sem que isso mereça mais do que
envergonhadas e efémeras referências mediáticas ao vergonhoso caso de
condenação pré-judicial de um crime de consciência, como o do soldado
Bradley Manning, http://pt.wikipedia.org/wiki/Bradley_Manning. O que seria
se a coisa se tivesse passado na Rússia ou na Venezuela? No primeiro caso,
no caso de cobertura de manifestações hostis ao governo cuja importância não
possa ser ignorada, qualquer provocação, seja da polícia, seja dos
neo-nazis, seja de quem for, (e não é que elas sempre acontecem?) dá notícia
de primeira página, capaz de encobrir tudo o resto e de assustar seja quem
for que se possa interessar pelo fenómeno e de quem, desinteressado, passa a
ficar temeroso das consequências das manifestações para a sua vida
quotidiana.
Se isto não é censura, censura das ideias que são apresentadas por essas
manifestações, não sei o que é censura. Mas é censura feita pelos próprios
responsáveis pela comunicação, sempre a perguntar: “Digam lá o que é que
querem? Digam lá qual é a alternativa?” sem nunca darem nenhuma oportunidade
de enunciação que não seja em termos de linguagem corporal. Não se trata de
censura prévia: é censura ideológica, como num país totalitário mas, ao
contrário do que acontecia na antiga URSS, nas sociedades ocidentais actuais
é através do ruído que se impede a difusão de ideias competentes.
Ao ponto de mesmo as pessoas mais bem-intencionadas e informadas serem
capazes de dizer barbaridades com o ar de quem fez um estudo científico e
concluiu com uma ideia inovadora. O Juiz Rui Rangel, muito dado à
mediatização por convicção, apareceu num programa de entretenimento
anteontem e disse: “a maioria dos presos em Portugal são estrangeiros”.
Donde deduz que a abertura de fronteiras é um mal que permite a entrada dos
criminosos e, por isso, devia ser fechada.
Porque será que antes de fazer estas afirmações o senhor Juiz não visitou os
sites com a informação de que em Portugal 1/5 dos reclusos são estrangeiros
(e não metade) e que em Espanha, na Grécia ou em Itália – onde o número de
estrangeiros presos é muito maior do que é Portugal, uma maioria passa para
esses países através da fronteira vigiada (e não pela fronteira aberta, que
não existe com o Norte de África ou com a Albânia). Porque não leu os livros
do ministério da justiça em que se mostra como os estrangeiros são
discriminados negativamente pelo sistema de justiça, incluindo, certamente,
por juízes preconceituosos (acrescento eu lembrando-me de casos que me
vieram à memória). Como é possível que não ter em consideração o facto
científico de ainda ninguém ter conseguido mostrar haver uma relação entre o
número de crimes e o número de presos, como de resto referiu de passagem,
reconhecendo que o número de prisioneiros é Portugal é desproporcionado
relativamente à experiência quotidiana, e inferir – sem mais explicações –
que a presença de menos estrangeiros em Portugal resultaria em menos crimes?
O mediatismo tem destas coisas: por um lado, os comentadores esticam-se em
áreas que desconhecem e, por outro lado, fabricam a mensagem em função dos
seus objectivos políticos, de forma compaginada com os objectivos dos
editorialistas que os convidaram. Juntam a isso o gosto de verem as suas
frases aceites pelo público, de modo a maximizar a possibilidade de voltarem
a ser convidados. O resultado não é saudável nem para a verdade nem para o
discernimento popular.
2012-01-21
Às Claras, blog
Bom Ano Novo
Recordo-me de uma disputa,
no final de 2009, sobre como isso da corrupção ia acabar: bem – dizia um
amigo - menos bem: quer dizer, tudo na mesma - dizia eu. Nenhum de nós
imaginava que ia acabar tão mal. Afinal, ao contrário do que as nossas boas
vontades imaginavam, as troikas deste mundo estão a milhas de se preocuparem
com a corrupção: na melhor das hipóteses julgam que é o preço para
lubrificar as máquinas económicas e administrativas. Na pior das hipóteses,
aquilo que eu imagino que é corrupção é o são funcionamento do sistema.
31-12-2011
Política ou economia?
A chegada do novo ano traz
aos nossos encontros com as pessoas de quem gostamos duas prospectivas
distintas: a) o que se vai sofrer em 2012; b) o que nos vamos transformar. O
primeiro modo faz-nos sentir hipócritas quando automaticamente desejamos Bom
Ano Novo e logo nos corrigimos com qualquer graçola à situação política. No
segundo caso procuramos em quem confiar para entrarmos na luta por uma vida
e um mundo melhores.
Para mim a ideia de
convergência e alternativa far-se-á fora do quadro político tal como ele
está actualmente fechado. Sempre me pareceu a ideia de unidade de esquerda -
muito citada e jamais fundamentada entre nós - um tique ideológico nefasto,
tolerável apenas por escassez de projectos emancipatórios.
Também nunca me pareceu
essencial ter uma posição tecnicamente fundamentada sobre o que fazer com o
problema da dívida. Porque, que eu saiba, as dívidas não nascem no ar. A
dívida de que se fala - e que os governantes recém eleitos desde 2001
descobrem sempre cada vez mais gorda e disforme como justificação para
desdizerem o que tinham acabado de prometer - é uma invenção política: é uma
vigarice. E as vigarices apenas são desmontadas por um golpe emocional,
quando o otário percebe que vai ter que se assumir contra o vigaro e contra
qualquer argumento, por mais técnico que pareça.
Sigo com a atenção possível
os debates sobre como entender a dívida, nos seus meandros económico
jurídicos. Mas há uma coisa que me faz espécie: então a constituição e a
concertação social pode ir às malvas quando se trata de reduzir salários; já
os contratos de interesse dos mais poderosos têm tanta força que se debate a
introdução na constituição do limite da dívida? A minha conclusão é que há
dois mundos: aquele onde os contratos são para cumprir e um outro em que os
contratos são para rasgar e a lei do mais forte é prevalecente.
Para mim a dívida é
consequência disso mesmo: do espartilhar do mundo social em dois,
protagonizado por castas diferentes e cada vez mais apartadas entre si. Os
globalizados, beneficários da exploração planetária dos recursos e dos jogos
de bolsa. Os localizados, que não têm dinheiro para os transportes. Como se
dizia aquando da queda do muro de Berlin, o Ocidente que não se ria porque
pode viver um retrocesso semelhante à ex-URSS.
Temo efectivamente a
calamidade num país que depende de divisas para 80% do que se alimenta.
Imagino que um temor semelhante explique o comportamento "normal" dos
portugueses. Outra parte da explicação será a radical desorganização popular
levada a cabo pela democracia nestas últimas décadas, temerosa do povo que
saiu à rua em 1974/75. Se a causa da primeira limitação estratégica pode ser
assacada à direita do regime (incluindo o PS) - que conduziu as manobras de
atracagem e rendição à UE - a segunda limitação deve ser assacada à esquerda
que temos.
A falta de iniciativa e
autonomia da parte cívica da sociedade portuguesa não pode resultar do
salazarismo. Já passou muito tempo e ou o salazarismo se continuou na
democracia ou então a própria democracia adoptou para si estratégias de
censura e de obscurantismo intelectual como forma de dominação. Em qualquer
caso - tenha a democracia jamais existido ou estando ela em decadência - é
ela que é prioritário repensar: como legitimar o poder político e a
participação cívica de modo transformar a decadência num rejuvenescimento.
Nunca ninguém viu uma
cleptocracia (nem um vigarista) fazer auto-crítica, a não ser que seja
forçado a isso, depois de desmascarado. Por isso não é muito importante
chegar a acordo sobre como se irá fazer para ultrapassar o problema da
dívida. O fundamental, parece-me, é organizar uma campanha de
desmascaramento da dívida, do vigarista e do regime que impediu os sinais de
alarme de funcionarem, nomeadamente a existência de uma oposição eficaz e
livre, dentro e fora do sistema político. Não será tarefa nem apenas para um
partido ou para uma organização. Muitos programas de acção de interesse
moral e político deverão mobilizar pessoas de muitas maneiras até uma massa
crítica se sentir suficientemente segura para poder dizer o que pensa. E
agir racionalmente em favor do que esteja a pensar.
Para mim o caminho
caminhado nestes últimos meses mostrou que a convergência entre os velhos
movimentos políticos da nossa geração deve e pode juntar-se aos novos
movimentos inorgânicos das novas gerações. Que a política de emancipação -
de resto como sempre - só será viável se se alimentar das energias dinâmicas
(em grande parte emocionais) dos movimentos de rua.
Infelizmente falta muito
para termos alternativa. E os movimentos sociais continuam a ser cavalgados
pelos "conselheiros" dos partidos protagonistas de vitórias e vitórias até
às derrocadas que temos visto. A largueza de vistas e construção de
oportunidades de acção não se constroem de um dia para o outro. São, por
outro lado, uma necessidade quotidiana de sanidade social e mental.
28/12/2011
Às Claras, blog
A guerra já começou, sim
A
polícia exigiu a identificação dum manifestante (em Corroios, creio) com a
justificação que "aparecia em demasiadas manifestações", li num post. A
polícia inglesa incluiu os movimentos de acampadas na lista de
terrorismo. O Estado federal norte-americano prepara-se para fazer do
seu próprio território
um cenário de guerra, ao autorizar as forças armadas a perseguir
sem
controlo judicial cidadãos norte-americanos que entendam ser perigosos ou
simplesmente indesejáveis, ainda que os tribunais tenham julgado e
concluído serem inocentes. A internet reflecte também este
estado de guerra
através da instalação de um forte
sistema de censura.
Estas são apenas
expressões da violência política directa organizada também na Europa contra
os cidadãos, cujas expressões económicas são também
evidentes.
Há quem justamente
pense que a história da dívida é uma outra forma de fazer vingar a
táctica disciplinar própria dos cárceres denunciada por Foucault como
sendo uma das essências da modernidade. Nos EUA um terço dos cidadãos
sofreram uma experiência de
encarceramento antes dos 23 anos. Como há quem diga em Portugal, ser
arguido ou preso é algo que acontece a qualquer um.
Alguém mais atento é
capaz de se perceber isto como um
estímulo à população para entrar em regimes violentos. O pretexto começa
pela defesa dos
direitos das crianças a uma boa educação, passa rapidamente para
castigos públicos das crianças e para
trabalho escravo das pessoas assim isoladas.
Há, efectivamente,
todo um sistema em
prática que tende a alargar o seu raio de acção, como forma de
expulsar as populações excedentárias. Isso inclui a
censura de livros
nas escolas.
22 Dez 2011
“Estou-me marimbando para os credores”
É a frase do dia. Um dirigente socialista expressou-se assim e gerou muita
controvérsia. Coitados dos credores, não deveriam ser menosprezados –
disseram uns. Quem manda são os credores – disseram outros.
Estou em condições de esclarecer o assunto e dizer tudo residir num
equívoco: o dirigente pouco conhecido não estava a referir-se a Merkozy,
quando pensou em credores. Estava a pensar nos
advogados oficiosos que o ministério da Justiça, antes de lhes pagar
(com o atraso habitual e mais juros), quis ter a certeza de estar a dar
contrapartidas de serviços efectivamente fornecidos.
O ministério descobriu que não era só nos
exames para a magistratura que se copia como norma ou no Supremo
Tribunal de Justiça que se faz política (neste caso não tem nada a ver com
fax, nem
Macau nem
Universidade Independente: foi
desvio correspondência dos vizinhos). Também os serviços oficiosos dos
advogados são alvo de más práticas (como tudo em Portugal, parece). Ainda
não é certo a quem caberá ou não punições. Um grupo de trabalho está a medir
o grau de indigência dos prevaricadores para saber a quais é susceptível e
aceitável o compreensível uso do direito criminal e os que estão acima de
tais suspeitas pelo prestígio social que representam.
O critério já bem conhecido e estabelecido no sector da justiça, em especial
no sector do crime, em que há umas pessoas para respeitar e outras mesmo com
cara para condenar também funciona na economia e nos contratos de agiotagem:
há credores que esperam e não bufam, se não arranja-se um pretexto qualquer
para nunca mais lhes pagar, por exemplo metendo-os na cadeia. E há os
credores que por esse facto passam a ter direito a mandar na nossa vida,
obrigando-nos mesmo a fechar a constituição à chave, a trazer a polícia para
a rua provocar desacatos, a diminuir os salários, a aumentar os impostos, a
impor o trabalho não pago a favor dos lucros, a restringir o acesso dos
doentes aos cuidados de saúde, a acabar com a possibilidade de usar os
transportes públicos e as estradas e tudo o mais o que lhes venha à cabeça.
15-12-2011
adenda, 22-01-2012
O mayor de
Chicago aplica de jacto a
receita neo-liberal aproveitando a proximidade de cimeiras
internacionais na cidade. A actualidade das
teorias da conspiração
tornam realidade pior que os nossos piores pesadelos.
Às Claras, blog
Este Natal, presos às malhas financeiras
globais, atentemos nas prisões
Complexificar a teoria prisional é, hoje, fundamental tanto para a
democracia como para o enriquecimento das nossas vidas pessoais.
À velha ideia conformista de pensar as penitenciárias como uma forma
moderna, limpa, institucional, de lidar com quem quebra a lei, há que
contrapor a verdade.
Seja ela qual for, essa verdade terá de incluir a sujidade e a perversidade
próprias das prisões. Onde o crime se combate com o crime, a maldade com a
maldade, a violência com a tortura, a morte com a morte. É claro que as
prisões não são as únicas instituições sujas e perversas. São apenas aquelas
que simbolizam a maldade legitimada pela sociedade, aliada aos interesses
dominantes, nas costas do povo, adormecido. Quando acorda costuma acabar com
isso. Infelizmente por pouco tempo.
As penitenciárias são um dos principais modelos institucionais vigentes,
como dizia Michel Foucault. Idealmente o Estado e as polícias, às ordens dos
governos e das seitas que habitam no seio das instituições inspectivas e
judiciais, substituiriam Deus na observação radical de todos os actos
humanos. Lá, onde trabalham os serviços de informação, poderão saber tudo.
Como pretendem desesperadamente fingir os EUA que são capazes de fazer no
mundo globalizado, para disfarçar o facto de estarem a perder autoridade aos
olhos de si próprios.
Que se esforçam por
contratar cada vez mais bufos, provocadores e tropa de choque, isso é
certo. Que isso lhes sirva para conhecerem melhor os anseios e os desejos do
povo é mais que incerto: é seguro que quanto mais procuram a informação
menos alcançam a sabedoria, cf.
http://www.youtube.com/watch?v=_cu00tQp4Ng. É claro que também no
Portugal moderno se seguem as tendências da “civilização”, em particular no
campo da inibição do direito de manifestação e de expressão que tanto
continua a preocupar os nossos políticos, quase 40 anos depois da revolução
que aboliu a censura e desmantelou a polícia política: agora temos “agentes
de investigação criminal” a provocar desacatos nas manifestações, como de
resto acontece noutras partes da União Europeia, nomeadamente na Grécia, cf.
http://5dias.net/2011/12/02/o-dilema-do-macedo-demitir-ou-demitir-se-direccao-nacional-da-psp-reage-em-entrevista-as-provas-apresentadas-na-rede-relativas-a-violencia-policial-e-a-existencia-de-agentes-provocadores-na-manif/.
Procuram o Povo por entre
os manifestantes. Os que tomaram para si e para os seus as instituições
públicas sentem-se acossados. Só não compreendem que é a sua própria (má)
consciência (terão outra?) que os persegue. Mas vingam-se na mesma no
primeiro que estiver à mão.
Ora o Povo não reconhece
cabecilhas. Nem os cabecilhas são capazes de levantar o Povo. Tal como numa
prisão, a experiência mostra que o motim e o tumulto são imprevisíveis. Por
isso o que resta à polícia é provocar o mais que possa, seguindo a táctica
do contra fogo usada também pelos bombeiros. Querem queimar o que haja para
arder e assim reduzir as hipóteses de o Povo ter meios de exprimir aquilo
que vai querer exprimir, mais tarde ou mais cedo.
As prisões não são
democráticas. As provocações da polícia também não: são um serviço aos
corruptos cleptocratas que se escondem nos gabinetes, com medo de
descobrirem que afinal são simples mortais, como todos os outros. Que
grandes bestas!
2011-12-04
A democracia ainda existe?
Há que distinguir o que são
movimentos democráticos dos contributos de outros movimentos sociais para as
concepções da democracia.
Os movimentos democráticos
são cíclicos, o que levou os filósofos modernistas a afirmarem, com grande
sucesso universal, a tendência da natureza humana para a liberdade, a
igualdade e a fraternidade. Outros filósofos, cépticos relativamente à
democracia, verificam como tais movimentos de democratização das sociedades
jamais conseguiram atingir um estado próximo do idealizado (Rousseau, Thomas
More) e como, por outro lado, a democracia não assegura o bem-estar dos
povos, acabando estes por ser transformados por movimentos carismáticos,
frequentemente anti-democráticos, por vezes de uma perversidade impossível
de observar noutras espécies, de que a guerra é a forma última (Hobbes,
Nietzche).
A democracia é um ideal
disforme que se enraizou na doutrina política ocidental seja como
reivindicação popular, seja como apelo à unidade dos povos dominantes contra
os dominados, estigmatizados como anti-democráticos, ao mesmo tempo
explorados por tiranos e incapazes de impor a sua vontade.
Portugal sofreu desse
estigma, quando os aliados no pós-guerra e os países parceiros da NATO e da
EFTA aceitaram negociar com os ditadores de serviço, em nome das
democracias. Sofre agora, outra vez, quando os países dominantes na UE
decidiram tratar o nosso país como parte de uma vara de “porcos”,
constituída pelos países do sul da Europa (PIGS – Portugal, Itália/Irlanda,
Grécia e Espanha), a quem reclamam bom comportamento como a qualquer
presidiário – os crimes, nomeadamente do excesso de deficit, só são
admitidos quando as quantias são “demasiado altas”, tal e qual como o
provérbio que diz que quem roube mais de milhão já não é ladrão.
Quem é responsável? Os
representantes ou o povo? Os “responsáveis” ou os assalariados?
Internamente a Portugal, ao
contrário do que aconteceu na viragem do século XIX para o século XX, a
nossa incapacidade cívica de fazer funcionar a democracia leva-nos a aceitar
culpabilizar-nos colectivamente pela política de pedinchice e
irresponsabilidade em que nos especializámos desde 1986. “Todos somos
responsáveis”, não é? Enquanto povo, preferimos não reclamar (“porque dá
trabalho”; “porque não se vai a lado nenhum”) e recusar quem entre nós
utiliza as liberdades cívicas (“metem-se com os poderosos? Não pode ser!”)
sem ter estatuto protegido (por serem estrangeiros ou jovens ou de etnias
estigmatizadas ou simplesmente diferentes nalgum aspecto).
Mas atenção. Há uma
diferença aqui a fazer: temos sido todos irresponsáveis. Certo. Não quer
dizer que sejamos todos responsáveis. É que alguns de nós (os que têm
salários e rendimentos acima dos seus congéneres europeus e
norte-americanos; os que acumulam reformas, tachos e comendas e fogem aos
tribunais, fazendo uso de redes de políticos e magistrados amigos; os que
ganham demais e não pagam impostos) têm partilhado com os senhores do mundo
dos aumentos de rendimentos produzidos nas últimas décadas, à custa da
estagnação dos rendimentos do trabalho e da exclusão de grandes quantidades
de pessoas da dignidade própria da cidadania – por serem desempregados
crónicos, trabalhadores precários, por viverem dos projectos de
aprofundamento da pobreza e da exclusão como a criminalização da mobilidade
social dos pobres através de raras formas de aliança entre os países do
norte e do sul do mediterrâneo. Na Idade Média ou durante as guerras
mundiais os nacionalismos e as guerras religiosas dividiam povos
fanatizados, em benefício de alguns aristocratas (que se protegiam
mutuamente contra os povos, apesar das lutas intestinas e traições regulares
de que eram feitas as suas vidas) à custa dos povos. Povos esses que foram
apanhados pela ascensão do capitalismo (e a mobilidade forçada dos campos
para as cidades) para se organizarem para sobreviverem. Uma tal liberdade
está hoje em dia na ordem do dia, sobretudo para os migrantes, tanto os que
vivem connosco ou nos procuram como aqueles muitos que nunca deixaram de
sair do país à procura de uma vida digna.
Confundir e misturar a
verdade dos algozes (neste caso, os que beneficiam e continuam a beneficiar
das políticas da União Europeia) com a verdade das vítimas (aos excluídos
juntam-se agora, não sem vergonha, aqueles a quem os rendimentos são
cortados e aumentadas as despesas com o pretexto de que para o Estado o
saudável em fazer exactamente o inverso do que nos obrigam a fazer) é a
grande arma dos vigaristas. Por isso desde 2001 não há campanha eleitoral em
que no dia seguinte das eleições o vencedor não venha dar o dito por não
dito. Da última vez, ainda este ano de 2010, a vigarice atingiu mesmo um
nível superior de sofisticação. Os partidos do arco do poder anunciaram
previamente que partilhariam o mesmo programa de governo, que seria aquele
acordado (democraticamente?) com os poderes que os tutelam (a troika).
Ganhou o aldrabão com presença de espírito de dizer que ia passar a dizer a
verdade aos portugueses. Agora que é evidente que mentiu, tal como os seus
antecessores, insiste tranquilamente, como qualquer vigarista mais barato,
que sempre disse a verdade. Ele vai castigar-nos: vai empobrecer-nos, vai
tirar-nos as gorduras, vai tirar-nos os subsídios, vai construir para nós
uma boa imagem de bons pobres ou de prisioneiros bem comportados, para
apaziguar à má vontade dos nossos carcereiros. Ele, qual director de cadeia,
vai mudar Portugal, do mesmo modo que as penitenciárias mudam os criminosos:
à porrada!
Há esperança para a
democracia?
Aqueles que pretendem tudo
mudar querem que se mantenha o essencial: que os resultados da pedinchice e
da irresponsabilidade políticas continuem a encher os bolsos das classes
dominantes (as mais desiguais da Europa relativamente ao resto da
população), com o prejuízo que for necessário fazer do lado dos mais
desvalidos, por um lado, e da função pública e pequenos comerciantes, por
outro lado.
Há a esperança de que um
movimento democrático, por exemplo importado da primavera árabe, inspire a
Europa. Mas não está predestinado. Na Europa a população está muito
envelhecida e beneficia do lugar dominante no mundo – nomeadamente para
importar alimentação barata – ao contrário do que acontece no Norte de
África. Por outro lado temos problemas financeiros e políticos de ruptura
com o sistema instalado, que terá de abrir portas a outra situação. Que se
teme possa ser mais parecida com a conjuntura entre guerras dos anos 30 do
século XX do que com um movimento democrático. Tal perspectiva torna mais
urgente e relevante os esforços voluntaristas que se possam fazer em nome e
a favor da democracia.
Para isso é útil um
sobressalto democrático, nomeadamente aquele protagonizado pelos movimentos
dos indignados, felizmente espalhados por muito mundo, incluindo os
principais países do mundo ocidental. Para um tal sobressalto é importante
discutir e aprender na prática o que seja isso de democracia, ou melhor,
como dizem os nossos amigos espanhóis, a democracia real, aquela que
funciona fraternalmente.
Na antiga União Soviética
contava-se uma anedota sobre a divisão de um frango em casa de amigos. Um
deles disse para os outros: “Vamos repartir democraticamente o frango”. Aos
que os outros contestaram, para rectificar: “Não, não. Vamos repartir
irmãmente!” A democracia popular, como a democracia liberal ou burguesa, ou
outra qualquer forma democrática, pode ser e é interpretada e usada de forma
oligárquica. Para o evitar, a democracia reclama formas eficazes de
regulação, como é o caso, na constituição portuguesa, do Presidente da
República, do Tribunal Constitucional ou da Assembleia da República. O
problema, como também aconteceu com o Banco de Portugal relativamente ao
sistema financeiro, é saber se tal papel está a ser suficientemente bem
desempenhado e as instituições não estão a trabalhar fora do âmbito a que
deveriam estar comprometidas, em nome da democracia. O destino do senhor
Vítor Constâncio, socorrido pelo Banco Central Europeu depois de graves
acusações de negligências nas suas funções no Banco de Portugal é comparável
ao destino do novo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, que na
sua actividade privada foi o conselheiro do governo grego para escapar aos
controlos financeiros da União Europeia
e que, alegadamente, seria a causa próxima e moral da desconfiança dos
mercados financeiros no Estado grego.
A irracionalidade da
irresponsabilidade - o pior mal é a mentira
A experiência observada de
longe é suficiente para ser claro para todos que não apenas a mentira
generalizada tomou conta da política portuguesa como também a da União
Europeia, onde uma convocação de um referendo clarificador na Grécia fez
cair o primeiro-ministro por ordem do secretariado informal (ou será ilegal)
que dirige a União Europeia. Cá como lá, a democracia é temida e não
funciona. Não pode funcionar por decisão dos poderes fácticos que têm vindo
a conduzir a ideia de Europa a uma desorientação moral radical.
É preciso reconhecer a
existência de duas verdades em presença – a dos algozes carcereiros das
populações imigrantes, gregas, portuguesas, e outras, e a dos povos há muito
excluídos, a que a classe média assustada não se quer juntar (“nós não somos
gregos”; “nós queremos pagar”), na esperança de não ser confundida com os
pobres. Na verdade há que escolher entre uma e outra. E só uma delas terá
potencialidades democráticas, ainda que tais potencialidades não sejam
automaticamente concretizadas. Pelo contrário: o risco de guerra entre
países europeus e dentro de alguns desses países é cada vez mais vezes
referido. Como também já aparecem os promotores das ditaduras, a argumentar
– tal como os neo-nazis, entretanto desacreditados em Portugal – que as
limitações culturais do povo impedem a democracia.
O respeito ao povo como
soberano nem os “democrata” o manifestam. Eis o grande problema.
Por isso chegámos ao ponto
em que estamos: a irracionalidade mais radical e assumida no poder, alegando
a seu favor que ao menos o actual vigarista de serviço tinha avisado que não
iria faltar à verdade: “não vou aumentar os impostos” (dos ricos) eleitoral
= “os portugueses (pobres e remediados) vão empobrecer com esta política”
pós-eleitoral.
Resta-nos arrepiar caminho
e, de preferência, voltar à democracia. Como fazê-lo? Seguindo a pista
apontada por João Pina Cabral,
desenvolvendo os movimentos que dão contributos para a democracia. E quais
são esses movimentos?
A luta pela democracia
reclama convergências na acção e consciência da sua necessidade
Um dos movimentos
democráticos mais antigos identificado é a Revolução Axial,
com mais de 3 mil anos. Ao mesmo tempo que começaram a surgir instituições
estruturadas, a política organizou-se como campo auto-referencial de tomadas
de decisão, implicando terceiros em larga escala. A política foi tratada de
duas formas radicalmente distintas: a) como propriedade das oligarquias
dominantes que se sucediam, em nome de um deus ou de um herói; b) como
espaço racionalizado de participação colectiva, de que a democracia é um
exemplo, sempre limitado pelos limites da cidadania (excluente dos escravos,
dos estrangeiros e também dos inertes – por incapacidade ou por ignorância).
As lutas por valores como
dignidade ou liberdade são partilháveis por ambas as concepções (e
interesses) envolvidos nos processos de institucionalização. As lutas pela
transparência e pela igualdade, nomeadamente de acesso à dignidade e à
liberdade, são típicas da revolução axial participada (por contradição com a
revolução axial oligárquica). Onde esta revolução tenha vingado alguma vez,
a cultura partilhada entre os poderosos e os seus súbditos incluiu algum
tipo de reconhecimento do direito dos últimos a julgarem a legitimidade das
acções institucionais e a obrigação dos primeiros em facilitarem tais
processos. A célebre frase “A César o que é de César e a Deus o que é de
Deus” pode ser interpretada como a referência à disjunção entre os critérios
da revolução axial (simbolizada por César, que por muito poderoso que fosse
não poderia ser comparado com Deus) e os anteriores (em que Deus não é
contactável a não ser através dos sobrenaturais mistérios existências ou dos
êxtases dos Profetas).
Neste horizonte, todos temos
de ser democratas, uma vez a democracia experimentada. O que não significa
que alguns não trabalhem para limitar a democracia. Isto é: se a democracia
for entendida enquanto um estádio natural da existência humana, que não
depende do esforço das sociedades para a desenvolver ou recriar, a
opacidade, a confusão ideológica e mediática, o negócio da venda de ideias e
ideais, a traição dos amigos e parceiros, tudo passa à conta da liberdade e
da diferença, tornando os responsáveis em irresponsáveis (na altura de
receberem os cheques e as benesses). Deixam as responsabilidades dos cheques
por pagar e das humilhações aos povos atarantados. Como aconteceu com a
banca, com os políticos, com os media oficiosos, com os tribunais,
nos últimos anos, incapazes de um mínimo de autocrítica e, portanto, de
mudar os comportamentos.
Exemplos de movimentos
incluídos na revolução axial são os movimentos de autonomização dos
concelhos, a filantropia, os movimentos feministas, o movimento operário, os
movimentos sindicais, os movimentos para a educação popular, os movimentos
para a saúde pública, a contenção das guerras ou pacifismo, o movimento
ecológico, os movimentos de urbanidade, os movimentos pela mobilidade,
movimentos dos direitos humanos. Dentro destes movimentos, uma parte é
democratizadora. Mas outra parte é oligárquica: mesmo sabendo que usurpa o
poder, aproveita toda a opacidade e confusão ideológica para desincentivar,
nomeadamente burocratizando-os, os processos de auto-regulação social e
pessoal – por exemplo através da generalização dos currículos vitae e das
avaliações de desempenho amesquinhantes e desqualificantes.
Escamotear o repugnante:
sinal de descrédito da democracia
Actualmente a liberdade na
boca dos políticos norte-americanos quer dizer direito ao petróleo e a
negociar com dólares em qualquer parte do planeta. Movimento operário, para
alguns dos seus adeptos, não é uma ambição democrática mas hegemónica,
contra todos os outros movimentos sociais que, segundo esses, deveriam estar
(ou então ser) subordinados à oposição oficial ao status quo, na
verdade parte integrada do mesmo. Direitos humanos, estado de direito e
democracia são frases soltas utilizadas pela NATO e pela União Europeia para
dar lições ao mundo, cada vez mais céptico perante a degradação da situação
interna nitidamente suicida em que as classes dirigentes se recusam a ceder
privilégios, nem que para tal se vejam confrontadas com o desfalecer da
nossa civilização perante o mundo, nomeadamente países e povos a quem
oprimimos durante séculos.
Todos estes movimentos, tal
como a revolução axial, são contraditórios em si mesmos: são reacções a
situações identificadas como repugnantes e, em determinadas condições,
passam a ser alvo de esforços sistemáticos e transformação das condições
institucionais e de existência que reproduzem o problema. Na verdade, a sua
tematização é que torna repugnante aquilo que, de outro modo, a maioria das
pessoas sentiria como normal e não problemático, à custa do sofrimento
estruturalmente determinado de uma minoria. Pelo que a solução de um
problema levantado terá, logicamente, três soluções: a) abolir a
possibilidade de referência ao problema, tornando-o ou mantendo-o tabu; b)
abolir o problema e, desse modo, deixa de haver razão e sentido para falar
dele; c) fingir que se trabalha para abolir o problema, tornando-o de facto
tabu, num passe de mágica próprio da psicologia com que os vigaristas
seduzem as respectivas vítimas.
Não é difícil identificar
qual seja a solução modelo actualmente em curso e a necessidade, para quem
se identifique com as vítimas, de romper com esse mau-olhado, com esse
sistema perverso de sedução, exactamente igual – na sua natureza – àquele
que liga as mulheres batidas ao seu agressor (amoroso ao mesmo tempo que
espanca e amesquinha) ou as crianças ao seu abusador (que lhe traz
guloseimas em troca da violação e do silêncio). Os portugueses devem
suspender a democracia durante este mandato, diz-nos o governo. Justifica-se
por isso ser de modo a não dar mau aspecto aos senhores do mundo e a
apaziguar-lhes os nervos em que andam. Como o polícia bom, o “nosso” governo
informa de que depende do nosso comportamento no empobrecimento podermos um
dia voltar a ver a luz dos seus queridos mercados. O que ocorrerá quando o
polícia mau o permitir, como se tal situação significasse alguma forma de
liberdade ou de retorno ao passado (o que não é de facto o caso).
É preciso reinventar a
democracia adaptada aos novos tempos
A democracia é o resultado,
em cada momento, de processos de civilização que de forma nenhuma são
irreversíveis. A democracia foi mais recentemente desenvolvida pelos
iluministas, presos nas cortes aristocráticas que concentraram o poder dos
Estados modernos. Queriam e foram obtendo, através do uso das liberdades que
o conhecimento reclamava, direitos de intervenção indirecta na governação,
por exemplo através dos salões aristocráticos, eventualmente contra os
senhores que os recebiam. Esse jogo perigoso instigou muitas guerras contra
a guerra (não são todas assim?) e trouxe aos campos de batalha os povos que
foram tomando consciência de si. Ao ponto de pensarem que dispensando o rei,
o símbolo da institucionalização, poderiam tornar o próprio povo soberano.
Desde esses tempos até hoje
muito a democracia evoluiu. Deixou de ser uma ideia elitista para ser um
direito/dever universal, partilhado por pobres, mulheres, jovens até por
condenados e alguns estrangeiros. Mas o direito à participação ainda excluiu
muita gente – sobretudo estrangeiros ou (nalguns países) os presos – e,
sobretudo, excluiu a maioria das pessoas, por se resumir a política à
governança, como hoje se diz, isto é à relação entre os peritos e
especialistas (herdeiros das antigas classes liberais de cariz
aristocrático, beneficiando de liberdades especiais, como os intelectuais ou
os sindicalistas ou os representantes da sociedade civil) e os decisores
políticos e empresariais. Aos assalariados resta a posição de receptáculos
de propaganda – entregue pelos media, juntamente com as requentadas
novidades de consumo – e de figurantes nas manifestações ou nas eleições.
A democracia popular que
acabou com muito do que no século XIX era conhecido como despotismo
asiático. Acabou ela mesma contestada por não ser afinal democracia nenhuma.
Teve, todavia, a virtude de trazer o ocidente (como o leste da Europa,
também) numa luta pela democracia em função do privilégio dos interesses do
capital, de um lado, e da burocracia, por outro. A implosão da União
Soviética podia ter sido uma forma de trazer à democracia as qualidades
democráticas de servir o povo a juntar às qualidades de servir o
desenvolvimento económico, intenções posta em prática pela social-democracia
europeia – a que nominalmente aderiram muitos partidos dos países de Leste
europeu e também partidos conservadores e comunistas da Europa ocidental.
Porém, como muitas vezes ocorre, enquanto as intenções se afirmavam a
realidade da vida afastava-se para outros paradigmas existenciais, a que
actualmente se associa geralmente as ideologias neo-liberais.
Basicamente, a partir do
momento em que a democracia burguesa (mais exactamente a democracia das
multinacionais) passou a ser a democracia vencedora da Guerra Fria, a
disputa ideológica que animou a democracia deixou de ser relevante – foi o
fim das ideologias ou o fim da história, como alguns intelectuais registaram
esse novo sentimento de relaxamento relativamente à política. Em poucos anos
a política voltou a ser a porca de que nos falavam os autores populares do
século XIX, entregue à discricionariedade dos privilegiados, pessoas que não
se fizeram rogadas em se corromperem nessa mistura de gente importante, à
medida que a subordinação se desenvolvia tão depressa quanto a
repugnância/admiração das pessoas ”comuns” face ao enriquecimento ilícito e
acelerado, assim como face às cumplicidades secretas que tal gente tem de
conter dentro de si. Os privilégios, portanto, embora expostos como troféus,
são escondidos da escrutínio público pelas próprias instituições políticas,
mais preocupadas em defender os mal feitores que eventualmente albergam do
que em prestigiar a sua legitimidade democrática e do regime de que fazem
parte.
Capazes do melhor e do pior,
os seres humanos precisam de dedicar a si próprios muita atenção, se querem
evitar o pior e potenciar o melhor. Darmos por segura a democracia, eis o
momento a partir do qual ela se nos começa a escapar. Já lá vão trinta anos
a procurar dar “segurança” à “democracia”, especialmente contra os
estrangeiros. O Estado de direito e os direitos humanos são indicadores
seguros da degradação da democracia no ocidente, de que Guantanamo, Abu
Grahib, a destruição do Iraque e da Líbia, os negócios do ópio no
Afeganistão e, em geral, as guerras do petróleo enquadradas por mentiras
oficiais e oficiosas, transmitidas caninamente pela generalidade dos órgãos
de comunicação social, são provas evidentes e suficientes. A ponto de se
poder (dever?) dizer que a democracia já não existe. Que é o que melhor se
adequa dizer quando se assiste à proibição da França e da Alemanha da
continuidade do governo grego em funções, por alegada traição do
primeiro-ministro grego aos parceiros credores, à margem de qualquer
formalidade institucional na União Europeia ou na Grécia.
01 Nov. 2011
Processo de desmocratização em curso
Se um grupo de gente se
decide suicidar, aqueles de entre eles que prefeririam não o fazer podem
escolher? Em qualquer caso, uma democracia poderá lidar com uma tal
situação?
Há casos conhecidos de
seitas cujos chefes decidiram suicidar-se. E porque gostavam de ir
acompanhados, tomaram a decisão por todos os membros da comunidade. E a
maioria seguiu-os. É isso compatível com uma democracia?
A democracia não é só o
voto. Há casos em que perante uma assembleia de eleitores as alternativas
são a do profeta da desgraça e a do profeta da treta, qual polícia bom –
polícia mau que mudam e posição de modo a dominarem a sua vítima. Tomando o
exemplo português, é precisamente isso que tem acontecido desde o discurso
da tanga. É essa uma situação compatível com uma democracia?
Em Portugal as vozes
anti-democráticas nunca se deixaram de ouvir e de se encontrarem para
construírem as suas sociedades secretas, nos corredores do sistema que os
encobre e que pagam para os encobrir (são, entre outros, os chamados
empresários do regime). Mas nunca se ouviram tanto como actualmente, à
medida que o processo de desmocratização na Europa reclama por actividade
política em Portugal. E essas vozes estão no poder. Como disse Cravinho por
várias ocasiões, a corrupção é um assunto de Estado ao mais alto nível,
porque é lá que estão os actores dominantes.
Hoje é perfeitamente claro
o que ele quer dizer: os fundos de capitais roubados não têm fundo e os
contribuintes que vivem em Portugal estão a ser chamados a pagar as dívidas
dos vigaristas que tomaram conta da política e do Estado. A coisa chegou a
tal ponto que, como acontece com qualquer pessoa vigarizada por pessoas a
quem estima, são as próprias vítimas que acham que não há alternativa ao
suicídio nacional para, em verdade, manter os benefícios possíveis aos
beneficiários do sistema nas últimas décadas (muitos deles já beneficiários
de décadas anteriores também).
Diz Teixeira dos Santos que
não se pode criminalizar os políticos pois assim nunca mais ninguém quereria
assumir responsabilidades. Dizem outros que é pouco democrático falar de
classe política, porque afinal são cidadãos como outros quaisquer. Mesmo os
políticos da oposição crónica, os que estão fora do arco do poder – por
alegadamente serem pouco fiáveis do ponto de vista das suas crenças
democráticas, a ponto de os segredos de Estado lhes serem vedados, apesar
dos estatutos políticos e administrativos que possam ter – reclamam contra a
denúncia implícita na expressão classe política. Não seria preferível
reclamarem pela democracia e demarcarem-se politicamente , denunciando-as,
as farsas que temos vivido?
A questão é esta: quem quer
a democracia? Será compatível a democracia com o suicídio colectivo? Ainda
por cima um suicídio cobarde, em que primeiro se deixam morrer à fome e por
falta de assistência na saúde os mais frágeis, mantendo os profetas da
desgraça (ou do sucesso – eles são os mesmos!) os respectivos níveis de vida
e boas perspectivas no futuro, seja por já serem membros da classe política,
seja porque aspiram a integrá-la.
Há sim uma classe política:
é constituída pelos circuitos de corrupção apoiados e encobertos por seitas
secretas que dominam complexos institucionais centrados em partidos,
comunicação social, empresas de advogados, bancos, construção civil e
monopólios sectoriais. Quem não quiser misturar-se com ela que se afaste
(denunciar entra no ruído mediático como qualquer outro sabonete). Essa
classe política é representante do país na EU, ela própria pouco interessada
na democracia e muito atenta à defesa de privilégios, a começar pelos seus
próprios funcionários e gestores. Reformas mais cedo e salários mais altos.
E para que não restem dúvidas, a EU prepara-se para decretar (como se isso
fosse legítimo) a inimputabilidade criminal dos seus colaboradores. É como
se o regime nazi viesse decretar a inimputabilidade dos seus partidários na
esperança de que quando a coisa estoirasse tivessem uma base legal de
argumentação.
É a mesma lógica com que os
EUA aprovam os tratados internacionais sob a condição de eles não implicarem
nenhumas consequências punitivas para os cidadãos ou instituições
norte-americanas. É a mesma lógica pós-democrática (é mais moderno do que
anti-democrática) que está a tornar o mundo ocidental irrespirável e alvo de
uma saudável e persistente contestação dos indignados.
Não: não vivemos em
democracia, pela singela razão de que isso não existe. O que há, isso sim,
são processos de democratização, como aquele que Portugal viveu a partir de
1974. Apesar de todas as complicações e apreciações que se fazem do período
da revolução, ninguém jamais se atreveu a dizer que não era e não foi um
período de democratização. O que não quer dizer que fosse um período de
vigência da democracia, precisamente porque houve vítimas das injustiças que
ocorreram nesse tempo. A diferença é que hoje ninguém quer saber das
injustiças e todos se querem convencer que se vive a democracia, como se
nunca mais isso pudesse ser alterado. Como se a democracia pudesse ser
compatível com o suicídio selectivo e consciente dos mais fracos e nos
bastasse tapar o nariz para nos convencermos de que tudo vai no melhor dos
mundos possível.
Aos democratas resta
insistir em afirmar que a ordem de suicídio não é democrática, ainda que
sufragada por votos: nenhuma maioria pode condenar nenhuma minoria, em
democracia. Se 25% dos portugueses ou 60% (é indiferente) aceitam deixar
morrer 1% ou 5% da população sob a nossa responsabilidade colectiva, com o
pretexto de agradar aos credores dos vigaristas que traficaram e continuam a
traficar dinheiro para os seus próprios bolsos, por muito que a comissão
eleitoral, os dirigentes partidários, o tribunal constitucional e o
presidente se ponham de acordo para dizer que as instituições estão a
funcionar, cabe aos democratas mostrar que isto está nos antípodas do que
seja uma democracia (o Salazar, nesse caso, também foi um democrata: como o
nosso Estado actual, era sério com as finanças e impunha a sua vontade nas
urnas).
Hoje os nossos manda chuva
não são nacionalistas, como o foi Salazar. Mas estão, como ele estava,
preparados para matar tantos portugueses quanto necessário para manterem as
fontes de rendimento do Estado ou de quem dele se apossou. A democracia
denunciou isso, para o caso do Salazar. Precisa de ser capaz de denunciar o
mesmo no caso desta república que já nem banana tem.
O problema, então como
agora, é encontrar democratas.
2011-10-30
Quem sabe o que se está a passar?
Há alturas históricas em que a sabedoria é um valor especialmente
importante. Trata-se, no fundo, de evitar gestos falhados e economizar o
máximo de energias para obter os fins que, por um lado, são inevitáveis –
dadas as circunstâncias – e, por outro lado, reclamam acção voluntarista de
pessoas que irão ser sacrificadas para o bem-estar de todos. Vivemos uma
dessas alturas históricas.
Em tais épocas os oportunistas saem à rua com os seus ismos prontos a
vender, a tentar a sua sorte (e também a nossa). Aquilo que nunca serviu
para explicar realidade nenhuma pretende agora, quando a época da mudança
chegou, configurar aquilo que há-de vir a cartilhas conservadas em formol
para serem usadas em ocasiões de agitação. As pessoas resistem como podem a
tanta inteligência. Mais do que descobrir a roda ou a economia científica
querem, isso sim, saber o que fazer e como proceder. Nesse aspecto – é bom
insistir neste ponto e não o perder de vista – as ideologias prefabricadas
são um obstáculo. São o obstáculo da democracia. São uma cacofonia que nos
atazana a cabeça à qual, porém, é possível desenvolver repugnância e criar
anti-corpos: experimentemos pensar pelas nossas próprias cabeças, sobretudo
desenvolvamos aqueles pensamentos que mais irritam os líderes de opinião.
O saber económico, pelo menos desde o século XIX, é uma treta de uma
ideologia, misturando noções de economia doméstica com estratégia
empresarial e jogos de poder. Hoje em dia, a expansão das qualificações
escolares fez expandir também o efeito alucinogéneo da teoria económica
oficial. De que vale dizer que há economia científica – daquela que não tem
certezas mas antes tenta ajudar a compreender a realidade – quando tudo pode
ser explicado pronto a pensar por dúzias de professores de economia pagos
para irem à televisão vender a mesma ideologia que vendem quotidianamente
nas universidades, depois de terem expulsado os que pensam de forma
diferente?
Quantas pessoas aguardam para que 2013 sejam o fim da austeridade, só porque
o ministro das finanças disse ter fé de no fim desse ano o Estado poder
voltar aos mercados financeiros? Quantas pessoas vivem os dramas dos
governantes como se fossem problemas seus, sem desconfiarem que é
precisamente o inverso: os nossos problemas são o resultado do bem-estar dos
nossos governantes.
Não é preciso eles serem más pessoas para que tudo resulte mal. Basta que
sejam adversos à sabedoria que nos convém: a sabedoria da solidariedade
entre aqueles que têm mais e os que têm dificuldade em sobreviver. Como o
Salazar, podem ser excelentes amigos dos seus filhos e das pessoas que os
rodeiam. Como governantes, por serem filhos de quem são ou simplesmente por
serem formados nas nossas universidades, servem-se do Estado para os seus
fins privados como se fosse impossível ser de outro modo.
Acreditar numa ideologia, participar num partido, experimentar governar são
actos condenáveis, em si? Não. Muitos portugueses ajudaram a construir
partidos mesmo antes de eles serem legalizados, as ideologias circulam
livremente mesmo em regimes ditatoriais. A dedicação ao bem público é uma
motivação compreensível e eventualmente louvável, quando não é associada a
vícios capazes de perverterem o que de positivo isso tem. Muitos outros
manifestam-se criando partidos novos, aderindo a novas ideologias,
participando no desenho de políticas públicas sectoriais quando há alguma
abertura para tal.
Nada disso, que deve continuar a existir, naturalmente, está em causa.
Acontece nesta fase histórica de desconstrução e reconstrução social e
económica querer resistir (como dizem muitos à esquerda) ou repor as
condições anteriores à crise financeira de 2008 (como diz o governo) não só
é, na prática, a mesma coisa (uma impossibilidade!) como inibe o
desenvolvimento do trabalho colectivo necessário á adopção de uma
perspectiva sábia para a resolução do embrulho histórico em que estamos
metidos. Mais do mesmo, no governo e na oposição, bem como na sociedade
civil e nos movimentos sociais, não serve. Todos sabemos que temos que
mudar. Mas como?
Durante dezenas de anos explicaram-nos que o melhor investimento era na
habitação. Preços sempre a subir, juros baixos, longos anos de hipoteca,
permitiram a cada família assegurar à sua própria custa o direito de viver
numa habitação condigna. Os críticos explicavam que desse modo as famílias
hipotecavam também a sua vida aos bancos. E que ficariam segregadas nos
bairros de classe única. E que teriam graves problemas de transportes entre
a casa e o trabalho e para mudar de local de emprego. O que os críticos não
previram foi a crise financeira, nem podiam prever a resolução que lhe está
a ser dada.
O Banco Central Europeu assegura a estabilidade dos preços e a constituição
portuguesa assegura a estabilidade dos salários da função pública. A
concertação social assegura a contratualização das políticas de rendimentos
e preços. Quem poderia imaginar a ruptura suave que estamos a viver com o
Estado de direito e com a contratualização das relações sociais do trabalho?
Apesar das queixas reiteradas de que o Estado de Direito não existe e de que
os direitos trabalhistas estabelecidos na constituição não são respeitados,
ninguém levou (nem leva) a sério tais denúncias, que envergonhadas se
calaram. Como na história do Pedro e do Lobo, agora que o Lobo está em cima
da nossa carcaça, bem podem gritar que nos estão a roubar – é tarde.
Falta-nos a democracia verdadeira, para além das ideologias. Falta-nos uma
compreensão das razões pelas quais ficámos órfãos de dirigentes credíveis e
ao serviço do bem-estar das populações.
Uma das razões é que as nossas casas e os nossos carros, melhores que os do
vizinho, são o nosso estatuto social. Ou melhor: precisamente porque não o
são de facto, na dúvida, adoptámos o péssimo hábito de não falar ao vizinho
e fazer dos bancos e dos políticos, através das televisões e dos jornais, os
nossos amigalhaços. Eles organizaram-nos o nosso crédito e esmagaram as
nossas poupanças, tal era a confiança que depositámos em tais vigaristas. A
pirâmide que foram construindo com base nos nossos rendimentos futuros, com
base nos quais estimaram a nossa capacidade de pagar a dívida ao longo da
vida, chegou – como sempre chega – a um ponto de ruptura: os jovens já não
podem entrar no jogo e, por isso, os velhos deixam de poder ser pagos pelas
novas entradas de dinheiro – lá se vão os créditos das hipotecas, que deixam
de poder ser pagas.
Em desespero de causa, os norte-americanos ainda tentaram manter as novas
entradas com os rendimentos dos mais pobres. Mas não durou muito. Claro que
quem fez isso não sabia o que fazia. Ao fim de 30 anos os donos da pirâmide
não têm ideia nenhuma do que estão a fazer ao mundo. Limitam-se a continuar
a obra dos bandidos que antes deles organizaram tais modos imorais de se
tornarem ricos.
Assustados com a profundidade inesperada da crise e da desconfiança uns nos
outros – que lhes impedia de emprestarem dinheiro para não o perderem –
declararam risco sistémico. Entregaram aos políticos as respectivas cartas
de aliança – através das quais tinham alimentado os respectivos poderes, em
detrimento dos povos – e os Estados organizaram colectivamente (a bem da
globalização) um modo de fazer dinheiro na crise: quando não há dinheiro
(porque o papel arrisca-se a deixar de valer como meio de troca) o que há a
fazer é tomar a propriedade de coisas tangíveis: o ouro mas também
territórios, os prédios urbanos ou a nossa saúde. Trata-se de pressionar as
pessoas mais vulneráveis a entregarem os seus pertences, através da redução
dos respectivos rendimentos e sob a ameaça à respectiva sobrevivência, de
modo a obter esses resultados. É o que alguém chamou a destruição criativa.
Como base nessa nova concentração de capital, um dia alguém há-de inventar
outro tipo de sociedade, em que nova pirâmide será constituída por mais uns
anos com base nas alianças sociais disponíveis na ocasião.
Um dia o ciclo de expansão e retracção do capitalismo há-de ser quebrado. O
problema é que temos a experiência do bem-estar associado a certas formas de
capitalismo e um esquecimento selectivo sobre as perversidades morais do
capitalismo e dos impérios que ele permitiu desenvolver, nomeadamente
através de um complexo militar-industrial que está aí a distribuir bombas
com fartura nunca vista. Daria jeito uma outra fé para nos unirmos no
combate ao capitalismo. Infelizmente a história mostrou que tal unidade não
resulta nem para acabar com o capitalismo nem com os desejos imperiais.
Que raio se espera que façamos? A desobediência civil? A resistência activa?
A economia social? Sob que formas? Com que aliados?
Para já o cenário é igual a tantos outros já conhecidos na história de
épocas anteriores: gente a matar outra gente para ficar com a sua riqueza.
Neste caso a coisa, grosso modo, processa-se assim: para entrares em jogo
apostas o teu rendimento por X anos. Se ficas doente ou desempregado talvez
haja algum seguro que cubra as dificuldades. Mas quando é o Estado a quebrar
a Constituição e a reduzir os rendimentos das populações através dos
impostos e directamente através da redução de salários? Nesse caso as
garantias de pagamento aos bancos das hipotecas e outras dívidas não
funcionam. Isto é, quem paga a falência dos bancos são os seus clientes,
através da imposição dos Estados de um regime ilegal e ilegítimo de redução
drástica e generalizada dos rendimentos. Os bancos ficam com as propriedades
de quem já não pode pagar e preparam-se para novo ciclo de golpes baixos
quando o Estado “voltar aos mercados”. Isto é que é uma aliança invencível.
Ou haverá outra forma de nos defendermos da imoralidade sórdida com que esta
canalha explora a humanidade?
2011-10-16
Sobre
a democracia em 2011
Que reivindicam os contestatários?
Esta pergunta lançada sobre
todos os mais recentes movimentos sociais é um desafio que deve ser
compreendido não como um apelo à participação – que de facto não tem sido, a
não ser como logro cínico sobre a democracia participativa a que se fecham
todas as portas – mas como um teste ao sucesso do programa de anestesia
política neo-liberal.
A flexibilização do
trabalho que dá prioridade aos interesses do capital e, por isso,
desorganiza a vida social (das famílias, das comunidades mas sobretudo das
pessoas individualmente tomadas, que se tornam difíceis de prever e de
satisfazer e, portanto, de se auto-apreciarem e valorizarem – daí os enormes
problemas de auto-estima) produz efectivamente os seus efeitos. Quando as
pessoas são produzidas para valorizarem o seu próprio potencial e
desprezarem a sua vida pessoal em favor da sua vida profissional, seria de
esperar, em coerência, que a sociedade que isto reclama premiasse o mérito.
Manifestamente não é isso que se passa, não só nos países do Sul da Europa
como também nos países do Norte. O que é valorizado é o Mercado, isto é a
competitividade, isto é o resultado prático em cada momento das
circunstâncias que favorecem certo sector de actividade durante um período
curto de tempo, logo a seguir obrigado a readaptar-se ao fim da bolha tão
desejada e lucrativa para o capital e apenas mais uma experiência tornada
obsoleta a inscrever nos currículos dos trabalhadores.
Ao sabor dos ciclos
económicos, cada vez mais dependentes dos acidentes especulativos, as
competências, como diz uma corrente da psicologia, são sobretudo emocionais:
ser resiliente suficiente para aguentar algum equilíbrio e conseguir fazer
um percurso ao sabor dos acasos sem segurança – pois essa está reservada
para o capital financeiro.
Quando os adversários dos
movimentos sociais perguntam: que projecto alternativo têm a propor? Estão
sinceramente a contrastar as respectivas posições de estabilidade relativa,
que dizem ter encontrado (anos atrás, houve uma personagem da vida pública
que chegou ao ridículo de afirmar que nunca tinha estado deprimido e não
sabia o que fosse isso, como se a depressão mórbida estimada de 40% dos
portugueses fosse sinal de fraqueza), com a vida daqueles que não aceitam a
sua própria situação de instabilidade e querem fazer alguma coisa contra
isso. Sentem-se ganhadores a desafiar perdedores.
Está a chegar o tempo em
que os perdedores se começam a sentir potenciais vencedores. Seja por
imitação (o que reproduz a brutalidade estupidificante do actual pensamento
único) seja por solidariedade com os marginalizados (que obriga a uma
reestruturação da moral dominante). A moral da sociedade deve ser chamada a
oferecer condições potenciais para a estabilização da vida emocional dos
cidadãos, à bruta – através da expansão da xenofobia, nomeadamente – ou
racionalmente – no dia em que houver liberdade para pensar diferentemente.
Isso é sobretudo verdade
para os jovens – impedidos de ir a jogo – e para os países europeus
abandonados à armadilha da dívida – igualmente impedidos de ir a jogo.
Quando olham para o poder político dizem com naturalidade: isto não é
democracia! Claro que não é: a democracia é a liberdade de produzir
alternativas políticas e de vida para poderem ser sufragadas pela maioria,
com respeito pelas minorias. Ora todas as alternativas políticas actuais
são, no fundo, falsas: são meras encenações que fazem com que os opositores
ocupem primeiro o lugar do polícia bom para depois ser eleito à sua vez e se
tornarem os mesmíssimos polícias maus que o poder acabado de ser apeado. As
alternativas que poderiam surgir do povo são inibidas pelas seitas secretas
que tomaram conta do sistema partidário e pelo fechamento dos media às
ideias, em nome dos círculos de comentadores profissionais e dos acordos
político-mediáticos através dos mercados publicitários.
Quem não gosta e reclama,
leva!
2011-09-18
Espectro da guerra generalizada
Com os
juros de mais de 100% para o Estado grego e as ameaças de expulsão da Grécia
do Euro, nem os avisos da senhora Merkel aos parlamentares alemães de que o
euro e a União são os garantes de não haver um estado de guerra na Europa
conseguem ser ouvidos. A França e a Inglaterra fazem a guerra na Líbia, com
o apoio norte-americano, como forma de afastar (entre outros) a Itália do
petróleo daquele país. Em época de extrema austeridade, os estados mais
agressivos de União Europeia manifestam-se disponíveis e interessados em
fazer a guerra. E, na frente interna, ameaçam qualquer oposição – em
Portugal, o PM verbera contra motins que não existiram, e na Inglaterra o PM
pressiona os tribunais para terem mão pesada com as centenas de pessoas
presas, como resposta “firme” a amotinamentos cujo sentido nem sequer foi
problematizado (ao contrário do bom exemplo norueguês: em resposta ao
terrorismo individual bem mais mortífero que os levantamentos urbanos em
terras de Sua Majestade, o PM norueguês pediu mais participação democrática
aos cidadãos).
A atenção
nas questões económicas não deve fazer perder de vista a centralidade das
questões bélicas na vida política. Para alguns o desastre económico será
resolvido pela violência contra quem estiver mais à mão, como forma de
mobilizar coercivamente “os nossos” e esconder alianças perversas com a
corrupção e com os dirigentes fundamentalistas (por exemplo, da Arábia
Saudita e de Israel). Observando o desenrolar dos acontecimentos – e o
esgotamento dos recursos democráticos na União Europeia a favor do esbulho
financeiro mais imprudente e descarado – que se pode esperar da decisão dos
países mais ricos de mundo quando se preparam para prestar “ajuda”
financeira aos países árabes a viverem movimentos de transformação política
em todo o Norte de África e Médio Oriente? Sobretudo quando falharam
miseravelmente pela mais completa inacção a sua campanha anunciada contra a
pobreza no mundo.
A União
Europeia vive actualmente a escolha entre fazer valer a democracia e as
liberdades cívicas e políticas ou organizar a guerra contra a possibilidade
da instauração de democracias no outro lado do Mediterrâneo (que,
naturalmente, irão denunciar e impor o fim dos fundamentalismos wahhabi e
judeu, aliados perversos dos EUA e da UE). A luta dos portugueses por uma
democracia verdadeira é a forma de lutar, em conjunto com os povos deste e
do outro lado do Mediterrâneo, por oportunidades de vida e desenvolvimento
para todos e, portanto, pela substituição das relações belicistas
actualmente prevalecentes por relações de respeito e cooperação mútuos.
2001-09-13
Dissidência política
Desde pelo menos 2004 que é sentida uma depressão nacional. Mais
recentemente vive-se um sentimento generalizado de que algo tem de mudar
para ser possível continuar a viver com alguma dignidade. Tal como foi
sentido nos meses anteriores ao 25 de Abril de 1974. A este aprofundamento e
radicalização do sentimento popular corresponderam propostas de novos
partidos cujas oportunidades dentro do actual sistema são mínimas – como
mostram os resultados eleitorais. Deve notar-se também a legislação feita
para dificultar e controlar a formalização de novas iniciativas políticas e
para legitimar – a nível europeu – perseguições políticas que se venham a
entender fazer contra “pessoas em processo de radicalização” (sic).
Com o evoluir dos acontecimentos ficam mais claras as funções políticas do
actual sistema: a) submeter-se aos consensos neo-liberais globais; b) manter
organizações capazes de transplantar cabeças nos movimentos de contestação
da situação, isto é, combater todas as possibilidades de amadurecimento e
colaboração dos movimentos políticos espontâneos. Porque essas funções têm
sido bem cumpridas, a direita global mantém uma posição dominante firme na
política portuguesa (vincada pela submissão pré-eleitoral à troika) e a
esquerda nacional mantém a legitimidade desse poderio enquanto o sistema
político alimentar os respectivos aparelhos (reclama que a revolução se fará
assim haja votos suficientes de esquerda).
As iniciativas partidárias fora do sistema – geralmente sob a forma de
empresas unipessoais – sem acesso aos meios de comunicação social e sem
acesso aos meios clandestinos de financiamento político dos partidos do
sistema não têm hipóteses de sobrevivência, a não ser através de métodos que
deram nas vistas sobretudo no partido do General Eanes: foi capaz de romper
o cerco da comunicação usando a presidência da república e foi capaz de
procurar financiamentos políticos. Mas ficou fragilizado pela ganância
económica dos seus próprios dirigentes e pela exposição pública da igual
imoralidade dos eanistas relativamente aos outros partidos.
Resulta desta situação a prática impossibilidade de existir alguma
democracia em Portugal: ao deficit democrático da União Europeia associa-se
a imposição institucional do discurso único neo-liberal com uma oposição
fantoche. Não se pode dizer que a política seja indiferente à vida das
pessoas. Pelo contrário: a vida é um fortíssimo encargo na vida das pessoas,
que têm que pagar a existência da política como um fardo que cada vez as
serve menos como, para mais, se serve delas para, por exemplo, assegurar
reformas múltiplas e milionários para os mais traquejados dos políticos,
assessorias para os mais novos, em troca de perda de empregos e redução dos
direitos laborais e sociais (para não falar dos direitos culturais).
Dentro do sistema o mínimo que se pode dizer é que não há oportunidades
iguais para todos os partidos, como é evidente pela sorte que tiveram todos
os novos partidos que se constituíram para participar. Do respeito pela
vontade popular não vale a pena falar: perguntem ao movimento 12 de Março e
à associação 25 de Abril o que fizeram das suas propostas de renovação do
sistema político e o modo como lhes controlam as iniciativas políticas como
se fosse um caso de polícia.
Em Portugal, de facto, não há democracia porque não há hipóteses práticas de
controlo da vontade política do Estado por parte dos cidadãos.
Muitos são os factores que sustentam esta situação. Mas, parecendo
imbatível, este modo de viver é também insustentável, como todos sabemos
(porque o sentimentos persistentemente faz muitos meses, independentemente
daquilo que julgamos saber). A tarefa para os democratas é, sempre,
assegurar a existência de alternativas políticas reais (não basta um
escrutínio formalmente legítimo dos votos populares). Quando elas inexistem
– o BE pagou eleitoralmente caro o descrédito de ter acreditado que havia
condições para fazer a mudança de regime com votos – há que construir um
sistema político alternativo, de raiz. Só assim o povo português terá alguma
possibilidade realista de exercer os seus direitos políticos democráticos, a
sua tutela sobre o Estado, a política nacional e internacional.
Esse novo sistema político incluirá, como o actual, um espectro de partidos
da esquerda à direita solidários entre si (como são os partidos do sistema
actual) na sua implementação (primeiro) e na sua manutenção (depois). Não
será um sistema político moralmente puro, mas será, com certeza, um sistema
novo, para durar enquanto o povo português o permitir. Para isso deve
encontrar fontes de financiamento livres de corrupção e transparentes,
repudiar os privilégios dos políticos e dos seus associados nas empresas do
Estado e no mundo empresarial, em especial as empresas rentistas do regime.
Deve evidentemente abrir fora de debate político com uma agenda independente
do sistema político actual e ser capaz de tomar decisões tão democráticas
quanto possível para estabelecer programas de mobilização dos portugueses e
das portuguesas para as tarefas que pareçam bons para sacudir a situação
actual.
Se o actual sistema político for democrático (e há razões para pensar que o
seja) facilmente compreenderá que a democracia não é um dado mas sim a
sistematização de processos, cujo bloqueio torna a democracia formal
substantivamente anti-democrática. O novo sistema, se for democrático – e
devemos lutar para que o seja, em vez de outra coisa que também pode vir a
ser – não pode impedir que os partidos do actual sistema participem na vida
política. O que não pode é permitir que o hegemonizem e impeçam, como fazem
hoje, a espontaneidade, a genuinidade, as alternativas e a alternância
políticas em Portugal.
2011-08-17
O que é o economicismo?
Henry Denis (não estou
seguro e não consigo encontrar a referência certa) escreveu um livro para
explicar como uma genial concepção da economia produzida por Karl Marx se
viu desvirtuada pela interferência ideológica da sua fé no comunismo.
Na verdade, sem essa fé
nenhuma economia teria interessado a Marx. E, portanto, nenhuma genialidade
teria alguma vez sido produzida. Além disso, porque razão uma genialidade
seria cientificamente discriminada de outras só por ser ideologicamente
induzida?
Marx decidiu estudar
economia e produzir uma perspectiva revolucionária da economia precisamente
porque entendeu ser a economia política a ideologia burguesa, isto é um dos
meios mais poderosos para sustentar a hegemonia política dos capitalistas e
dos seus aliados – aristocratas por um lado, do lado do Estado, aristocracia
operária por outro lado, do lado da produção, militares por outro lado
ainda, do lado estratégico e global. O problema é saber se conseguiu dar à
mesma economia que serviu a burguesia uma torcidela suficiente para que
passasse a servir os interesses dos proletários – literalmente os filhos dos
escravos.
A experiência da União
Soviética, da China e de outros estados socialista mostra como não foi
possível ultrapassar o capitalismo de Estado em países industrialmente
atrasados, forma de capitalismo cuja rigidez não foi capaz de competir com o
maior pragmatismo dos países liberais. Isto é, a genial teoria económica
marxista, aspirante a subverter a ideologia burguesa, não conseguiu passar
de seu substituto, a favor dos burocratas capazes de submeterem a burguesia
e os trabalhadores a regimes ditatoriais em nome do (mesmo) crescimento
económico capitalista de base industrial.
Os proletários são
proletários (e os excluídos são excluídos) tanto sob o imperialismo
ocidental como sob os impérios comunistas conhecidos. A exploração e
sobretudo as misérias e violências não tenderam a diminuir na vida das
pessoas mais desprotegidas e com menos acesso a recursos. O contrário parece
ser a verdade, em balanço, embora o crescimento económico do valor das
mercadorias acima dos 3% ao ano seja capaz de promover situações políticas
de maior bem-estar para uma parte significativa da população das regiões
beneficiadas.
Poderemos, então,
sacrificar a maioria da humanidade, com fomes, sedes, mortes prematuras por
falta de assistência básica, violências próprias das situações de
degenerescência social, guerras, em nome da esperança irrealista de o
crescimento económico vir um dia a beneficiar a maioria das pessoas? Que
assim viesse a acontecer um dia, dando de barato os problemas energéticos e
ambientais, porque nos interessaria desenvolver um sistema que excluí – na
melhor das hipóteses – uma larga minoria das populações humanas? Porque nos
contentaremos com menos de um sistema que virtualmente englobe todos e cada
um em quadros de vida sustentáveis (sustentáveis para cada um e para o
planeta e não para os capitalistas, bem entendido).
O debate económico que
explora a teoria dos bens escassos, tornados escassos para poderem ser
mercadorias – como a água e o ar, mas também os cereais transformados em
carne e em energia –, pode ser substituído pelo debate económico do
planeamento central ou regulação capaz de distinguir o que seja bem público
(não sujeito a escassez, isto é necessariamente acessível a todos os seres
humanos) do que seja mercadoria. Mas, numa perspectiva de futuro, o que fará
ser este último regime económico preferível ao primeiro? Na prática, não o
foi nem o será mais por várias gerações (para evitar dizer para sempre).
Engels teve ainda
oportunidade de escrever contra as interpretações essencialistas e
economicistas dos marxistas, desvirtuando o pensamento original de Marx e
Engels. Um pouco no mesmo sentido em que Marx escreveu contra os maus usos
da dialéctica em Miséria da filosofia. O problema é que tanto o
economicismo como o mau uso da dialéctica – a bem dizer do materialismo
dialéctico e do materialismo histórico – estão sujeitos, como qualquer outra
teoria e método intelectual, a maus usos, sendo difícil distinguir o que
sejam os bons usos de entre as réplicas aos milhares que todo o sucesso
acarreta. A pureza da fé e do entusiasmo sinceros são, como sempre, traídos
pela experiência e pelo uso. Há sempre que refazer tudo de novo, mais uma
vez, de cada vez.
A economia actual faz muito
tempo abandonou o marxismo, seja o seu estudo como as referências a tal
teoria (aliás como a qualquer teoria que não seja a oficial, a da sebenta).
Compreende-se que os economistas minimamente cultos queiram e sintam
necessidade de usar o seu prestígio social profissional para mostrar a
capacidade política e de cálculo racional desenvolvido pela ciência,
tentando resgatar a sua ciência para o campo da razão. Mas isso não pode ser
razão para enfeudar a política, os nossos desejos e sonhos colectivos, a
nossa confiança no futuro, às perspectivas estreitas de uma ciência rainha
de um campo científico (das ciências sociais) espartilhado em milhentas
capelas disciplinares concorrentes entre si e sobretudo ignorantes e
desinteressadas do que se passa na realidade (mais interessadas em pequenos
jogos institucionais de prestígio, poder e acesso a recursos).
Sem dúvida que as
universidades são centros de saber importantes. Mas também são centros de
difusão maciça de ignorância pedante e exploradora da boa fé dos povos.
Pois, como não podia deixar de ser, as instituições seguem os poderes
políticos do momento, quanto mais não seja para poderem sobreviver. Quem não
o quiser fazer – porque vivemos em democracia – terá oportunidades para
passar desapercebido, servindo as instituições com as respectivas
competências, como os artistas e tutores faziam nas cortes europeias poucas
centenas de anos atrás. Assim se comportam a maioria dos professores e
investigadores universitários. Mas só terá poder quem alinhe com os poderes
do momento.
Enquanto não houver a
possibilidade de se estabelecer um poder político estável e persistente numa
política de alteração radical das culturas universitárias actuais, a
economia não deixará de ser aquilo em que se tornou – outra vez neo-clássica
e impondo um discurso único – como ocorre com todas as outras ciências, cada
uma à sua maneira. Acreditar que será possível, sem o apoio genial e
dissidente do Marx vivo e contra o poder actualmente muitíssimo maior do
pensamento universitário, orientar um pensamento económico para uma
transformação social, sem apoio político popular prévio, é por um lado
presunção e por outro lado ingenuidade.
A principal tarefa política
é … política. Não é económica. A ciência política e a economia (e outros
saberes, académicos e não académicos) devem ser solidariamente mobilizadas
para ajudar a concretizar as tarefas políticas que se venham a considerar
prioritárias. Independentemente das razões económicas ou outras, sempre
limitadas e limitativas da nossa imaginação e da empatia que é precisa para
fazer política nova.
2011-08-01
Fazer uma nova sociedade
O economicismo é o Alcácer
Quibir da esquerda, preocupada em mostrar-se melhor gestora do capital do
que a direita. Reconhecendo que os tempos não são favoráveis ao trabalho
capitalista (o assalariato) a esquerda cinde-se em duas; uma com mais
vocação de poder, centrada na gestão do capital pró-capitalista, sem
condições, e outra mais vocacionada para a resistência, enquanto tempos mais
favoráveis ao trabalho na chegam, procurando capitalizar as forças da
contestação para auto-promoção política de acordo com as regras em vigor.
Ambas as esquerdas se odeiam entre si, por serem de facto inconciliáveis,
como o capital e o trabalho sob o capitalismo o são.
Ambas são avessas aos
excluídos, sejam eles nacionais, imigrantes ou povos explorados fora de
portas, apesar de afirmarem o contrário. Isto é, ao alinharem com o capital
– por se tornarem políticos do capital (privado ou de Estado) ou por
empatarem a política com esperanças num futuro que nunca mais canta (sem
mais imaginação) – alinham com a concentração de capital, em contradição
fatal com a expansão agora global do capitalismo (à custa da humanidade e
dos direitos de grande parte da humanidade a poder existir dignamente, isto
é na perspectiva da sobrevivência e da igualdade de oportunidades).
Abandonar o discurso
economicista, e sobretudo o pensamento mágico (seja ele neo-liberal ou
essencialista) que isso implica, é indispensável para se poder pensar novas
formas de economia à esquerda, isto é em nome de liberdades para todos, e
não só para o capital (aqui incluindo capitalistas e assalariados que
trabalham no quadro do capitalismo). Mesmo as alternativas entre sectores –
cujo interesse não está em causa –, como debater se é o sector público ou o
sector social não poderiam fazer melhor se crescessem mais, está viciado
pelas práticas capitalistas de corrupção, subsidio dependência e controlo
(directo e indirecto) do Estado, seja através da legislação ou da tutela
efectiva, dos partidos, das seitas secretas ou da Igreja.
Convencida disso, da
necessidade de se libertar dos vícios intelectuais e políticos do
economicismo, à esquerda não faltariam projectos de transformação social
pacífica e ordeira para integrar os excluídos, a prazo, com respeito por uma
ordem internacional mais pacífica e menos desigual, a partir dos sectores
sociais do Estado – a quem deveriam ser reconhecidos novas funções e
estatutos. Um exemplo:
As crianças a partir dos 10
anos de idade, durante a escolaridade obrigatória e depois dela, se
continuassem a estudar, ocupariam pelo menos a metade dos seus tempos de
estudo a trabalhar em empresas e organizações dos diversos sectores de
actividade que existam nas suas imediações (num raio de cem quilómetros da
escola). Aos professores, além de promoverem a aprendizagem dos alunos sobre
as funções sociais de cada unidade de trabalho no contexto social em que
trabalha, deveriam também saber organizar a crítica da qualidade e
quantidade de retorno social, empresarial e laboral, medidos em dinheiro mas
também em outras dimensões sociais, como a pegada ecológica e os recursos
capturados (ou perdidos) pelas famílias dos trabalhadores e dos vizinhos
face à situação anterior, quando não havia aquela unidade a laborar.
Isso significaria que
passaria a ser tarefa dos trabalhadores e do capital organizar acções de
formação e de demonstração (e de também de utilização dos recursos humanos)
para professores e para estudantes. Cada unidade de trabalho teria,
portanto, que realizar obrigatoriamente mais trabalho, para além daquele que
hoje em dia é entendido como trabalho da responsabilidade da organização
(implicando mais custos e mais emprego, mas também um potencial de aumento
de qualidade social dos produtos e das unidades de trabalho sem paralelo nos
dias de hoje, com indicadores fiáveis e públicos produzidos pelas escolas).
Os professores e os seus estudantes deveriam ser usados como consultores e
reguladores, eventualmente como mão-de-obra flexível em certos picos de
trabalho, promovendo os valores ecológicos, de solidariedade social local e
internacional, fazendo a articulação entre o mercado de trabalho e as
escolas desde cedo, desenvolvendo os conhecimentos objectivos da realidade
social de todos, isto é a transparência, a produtividade, a moral social e o
bem-estar ao mesmo tempo.
Estão a ver a guerra
política local que irá ser indispensável fazer para conseguir fazer um tal
caminho? Não vale a pena?
A mesma lógica poderia ser
imaginada para expandir o sector da saúde, nomeadamente abrindo as
oportunidades de estudo do pessoal de saúde às condições sanitárias das
populações, seja nos bairros seja nos locais de estudo e de trabalho, com o
pretexto de acompanhar os estudantes e professores nas suas novas
actividades nos mundos do trabalho (por exemplo). É preciso acabar com a
medicina submetida aos interesses do capital, deixando entregues à
degradação e decadência os trabalhadores vítimas das suas actividades
laborais e das doenças a elas associadas ou às doenças de falta de adaptação
daquela pessoa em concreto com o seu posto de trabalho ou simplesmente da
sua condição social (doenças mentais, nomeadamente).
Como se percebe, há aqui
muito campo praticamente virgem de humanização das sociedades. Sociedades
essas por enquanto suficientemente ricas (no seu conjunto) para se darem ao
luxo de apostarem em imaginação de melhores forma de viver para todos, em
vez de formas suicidárias de fazer a guerra para enriquecer os podres de
ricos à custa da miséria da maioria da humanidade, sobretudo as mulheres, as
crianças e os velhos, que só pode subsistir pela guerra contra os jovens que
não podem saber disso por estarem até muito tarde nas suas vidas fechados em
escolas que servem sobretudo para esconder as realidades “desagradáveis”. O
problema é que há quem não possa evitar saber disso mesmo, por estar a
acontecer com as suas famílias e consigo, filhos de gente explorada, filhos
de gente excluída e doente, órfãos de guerra, refugiados da fome, mortos
pela sede, garimpeiros do lixo global, guerreiros crianças, etc.
Ser de esquerda é querer
mudar a sociedade. Não é querer manter o que está com medo do futuro. Mudar
mas com vista a uma maior igualdade e para mais liberdades, em contraponto à
mudança social em curso que se aprofunda no abismo da imoralidade política e
social, causa das inseguranças que, por sua vez, justificam guerras e
violências (ditas intervenções de segurança) contra as liberdades,
teoricamente vencedoras da disputa entre as duas superpotências do século XX.
2011-07-31
Dívida ou dádiva
Nas sociedades, simples e complexas, são reconhecíveis ciclos distintos em
que por ventura os mesmos valores, como por exemplo a democracia, a razão
científica, o trabalho, são interpretados de modos tendencialmente
diferentes. Num ciclo procura-se dar prioridade à integração social e
estabelecer laços de solidariedade para no ciclo seguinte se estabelecerem
formas de exclusão social e quebrar as formas de solidariedade quotidiana,
através de desqualificações de pessoas e locais, construção de condomínios
fechados, discriminações de grupos inteiros de pessoas, tipicamente tomando
por bodes expiatórios os imigrantes e os nómadas.
Atenção: não se trata de uma subversão dos valores dominantes. Não se trata
de inventar uma sociedade nova. Trata-se antes de enfatizar mais os aspectos
de comunhão ou os aspectos de segregação sociais, que sempre existem em todo
o tempo mas se tornam mais influentes numa altura ou noutra.
Por exemplo, em tempos de solidariedade intercontinental, como no tempo do
plano Marshall, não havia empresas de rating para avaliar a qualidade do
risco das diferentes moedas nacionais europeias. Não havia porque a
regulamentação internacional das actividades financeiras não estava à
disposição dos interesses especulativos, mas antes sob o controlo dos
Estados com vista a organizar a produção industrial, a reconstrução da
Europa no pós-guerra, a penetração das empresas norte-americanas na Europa
Ocidental e o respeito pela divisão de trabalho internacional com a União
Soviética, na tutela da Europa de Leste. Foi nesse tempo que se forjou a
aliança do Atlântica Norte, que ainda hoje se mantém embora por inércia,
isto é sem outro sentido que não seja servir os interesses das castas
directamente interessadas nas guerras. Era uma aliança defensiva. Quer-se
agora uma aliança ofensiva. O que também é sinal da mudança do espírito dos
tempos.
O tempo da Guerra Fria pode parecer o paraíso àqueles que vivem os dramas
actuais de forma tão agressiva como os países do Sul da Europa, apelidados
de porcos pelos economistas ao serviço dos mais poderosos, acusados de
corruptos por terem alinhado na sociedade do crédito em nome da adesão ao
modelo desenvolvido de capitalismo de rosto humano. O tempo da Guerra Fria
não foi nenhum paraíso, pois os riscos de agressão nuclear foram reais e a
vida social era tão insatisfatória que produziu revoluções, nos anos 60 e
70, entre as quais as que libertaram os países do Sul da Europa das
respectivas ditaduras. Com a solidariedade (condicionada, como sempre) dos
países mais ricos e democráticos. Foram tempos em que, apesar da crise do
petróleo em 1973 e das respectivas sequelas, os desejos de progresso
acabaram por ser cumpridos, ainda que a sociedade não tenha sido capaz (como
desejou) de tornar a solidariedade um valor prioritário, como seria próprio
de um socialismo idealizado (o socialismo real falhou também neste aspecto
e, por isso, perdeu a credibilidade tanto no Ocidente como no Leste da
Europa).
Cansados de tanta agitação e de tantos sucessos, embora menos perfeitos do
que se chegou a pensar ser necessário, os portugueses aderiram à normalidade
anti-ideológica desejada por aqueles que previram estarem a viver o fim da
história. O capitalismo (na sua versão social-democrata na Europa e
empresarial nos EUA) parecia estar para ficar, precisamente porque as novas
tecnologias de informação permitiram ligar a aldeia global em tempo real e,
assim, gerir à distância qualquer negócio, dos quais os negócios financeiros
se descobriram ser os mais vantajosos, sobretudo por não pagarem impostos e,
com tais margens de manobra, poderem organizar a defesa dos seus interesses
directamente junto dos representantes das democracias (em vez de canalizar
para o público, através do orçamento, essas verbas). As finanças perderam o
contacto com a produção e com as sociedades, e tornaram-se íntimas dos
poderes de Estado e dos meios de comunicação de massa, sem os quais a beleza
do mundo virtual seria inimaginável. A impunidade da corrupção e dos crimes
de colarinho branco são mais do que uma consequência da desigualdade
económica produzida em sociedade. É o sinal iniludível da aliança de uma
casta de agentes separados dos outros por salários centenas de vezes mais
altos que a média, com prémios anuais auto-administrados e praticamente sem
limite, independentemente dos resultados das empresas, com reformas
milionárias acumuláveis e sucessivas, com despesas pagas para si, para as
suas famílias e amigos. Casam-se uns com os outros e asseguram o controlo
dos postos chave dos Estados, mantendo através disso um corpo de
funcionários fiéis, amordaçados, viciados em disciplinas mentais
auto-limitadas (como se costuma dizer a respeito dos especialistas, sabem
tudo sobre coisa nenhuma) e em reverências aos poderosos, únicos a quem se
admite poderem ter uma visão de conjunto das coisas e da vida, a ponto de a
esquerda ter abandonado os ideais de transformação estrutural da sociedade
que sempre a caracterizou. O que ficou particularmente evidente quando a
história lhe pregou uma partida: em 2008 os próprios financeiros e chefes do
capitalismo ficaram parados, sem saber o que fazer ou dizer perante a
evidente avareza (o impagável Sarkozy dizia que era preciso refundar o
capitalismo). Durante um ano esperaram pelo que pudesse acontecer. E a
esquerda também ficou à espera, apesar de em doutrina ser a crise económica
que espoleta a crise social que será o motor da revolução. Esse silêncio da
esquerda não foi esquecido pelos povos europeus, que votaram à direita (em
quem mais?) na esperança (provavelmente frustrada) de ser possível manter o
status quo.
Vive-se a situação de já não ser mais possível viver como antes e ainda não
há energias sociais para criar novas formas de viver. Vive-se a necessidade
de encontrar formas de canalizar as poucas forças sociais inovadoras, como a
dos precários que perceberam a oportunidade de reclamarem uma perspectiva de
vida que lhes tem sido negada. Vive-se a necessidade de desenvolver um
discurso anti-economicista capaz de rejeitar os credos da disciplina
(nomeadamente a ideia de que economia é o alfa e o ómega do desenvolvimento)
como por exemplo que há que encontrar o caminho para o crescimento da
economia que seria a solução de todos os males. O desenvolvimento do
bem-estar das pessoas e das sociedades, em solidariedade, passa por parar a
economia tal e qual ela existe hoje em dia – poluente, monopolizada por
pouquíssimas empresas, na alimentação, no retalho de mercearia, nos
transportes, etc., e, sobretudo, exploradora da força de trabalho – assim
como o modelo de desenvolvimento, isto é a cumplicidade entre os
representantes do povo, os bancos e os especuladores e os grupos de
comunicação social privilegiados, ditos de referência, os sectores rentistas
que localmente apoiam este estado de coisas.
Trata-se de encontrar formas de uso da força de trabalho de cada um, a
começar pelos desempregados e precários, para seu próprio interesse, em vez
de estarem proibidos de fazerem alguma coisa de útil – a não ser procurarem
empregos que não existem. As casas devolutas ou não habitadas devem ser
colocadas à disposição dos casais jovens que querem organizar as suas vidas
e ter filhos – já que há que aproveitar aquilo que foi construído no ciclo
nacional que agora termina. Quem não tem dinheiro para pagar as suas
despesas deve poder organizar-se de modo a poder prometer compensar os
respectivos credores de bens essenciais (por exemplo, os centros comerciais)
através de serviços vários, desde a animação cultural dos espaços urbanos
até à organização de sessões públicas de apresentação e debate sobre
produtos de cinema, teatro, literatura, infantil, juvenil, para adultos,
através das quais é possível transmitir formas de solidariedade centradas na
saúde, no desporto, no conhecimento de outros povos e países, etc.
O fundamental para avançar naquilo que urge fazer, sob pena de ao desastre
organizado pelo sistema se juntarem violências sem controlo, passa pela
dádiva (sempre maior) que cada um de nós se dispuser a oferecer a quem
esteja mais próximo, não como caridade mas como aliança para uma sociedade
cansada de egoísmos e de ganâncias, onde novas formas de democracia (real,
directa, verdadeira e outras que possam querer vir a participar) possam
juntar-se legitimamente às formas democráticas já existentes e que, desse
modo, se venham a reconciliar com os povos e os interesses dos seus
representados. O controlo policial do espaço público deve ser fortemente
censurado, pois é a forma de manter as populações amorfas e comprometidas
com um regime caduco e impróprio para consumo.
Insisto: se a economia fosse o alfa e o ómega da política, como se
explicaria que nas últimas eleições se tivesse votado no partido que
prometeu aprofundar a austeridade, como forma de auto-flagelação? Se a
economia fosse o alfa e o ómega, porque será que o forte e sustentado
crescimento da produtividade não serve o bem-estar das populações, que
continuam a morrer de fome e sede, despojadas dos seus meios precários de
subsistência por empresas capitalistas e respectivos exércitos sem
escrúpulos?
A auto-flagelação explica-se do mesmo modo que o sucesso do tema musical
“Que parva que eu sou!” Mas como acontece a qualquer vítima de abuso de
poder, em casa ou no trabalho ou numa instituição de acolhimento de crianças
e jovens ou velhos (não são todos violados, mas a quantidade dos que o são
não abona nada a favor do ambiente que se vive nessas casas e, a bem dizer,
nas outras casas também), vai ser preciso muito trabalho de recuperação
emocional e mental para que a dignidade social possa emergir. Emergir e não
voltar a fechar-se, como aconteceu na revolução dos Cravos. A história a vir
dirá o que vai ocorrer.
2011-07-12
Geração feliz à rasca
Estamos numa fase de transformação social profunda. Quem duvida disso?
O problema é que enquanto o novo não se afirma de forma evidente continuamos
a imaginar ainda viver no velho sistema. Este é o estimulante dilema
clássico que nos calhou em sorte viver por estes próximos anos.
Convergência e Alternativa quer dizer, a meu ver, reunir as forças sociais
favoráveis à mudança em curso de modo a fazer frente, com o máximo de força,
aos que pretendem continuar a viver como se tudo estivesse na mesma. É claro
que tais forças se virão a tornar dominantes no futuro em função das
oportunidades estruturais abertas, mas também em função das dinâmicas
políticas (organização de intenções) que efectivamente forem concretizadas.
Portugal, portanto, está no mesmo barco que a Europa, mas tem também o seu
próprio problema específico. Será em Lisboa que se poderá decidir o futuro
dos portugueses, em função das forças que haja para tal e em reacção ao que
se for passando noutras partes do mundo, a que somos particularmente
sensíveis (por comparação à menor sensibilidade de outros povos, por razões
históricas e políticas).
A acampada no Rossio que ocupa jovens a fazer política tem nome, inspiração
e participação espanhola. Como o 15 de Maio todos a la calle foi
inspirado pelo 12 de Março em Portugal. Caberá às gerações mais velhas, as
que foram treinadas no pensamento crítico, tirar as teias de aranha dos
velhos textos doutrinários e procurar neles a inspiração para colaborar com
as gerações mais novas, como elas pedem, isto é sem paternalismos.
Não precisamos de velhas lições mas antes de velhas inspirações. Desejamos
voltar a sentir a paixão democrática de que falava Tocqueville sobre o povo
do princípio do século XIX, povo bem mais miserável e precário que os
manifestantes actuais. Os descendentes contemporâneos desse povo miserável
estão quietos e calados, reprimidos por nós próprios em bairros
problemáticos que aceitamos serem visitados sistematicamente de forma
provocatória pelas polícias, às ordens de ministros que alegam ter comprado
carros de guerra para poder lá entrar, sem que a opinião pública
anti-xenófoba tenha sequer esboçado reacção.
Democracia verdadeira, já! É isso, sim. A xenofobia, porém, é que está a
vingar. A seguir à perseguição arbitrária de imigrantes, desenvolvida há
muitos anos por políticas sem lei e sem vergonha, que fizeram dos Estados
ditatoriais do Norte de África aliados da Europa, os Estados europeus
organizam e levam à frente a repressão brutal dos seus próprios povos,
através de medidas económicas ilegais. E como aconteceu no tempo do
holocausto, o povo vota maioritariamente a favor da violência institucional
contra os bodes expiatórios que a propaganda aponte em cada ocasião.
Estamos sem democracia e estamos em tempos pré-holocáusticos, em que o medo
das transformações sociais em curso faz paralisar uma parte importante dos
povos (ainda por cima demograficamente velhos e embrutecidos por trabalho
assalariado acrítico) e abre campo à difusão de violências endémicas, entre
“etnias”, estimuladas pelos próprios Estados, à boa maneira colonial, para
dividir e reinar mais algum tempo. Os trabalhadores e os partidos são
facilmente manipulados por estas dinâmicas populistas e autoritárias, em
todo o caso bem sucedidas há décadas na Europa e em crescendo de força neste
momento, como o mostram os resultados eleitorais (e os tiques autoritários
de muitos partidos de esquerda). Nas eleições as pessoas votam em que tenha
mais poder, nomeadamente quem esteja de acordo com os poderosos do mundo,
imaginando assim evitar a violência que se desabará sobre si,
inelutavelmente, logo após as eleições.
A principal responsabilidade dos políticos democratas numa democracia é
assegurar a perenidade do regime democrático. O regime democrático significa
que em alturas de crise estejam disponíveis ao povo alternativas de
governação capazes de resolver problemas como aqueles que hoje
manifestamente enfrentamos. Na verdade os problemas que hoje enfrentamos têm
vindo a ser escrupulosamente escamoteados de modo a evitar que esta reacção
popular se tivesse produzido mais cedo. Aqui chegados, pergunta o repórter,
que reclamam os manifestantes? Onde está o projecto alternativo que querem
ver implementado?
A pergunta certa seria: quando nos faltou a democracia? Como a recuperar?
A democracia não é chantagem sobre os populares. É serviço ao povo, mesmo
quando ele não se manifesta.
Agora ao povo resta a revolta. E muito trabalho dos democratas – se é que
eles por aí existem – para reorganizar a vida política, na sua forma e na
sua substância.
O problema é económico? Sim. Dependemos de países terceiros para nos
alimentarmos. Precisamente países que nos atacam como se fossemos porcos (sic).
Países com lideranças que entendem poder vir-nos dar lições de moral (sobre
os dias feriados, por exemplo) quando são eles que trabalham menos horas (de
facto e em termos estatísticos) e obtêm mais rendimentos por cada hora de
trabalho, pela simples razão de as classes dominantes em Portugal serem
rentistas, faz cinco séculos. É quem assim acusa os trabalhadores
portugueses que produz as armas de guerra que servem para corromper
políticos (no caso dos submarinos como no caso das “ajudas”). Quando foram
eles que organizaram a estratégia económica da especialização de Portugal
como país sem indústrias, sem agricultura e sem pescas para benefício
(teoricamente solidário) de terceiros, alegadamente por produzirem melhor.
Sem todavia os salários portugueses terem conseguido aproximar-se dos
salários médios europeus, excepto no sector dos administradores de empresas
(onde os rendimentos dos portugueses superam todos os outros).
Isto é: o problema é sobretudo político. As alianças entre as classes
dominantes dos diferentes países reforçaram, em Portugal, o velho rentismo
obscurantista e submisso, capataz da civilização ocidental no dizer de
Agostinho da Silva. Banqueiros, donos dos meios de comunicação social,
classe dos políticos carreiristas, aliados da globalização, tiram dela os
rendimentos sem risco através de esquemas corruptos escandalosamente
evidentes (como a especulação urbana ou as políticas de obras públicas). É o
socialismo de que falam os partidos de direita. É o mercado de que se
queixam os partidos de esquerda. É o que não está a aguentar-se face às
investidas especulativas do capital financeiro global e à tendência suicida
e xenófoba do Euro. Mas é também, e ainda, o único modelo económico
concebido para o nosso país.
A concepção de um novo modelo económico, é preciso dizê-lo com muita
clareza, não é um projecto de tese em economia: será o resultado de um
processo político que beneficiará alguns e não beneficiará ou prejudicará
outros, em função da relação de forças políticas que estiverem presentes de
forma estratégica no terreno da produção e das instituições políticas que as
permitam afirmar-se e desenvolver-se. Ora, precisamente, o processo político
democrático, aquele que permite construir alternativas de poder
pacificamente e de forma institucionalmente regulada, está posto de parte,
está bloqueado, por acção da classe política portuguesa e europeia. O que é
preciso é romper com os processos institucionais políticos anti-democráticos
para construir outros, esses democráticos, isto é, abertos a alternativas.
Democracia verdadeira, já!
O que os jovens acampados pedem são aliados políticos. A Convergência e
Alternativa pode ser um interlocutor político desse movimento. Mas tem que
ser muito mais. Do meu ponto de vista terá que afirmar duas ou três ideias
de grande alcance:
a)
Declarar a sua ruptura com o
actual sistema político, declarando as presentes eleições como uma farsa de
democracia (não por serem susceptíveis de chapeladas, mas por serem um logro
para legitimar a desresponsabilização política das classes dominantes e
escamotear o sequestro da democracia em Portugal e na Europa);
b)
Manifestar publicamente o empenho
em reconstruir a democracia em Portugal, com outras forças políticas para
tal disponíveis (incluindo forças democráticas de direita);
c)
Organizar, conjuntamente com tais
forças políticas a atrair, fontes de financiamento do trabalho político a
encetar livres de esquemas de corrupção associados ao actual sistema
político – o que significa, na prática, desenvolver politicamente as bases
de um novo modelo de desenvolvimento para o país com base nas forças vivas
que façam convergência e, assim, sirvam de base para a alternativa concreta
a apresentar aos portugueses.
2011-05-28
Movimento de 12 de Março de 2011
É um movimento conhecido por geração à rasca e que se pode caracterizar por
ser cosmopolita, nacionalista e democrático. O que explica o entusiástico
apoio mediático à sua convocação: a maioria dos jornalistas sofre do mesmo
“mal”. Explica também a sua exaustão à partida: o nacionalismo com tradição
em Portugal é anti-cosmopolita e quem apareceu a tentar reavivá-lo
democraticamente, como o eanismo ou o Fernando Nobre, não foi bem sucedido.
A reverência e o ódio ao poder misturam-se hipocritamente, a ponto de a
organização da manifestação ter ido entregar à Assembleia da República o
espólio das sugestões de mudança a realizar, ou de circular na internet um
apelo à formação de (mais) um partido à rasca contra os partidos, para “não
perder esta oportunidade”. A confusão mental resulta da continuidade, em
democracia, das políticas obscurantistas do antigo regime, especialmente
visíveis nas escolas de Direito e nos tribunais, a ponto de o desejo de
Salazar, para além de ser popular nos concursos da televisão contagiar Otelo
Saraiva de Carvalho.
Inteligências à parte, os jovens e os seus pais mantêm entre si relações
sociais intensas de solidariedade e de amor. Para alguns comentadores
opositores ao movimento, terá sido essa a causa da insatisfação dos jovens
neste momento de embrulhada nacional – filhos família sem emprego que terão
que ir trabalhar para fora de casa. Para os jovens, de facto, a ideia de ter
de abandonar o país e os pais para integrar a sociedade ao nível a que
aspiram, pelo facto de terem formação superior, é uma angústia. Que não o
seja para o país é que é extraordinário!
No fim dos anos 60, a ditadura impediu a publicação dos Censos para evitar
que se soubesse do recuo demográfico dos jovens camponeses imigrantes para
França e Alemanha. Em 2011 esperamos pelos resultados dos Censos que já se
sabe vão registar o perfil de uma sociedade sem potencial demográfico para
reconstruir o tecido económico. A diferença é que os poderes instituídos
hoje nem podem nem se preocupam em esconder tais dados. Isto é, o trabalho
deles – pagos como se fosse para fazerem política – é gritar tão alto e
tantas coisas contraditórias de modo a que o efeito de obscurantismo seja o
mesmo que no regime anterior.
40 anos antes, quando tínhamos a idade que eles têm hoje, não podíamos sair
do país legalmente e a nossa moeda era tão fraquinha que se esgotava
depressa nos países ricos. Hoje em dia os nossos filhos e netos podem sair
com outro à vontade e sem serem tratados como escravos. É isso que muitos já
fizeram e muitos mais irão fazer. O que nos torna a nós, geração de Abril,
solidários com a geração à rasca é que sem o seu apoio emocional no
dia-a-dia ficamos mais pobres, mais velhos, mais isolados, mais
desesperançados e até em maior risco, já que, na prática, as nossas reformas
contratadas com o Estado serão reduzidas – na verdade privatizadas – ao
ponto de sermos nós, com a nossa existência, quem irá servir de âncora para
as remessas dos imigrantes que hão-de servir, no futuro, para pagar os
negócios actuais do Estado com o FMI e os bancos.
O regime democrático está esgotado. Mas insiste-se em que não há outro
regime democrático possível em Portugal a não ser o protagonizado pelos
bandidos que nos trouxeram até aqui. O governador do Banco de Portugal já
pediu responsabilidades. Mas que sistema judicial têm credibilidade para
julgar? Ou estará o senhor a apelar a julgamentos populares? Presididos
pelos banqueiros? Precisamos de um movimento democrático, sim, mas contra a
democracia que temos: há-de haver melhores, porque esta já não serve a
ninguém a não ser aos corruptos.
Para muitos, mais do que no antigo regime, por enquanto, há a possibilidade
de imigrar. Mas há também quem não aceite isso assim, sem primeiro
manifestar o desejo de permanecer em Portugal: foi o que fez a geração à
rasca, antes de partir. Os jornalistas, como todos os profissionais cuja
especialização depende da língua, são particularmente sensíveis a isso.
Pudera, noutros países europeus terão de reaprender a falar e dificilmente
se libertarão de terem nascido falantes de português. Resta-lhes o consolo
de termos uma língua que se adapta bem a qualquer outra e sermos nisso
melhor que os demais.
Tal como no tempo da fundação da república em Portugal, está mais uma vez em
causa a dignidade nacional mínima. Gostávamos que os olhares xenófobos do
Norte não nos confundissem mais com Marrocos (sem desprimor para estes).
Sabemos que para que isso aconteça temos que assumir uma posição e até
sabemos qual é a posição: negar o actual regime político e estabelecer em
liberdade uma democracia mais igualitária e com esperança. Como fazer isso
sem pancadaria, é isso que ninguém sabe e, por isso, ninguém se atreve a dar
um passo. Ou sequer romper mentalmente com a podridão ambiente.
Lembraram-se, e bem, o Movimento de 12 de Março de ameaçar com a debandada,
cumprindo o desígnio cosmopolita da estratégia abrilista. A nação, assim
como assim, já está entregue. Ou ainda resta alguma coragem (e liberdade)
para afirmar indignação pragmaticamente útil?
2011-04-28
Geração à rasca
Depois das
manifestações de hoje, dia 12 de Março de 2011, a democracia, a sociedade, o
povo voltaram a estar na ordem do dia, após se ter chegado a pensar que tudo
isso eram conceitos do passado – e ainda há muita gente que assim o entenda, só que teme fazer provocações a tal tsunami.
O povo da
unanimidade contra a situação fez-se mostrar. Hesita entre ser contra o
regime – quando relembra o 25 de Abril de 1974 – ou contra o Sócrates, bode
expiatório da desgraça nacional. A sociedade reclama por “medidas” – o que
fazer? Onde trabalhar? A quem servir: a economia portuguesa ou a economia
alemã? Mas é da democracia que todos sabem não existir que os comentadores
mais reclamam a misteriosa existência.
Gostam de
chamar à colação os povos do Norte de África para explicar – porque é
precisa, sim, uma explicação – que as ditaduras eram lá que moravam. Porque
aqui mora a democracia. Mas de que democracia falam os comentadores? Para
usar uma expressão hipócrita muito utilizada na análise das decisões
judiciais, falam de uma democracia formal. Parece uma democracia! Na
substância a política tornada profissão exclusiva de seitas secretas e
especialistas de pacotilha tem uma forma de enxotar observadores
inconvenientes sobre o modo como os portugueses têm vindo a ser roubados faz
décadas. É por querem ficar com tudo e não deixarem nada, como diz a canção,
que fizeram dos partidos aquilo que são hoje: esquemas de compadrio,
promotores da empregabilidade dos seus apaniguados, alimentador do
terrorismo ideológico (como o dos temores lançados de haver entre os
manifestantes aproveitadores para organizar distúrbios que só interessariam
aos poderosos – pelos vistos nem a esses interessaram).
Não. É
preciso dizer claramente: não estamos nem vivemos em democracia! A prova
disso é que estamos sem alternativas. Os ladrões que tornaram o ambiente em
Portugal irrespirável e se dizem peritos em política não são democratas: são
políticos, isto é, para o povo efectivamente ladrões.
Esta
verdade por ser simples não é demagogia. É só a verdade. E é uma verdade sem
a qual não se poderá fazer política em Portugal.
A principal
responsabilidade dos políticos democratas numa democracia é assegurar a
perenidade do regime democrático. O regime democrático significa que em
alturas de crise estejam disponíveis ao povo alternativas de governação
capazes de resolver problemas como aqueles que hoje manifestamente
enfrentamos. Na verdade os problemas que hoje enfrentamos têm vindo a ser
escrupulosamente escamoteados de modo a evitar que esta reacção popular se
tivesse produzido mais cedo. Aqui chegados, pergunta o repórter, que
reclamam os manifestantes? Onde está o projecto alternativo que querem ver
implementado? Isso é como perguntar ao político se tem emprego! É uma
pergunta encomendada pelos políticos para os jornalistas imbecis fazerem às
pessoas para as continuarem a amesquinhar.
A
democracia não é isto! Se tivesse havido democracia em Portugal nos últimos
anos, a desmobilização popular não teria sido aproveitada para o saque do
tesouro e para impedir qualquer transparência e regulação da vida política.
Os não votantes teriam sido considerados gente a conquistar para a
participação em vez de inculpados do desgoverno. A democracia não é
chantagem sobre os populares. É serviço ao povo, mesmo quando ele não se
manifesta.
Agora ao
povo resta a revolta. E muito trabalho dos democratas – se é que eles por aí
existem – para reorganizar a vida política, na sua forma e na sua
substância. Será possível fazê-lo a bem?
Não seria a mesma coisa!
Os dias mediáticos têm sido ocupados com as presidenciais e o homicídio de
um colunista social lisboeta em Nova York. À medida que a política cai no
vernáculo e a vida privada se torna reality show, tudo se confunde ao
nível dos costumes, como muito bem assinalou um politólogo comentador.
O que haverá em comum na homossexualidade pontual de um homofóbico – que,
segundo se diz nos jornais, enlouqueceu um jovem manequim que queria subir
na vida pendurado no sexo de um velho poderoso – e a alegada vitória
eleitoral, em tempos de austeridade brutal e desigual, do candidato
presidencial mais à direita incapaz de explicar porque usa a amizade
política de pessoas inculpadas de graves crimes económicos para fazer render
os seus créditos políticos?
Para além da falta de verticalidade da honra auto-proclamada, há em ambos os
casos um indesmentível pendor popular. Pode comparar-se, julgo, a corrente
de solidariedade à volta da igreja da terra do homicida ao gosto do
candidato presidente pela proximidade dos párocos. Em ambos os casos o povo
gosta dos seus, isto é da homo-homofobia dos que querem subir na vida e da
exploração das crenças pelos crentes mais poderosos. Esta é a filosofia do
desenrasca: aproveita-se o que esteja mais perto e mais à mão. Ai de quem
denuncie as contradições ou as perversidades. Já Eça conhecia os críticos da
sujidade própria quando ela era exposta a público. Nesta terra os únicos
culpados são os mensageiros, além dos suspeitos do costume – porque estão
socialmente isolados ou estigmatizados pela autoridade, também ela
autoritária.
Como poderia ser de outro modo? A autoridade deve ser autoritária, como a
homofobia deve ser homossexual, como o negócio deve ser compadrio entre
privilegiados. Desafia-se por uma melhor explicação para a quantidade de
eleições em que os indícios de corrupção – municipais, partidárias,
legislativas ou presidenciais – não têm efeitos nas votações! Desafia-se por
melhor explicação para a impunidade dos amigalhaços em contraste com a
dureza dos que não têm estofo para alinhar em imoralidades, esses radicais
intoleráveis que perdem a razão pela forma como a expõem.
Podíamos ter outros patrões? Poder podíamos, mas o povo não seria a mesma
coisa! Haverá por aí outro povo?
2011, Jan 15
A esquerda morreu! Viva a esquerda!
À tese da crise objectiva
do capitalismo, declarada por ele próprio, no fim do ano de 2008, seguiu-se
a prova de que nenhuma ideia de esquerda sobejou do colapso da ex-URSS.
Repararam na satisfação com que tanto cretino (à esquerda e à direita) se
lembrou de dizer o óbvio: que Karl Marx afinal sempre teria tido razão? O
que não disseram foi que o Marx foi um revolucionário a surfar uma
revolução. Mas o que fazer quando não há revolução na rua e se quer ser de
esquerda?
Distraído como sou,
imaginei que a queda do muro de Berlim significasse para o debate de ideias
uma libertação. Na altura tudo estava condicionado: ou se era a favor do
capitalismo ou a favor do socialismo, como se apenas existissem duas ideias
correspondentes a duas realidades (o que era manifestamente estúpido, mas
era assim que se pensava, seja o vulgo sejam os cientistas sociais). A
liberdade, porém, não é o estado natural das sociedades abandonadas a si
próprias. Caso não existam movimentos de libertação não há liberdade. E o
que temos visto na era pós-colonial são movimentos de libertação – muito
associados a processos de individuação, lá onde haja condições para tal – a
que também chamamos (erradamente) movimentos sociais (por vezes sociedade
civil, solidariedade, etc.) mas fora de qualquer perspectiva socialmente
revolucionária. Em Portugal, em particular, a perspectiva de emprego já não
é uma perspectiva de trabalho. Como se costuma dizer, os portugueses
recusam-se a fazer certos trabalhos e, portanto, recusam-se a sacrificar-se
pela sociedade, com o risco de perderem um pouco o sentido das realidades,
de tal maneira as realidades são encobertas com camadas de informação.
Alguém dizia que caso
Portugal queira ou seja obrigado a sair do Euro o valor das mercadorias em
Portugal seria imediatamente reduzido a um terço (ou mesmo um quarto) do
valor actual. O que quer dizer que a nossa estadia no Euro fez crescer
especulativamente o valor à nossa disposição por 3 ou 4 vezes, de que alguns
espertalhaços aproveitar mais que os outros. Mas afinal a economia, numa
grande medida, é política e poder em estado puro. O poder de a zona euro
aceitar lidar com os portugueses (e com cada um dos outros países) lá para
os fins económicos que entendem ser bons para quem lá mande naquilo. Ora,
será a esquerda capaz de dizer aos portugueses como se devem comportar em
tais circunstâncias? A mim parece-me que não. Porque os portugueses, apesar
da falta de educação, não são parvos, como nenhum povo no mundo. E
compreende muito bem ser verdade aquilo que a direita lhes diz: “nós somos
do primeiro mundo!” As expectativas de vida que a generalidade dos
portugueses imaginou em jovem foram em grande medida ultrapassadas pela
realidade. Nos países europeus mais habituados a viverem no centro do
capitalismo, onde as expectativas de vida são decrescentes faz pelo menos
vinte anos, a reacção dos povos à situação actual também não é
revolucionária. A crise objectiva – isso é mais que evidente – não produziu
numa crise subjectiva. Verificado isso mesmo, passados alguns meses após a
declaração oficial da crise, a direita volta ao ataque e impõe a continuação
e aprofundamento da política anteriormente seguida. Porque haveriam de mudar
ou sequer puxar pela cabeça se não têm oposição.
Ser de esquerda, nos dias
de hoje é um pouco vergonhoso. Por isso os jovens preferem ser de direita,
da mesma maneira que muitos “gostam” do Benfica. Tal partido vem de mais
longe, tem mais tradição e está a ganhar os campeonatos. Por isso, também,
encontramos na actividade cívica e política barreira geracionais
importantes, que implicam a necessidade de um trabalho em profundidade à
esquerda, sobretudo na crítica teórica e também na prática de mobilização,
para poder vir a ter possibilidades de mudar de rumo algum dia. O estado a
que a esquerda chegou está bem patente nas eleições presidenciais que aí
vêm: o antigo candidato dos “movimentos sociais” tornou-se o defensor do
desacreditado Sócrates, na esperança de o PS voltar a ser um partido com
ambições à esquerda. A esquerda propriamente dita, essa, está fora de jogo.
Perdoem-me os comunistas por não os meter nesta equação, mas a minha ambição
para a esquerda é a de assumir a governação, caso venha um dia a saber o que
fazer em tal posição.
30/06/2010
Portugal para o mundo – mar, transparência,
direitos humanos e ecologia
O fim de ciclo semi-milenar colonial das Descobertas traduziu-se numa
redução da política externa portuguesa ao continente europeu (e à submissão
deste aos desígnios desastrosos da política norte-americana que antecipou a
decadência da hegemonia ocidental no mundo) quando, pela natureza das
coisas, Portugal está vocacionado para políticas marítimas, como é evidente.
A caricatura da vocação marítima portuguesa é o abandono das zonas
exclusivas, a litoralização da população e a desertificação política do
interior, em favor da especulação imobiliária, dos negócios do crédito e da
fuga ao fisco, da manipulação partidária dos impostos e das populações,
enfim, das alianças políticas entre grupos privilegiados, organizados
oligarquicamente, que transformaram a crise financeira internacional no
descrédito da política e – o que é mais grave – da credibilidade das
instituições.
A Europa connosco foi um brevíssimo ciclo da vida portuguesa que
adiou a tomada de novas decisões geoestratégicas para orientar os destinos
portugueses nos próximos séculos, pago em fundos que alimentaram a
organização da corrupção, do caciquismo, do compadrio e finalmente das
seitas que tomaram conta do Estado, geralmente por via partidária mas também
por via das instituições e das organizações da sociedade civil, enlaçadas
entre si em torno de privilégios, evidentes quando se trata de observar os
direitos a múltiplas e chorudas pensões de Estado de uns poucos, por acaso
aqueles que decidem a redução das pensões singulares da maioria ou pouco
fazem para impedir o desemprego e a precariedade no trabalho e na vida dos
mais jovens.
As instituições não servem os interesses dos portugueses: isso já é evidente
para todos e é inegável. A questão é saber como se sair desta situação,
sendo também certo que nela não será possível ficar por muito mais tempo.
Face à disputa entre os dois mais representativos candidatos à próxima
eleição presidencial sobre qual deles melhor assegurará a manutenção do
actual governo e, ainda que sem ele, as mesmas orientações políticas – por
exemplo, debaixo da batuta do PSD e do CDS – resta-nos constatar a
insanidade mental e política não apenas dos candidatos mas do próprio
sistema político no seu todo. O que não é de admirar, dada a evidência de
jamais algum Presidente da República se ter oposto ao disfuncionamento das
instituições e aos desrespeito pela Constituição e pela Lei em geral, como
seria seu estrito dever e como consta do juramento solene, entretanto não
honrado, tornando a política numa mentira, de que o actual primeiro ministro
é apenas um símbolo e um bode expiatório. Não que esteja inocente, no
sentido técnico, mas porque tenha sido nado e criado neste ambiente de
falsidade e de perversidade que hoje todos reconhecemos ser a vida
portuguesa.
A campanha presidencial é uma oportunidade para, quem entender assumir as
suas responsabilidades cívicas nela participando, abrir caminhos para o novo
grande ciclo político que vem aí, mesmo contra a vontade dos mais poderosos.
Quem o fizer estará a contribuir para – caso a discussão franca e aberta
venha ser a possível e a saibamos, pela nossa parte, organizar – que o novo
ciclo não seja mais um desastre histórico para a Pátria, de que temos alguns
exemplos na nossa longa história, mas sim um renovar da esperança nas
pessoas, na vida e na humanidade.
No fim do mandato do novo Presidente o mundo terá mudado de centros
políticos e económicos. Portugal terá que se reposicionar proactivamente e
tem boas condições para o fazer. Essa será a única forma de assegurar a
reversão de algumas das tendências nefastas que temos vivido, a nível do
ordenamento do território, da demografia, da educação e da justiça,
nomeadamente, a que nenhum interesse estrangeiro atenderá se não formos nós
próprios, os portugueses e quem queira viver em Portugal, a definir metas e
traçar estratégias realistas para as atingir. Portugal teria vantagem em
eleger um Presidente da República, em vez de mais outro “Presidente de todos
os portugueses” que têm sido, na prática, encobridores da corrupção das
instituições e cúmplices – ainda que populares – do estado a que isto
chegou. Precisamos de um Presidente capaz de cumprir o juramento a que está
vinculado, em vez de trânsfugas da honra, cuja função é fingirem estar
despossuídos de poder.
O próximo Presidente, quer queira quer não, será confrontado com um mundo em
acelerada mudança e, por isso, deverá deixar claro para que lado preferiria
ver Portugal inclinar-se e para que lados não irá deixar Portugal
reclinar-se. As intenções de apoio a governos decadentes e desacreditados
como o de Sócrates não apenas são hipócritas como são ensaios de
desresponsabilização pessoal na continuidade das políticas corruptas e
obscurantistas que nos têm conduzido até aqui. Não precisamos de D.
Sebastião: precisamos de um Presidente da República!
Portugal deve discutir urgentemente a sua relação com a China, a nova
potência global, à qual as economia e política global, previsivelmente, se
conformam e continuarão a conformar por muitos anos adiante. De que modo as
nossas relações com a China poderão potenciar a nossa relação com os mares,
coisa que a relação com os EUA não favoreceu. Temos a oferecer o respeito
que temos pela cultura chinesa e devemos reorganizar o ensino em Portugal em
função dessa nova orientação, incluindo uma revisão dos valores portugueses
em função das doutrinas dos Direitos Humanos, do Estado de Direito, dos
princípios de transparência e de regulação institucional, em parceria com os
Chineses, em favor do aprofundamento das relações entre Europeus e o Império
do Meio, de que novamente devemos, podemos e temos interesse em ser os
precursores.
Tal orientação geral deverá ter em conta as nossas inserções tradicionais no
mundo e potenciá-las, seja relativamente à Europa e à América do Norte, seja
relativamente aos países lusófonos, seja à Ibéria e países do Sul da Europa
ou ainda ao Norte de África.
Nesta perspectiva há que ser arrojado na disponibilização de pessoas e
recursos para implementar políticas democráticas benéficas e solidárias, de
acordo com as melhores tradições liberais (no bom sentido, como se costuma
dizer) e de esquerda ocidentais, na perspectiva da afirmação de modelos de
desenvolvimento garantes do bem estar social, coisa que não está a ocorrer
com o actual modelo adoptado no ocidente (e, por isso, não se percebe porque
se insiste nele, a não ser na perspectiva de manutenção de privilégios de
minorias cujos interesses se revelam cada vez mais contraditórios com o
interesse público e geral).
Portugal é um país de emigrantes; terá que ter políticas de emigração que
favoreçam tal emigração e a organizem em favor da paz e do interesse
nacional. Por exemplo, numa altura em que as pensões sofrem graves revezes,
os seus beneficiários que estejam em condições de o fazer, poderiam ser
estimulados para emigrarem para países onde as suas capacidades possam ser
utilizadas – capacidades profissionais e capacidades de consumo através da
pensões que têm – e os seus recursos potenciados, tendo em conta a paridade
entre as moedas locais e o Euro. Tal movimento jamais se fará sem uma
organização Estado a Estado, em função de interesses comuns. Mas como em
muitos casos há problemas demográficos inversos (excesso de jovens
abandonados de um lado e excesso de pessoas de idade abandonadas do outro),
a globalização poderia servir para reequilibrar a situação e Portugal
poderia tornar-se rapidamente e novamente um país rejuvenescido, através da
imigração organizada em função dos valores da política assim desenhada.
20/06/2010
“Presidente de todos os portugueses”?
Faz já uns anos que a
demagogia tomou conta do Palácio de Belém. Adoptando uma versão pós-moderna
da união nacional salazarista, os sucessivos Presidentes da República têm
aceite desresponsabilizar-se das funções que juraram desempenhar quando
empossados a coberto da velha política do “não se discute” o interesse
nacional. De outro modo, como seriam presidentes de todos os portugueses?
Como bem sabe o povo, os nossos presidentes – por vezes conhecidos como
semi-presidentes, segundo as complicadas teorias políticas em que se
formaram – servem para não fazer nada. Os jornalistas interpretam isso como
subtis ou mesmo subliminares estratégias para manterem o prestígio nas
sondagens e assim assegurarem a reeleição (mesmo quando, nos segundo
mandatos, ela é impossível).
Talvez seja bom começar a dizer-se que o acumular de prestígio nas sondagens
– singular, para uma instituição democrática – seja qual for o Presidente em
exercício, se deve à irresponsabilização organizada pelo sistema político,
em geral, e que tem tido por cúmplices os sucessivos Presidentes desta
república em tempo de saldos. Talvez seja bom começar a compreender-se como
a corrupção das instituições foi possível nas barbas do Presidente sem que
este, garante do respeito pela Constituição e pelo regular funcionamento das
instituições, tenha mexido palha.
Fartámo-nos de ouvir o PCP gritar que a constituição estava a ser violada. E
estava e está, como é evidente. O próprio PCP deixou de reclamar, tendo
compreendido por um lado a incapacidade do espírito de legalidade ter algum
curso neste país, e por outro lado ficando claro ser o próprio sistema
judicial incapaz de, no seu interior, estabelecer critérios mínimos de
fiabilidade legal reconhecíveis e compreensíveis para a população. Vivemos
um Estado sem Direito, como foi denunciado, sem contradição ou drama, por
vários agentes responsáveis, cujas declarações foram sistematicamente
ignoradas.
Ocorre que tais declarações correspondem à verdade dos factos e não podem
ser ignoradas pelo Presidente da República. Os portugueses não precisam nem
votam num amigo. O Estado português (corrupto como está, fora da lei como
anda) é que precisa de um Presidente capaz de cumprir um juramento solene,
mesmo que os partidos, os tribunais, as assembleias soberanas ou o próprio
povo prefiram viver na balbúrdia e na confusão.
Se em Portugal a culpa tem morrido sempre solteira, sem dúvida o exemplo vem
de cima. A ternura com os Presidentes da República se insinuam (com sucesso)
nossos amigos, com o apoio (e até imposição) de todo o regime putrefacto que
temos hoje, tem servido para escamotear a sua irresponsbilidade, como muito
bem (ainda que antipaticamente) reclamou um Presidente de uma República
aliada (a República Checa), para não dizer a sua traição ao juramento
político que livremente aceitaram fazer, após campanhas políticas em que
nenhuma clarificação tem sido feita entre a solidariedade nacional e as
responsabilidades políticas das instituições.
A alegação política de que o Presidente a República é uma espécie de Rainha
de Inglaterra republicana não corresponde a todas as leituras que são
admissíveis da Constituição portuguesa. Corresponde aos desejos dos
interesses instalados, que preferem negociar como um governo livre de
sistemas de regulação ou sequer de crítica, para melhor explorarem o
território, as mordomias, os subsídios, as empreitadas, à sombra do que
cresceram (e de que maneira) uma diversidade de seitas bem sucedidas,
sustentáculo do trabalho extenuante de tornar Portugal o país mais desigual
da União Europeia – bem como dos mais pobres.
Os próprios presidentes, naturalmente, a tomar pela descarada acumulação de
pensões – mais o que se sabe e não se sabe de negócios esconsos – integram
as suas próprias seitas secretas de pessoas influentes, cabendo-lhes, na sua
óptica, parecer impolutos e legitimar que os seus amigos, por mais
criminosos que sejam, também pareçam impolutos. Não é por todos sabermos
disso que o povo goza sempre que algum procurador ou juiz decide atacar um
político? Essa é, mesmo, a única atitude popular que um juiz ou procurador
pode assumir, de tão degradado que está o seu próprio prestígio.
A funcionalidade do sistema passa por remeter para fora do debate político –
nomeadamente para a vida pessoal dos políticos – a atenção dos portugueses e
das instituições, como se o mérito fosse medido pelo que cada qual consegue
sacar em vez de ser exactamente o reverso. Estamos chegados a um ponto em
que quem tente equiparar o saque ao mérito ficará, necessariamente,
desacreditado. Eis um tímido sinal de mudança.
Mas a questão central é política: teremos que depender da esperança de um D.
Sebastião estrangeiro, vindo da Alemanha ou do FMI, para pôr cobro à
roubalheira, ao amigismo, à ignorância, ao medo e à corrupção? Ou caberá ao
povo mas sobretudo a quem jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição da
República – contra os portugueses que não o fazem e sobretudo contra aqueles
que não o querem fazer – dar o corpo ao manifesto?
Contra a irresponsabilidade na Presidência marchar, marchar!
16/06/2010
Estratégia de recuo
A situação estratégica portuguesa não aparece favorável, na sua configuração
actual. Por isso as atenções de vários quadrantes geralmente divergentes se
voltam outra vez para o Brasil, mas agora como potência dirigente a quem
possamos servir.
A configuração actual não é boa e não só se espera a qualquer momento as
formas através das quais se concretizarão as maiores dificuldades políticas
e económicas como não há esperança de melhorias, tanto quanto as previsões
possam alcançar.
A desertificação do país é um risco apontado pelos especialistas do clima,
da demografia e da crítica. Geografia, populações e mentalidades em uníssono
parecem confirmar uma desgraça de grandes dimensões, mesmo sem a crise
económica – que é a primeira – e financeira – que é mais reconhecida.
Pode pensar-se como o George W. Bush, que é como quem diz não pensar: dizer
que devemos continuar a fazer o que sempre fizemos e ignorar previsões
catastróficas por estas serem imorais e desmoralizadoras. Diria que esse é
actualmente o pensamento dominante em Portugal, inspirado no bloco central
dos interesses locais e também na influência da classe política triunfante
que vingou no ocidente como resultado do êxito das políticas conhecidas como
neo-liberais. É certo que há quem queira abrandar o investimento do Estado –
por exemplo, nas grandes obras públicas – mas não é para fazer diferente
daqui para a frente. Querem fazer exactamente o mesmo, mas como se fosse
tudo privado, abandonando o público à sua sorte.
Mas pode também pensar-se que o fracasso do capitalismo com regulação mínima
(e cúmplice) está a pedir mais intervenção pública, mais democracia, aquilo
que o Estado não quis proporcionar nas últimas décadas e que cada vez mais
mostra não querer nem estar em condições de proporcionar no futuro. A
existência de inúmeros programas de regulação em muitas das principais áreas
de actividade social e económica mostra que eles só não foram eficazes
porque a iniciativa privada se lhes pode opor subordinando o Estado às suas
próprias vontades (irrealistas) tendo-nos feito chegar ao estado em que
estamos.
Os Estados ocidentais organizaram a globalização, como forma de ultrapassar
os constrangimentos laborais impostos pela regulação social própria dos
Estados Providência à arrecadação de lucros. Foram explorar lá fora o que
não conseguiam explorar cá dentro. Isso permitiu, uma vez desenvolvido com
sucesso o esquema infra-estrutural apropriado (de que a rede financeira que
permite deslocar instantaneamente o capital e produzir moeda especulativa
ad-hoc é uma parte), retornar aos territórios do centro do capitalismo e
pressionar os salários até uma equalização global, em nome da
competitividade. Na verdade o que ocorre é o esvaziamento não apenas moral
mas também económico e financeiro do centro do capitalismo, em vias de ser
substituído por novas paragens geográficas, a Oriente e a Sul.
Terá aspectos benéficos, esta redistribuição do poder e da riqueza no mundo.
Porém, o modelo de desenvolvimento que estamos a considerar continua a ser o
capitalismo puro e duro, medido pelo PIB, com desconsideração quer da pegada
ecológica, quer dos rendimentos disponível das famílias, quer do
desenvolvimento humano. A China, a Índia, a Rússia ou o Brasil competem pela
felicidade dos respectivos povos do mesmo modo que os países ainda do centro
do capitalismo o fizeram, para agora nos dizerem serem incapazes de manter
as promessas de bem-estar e protecção contra os fados tradicionais, fome,
doenças, isolamento e maus tratos sociais. Com a agravante de após a
experiência industrial estarmos com problemas ecológicos produzidos pela
actividade humana desconhecidos anteriormente.
O envelhecimento da população no centro do capitalismo marca uma falta de
potencialidade de inovação e de reconversão socioeconómica e mental que
torna praticamente inevitável o declínio, seja por via da
desindustrialização, seja por via da competitividade, seja por via das
dissidências internas que já aparecem à luz do dia, na sequência das
miseráveis políticas de segurança de inspiração xenófoba que nos têm
dominado (bem assim como os nossos parceiros do Norte de África) ao arrepio
das melhores tradições dos Direitos Humanos, seja ainda por via da guerra de
gerações entre aqueles que têm direito a reformas e aqueles outros que não
terão esse direito mas são quem paga.
A velha esquerda foi pensada como uma forma humana de pensar o
desenvolvimento, quando este estava em curso tendo por motor o capitalismo
de primeiras vagas. A esquerda de hoje, com o desenvolvimento às arrecuas e
com problemas estruturais que afectam o meio ambiente e as condições sociais
de existência, têm condições de propor aos portugueses – e através deles aos
europeus, aos brasileiros e a todo o mundo – um modelo de desenvolvimento
capaz de lutar pela preservação do meio ambiente através de uma
reorganização social e económica intensiva em força de trabalho, capaz de
tornar indispensáveis e solidários todos os seres humanos, em nome da
igualdade e da liberdade?
28-06-2010
Reformados de todo o Portugal uni-vos!
Quando foi da “Europa
Connosco”, a saída política do processo revolucionário que fundou o actual
regime político, opunha-se-lhe o que os vencedores chamaram o
“miserabilismo”, isto é a defesa de um leque de rendimentos mais apertado e
uma apostar nas solidariedades e cumplicidades próprias das consanguinidades
culturais lusas com países do Terceiro Mundo. Escolhemos ser ricos. E aqui
estamos.
Se fosse rico, com 54 anos deveria estar a planear como ocupar os anos de
reforma, merecida pelos 30 anos de trabalho, como faziam nos países europeus
(hoje só os funcionários da burocracia europeia de Bruxelas têm direito a
tal). Em vez disso, estou preocupado com o que me irá suceder quando, daqui
a mais quinze anos, deixar de poder trabalhar. Nessa altura dificilmente
alguém encontrará qualquer resquício dos investimentos que fiz, através do
Estado, para a minha reforma. De facto, embora tenha pago com os meus
salários as reformas dos nossos mais velhos, em poucos anos os nossos mais
novos estarão, em grande parte e os melhores de entre eles, fora do país que
os abandonou à sua sorte, esmifrando-lhes a paciência em humilhações e
desconsiderações intoleráveis. Do meu investimento restará a falência da
segurança social.
Como os meus amigos de geração e de classe – embora sem ser racistas ou
preconceituosos, claro – preferem viver em condomínios fechados ou pelo
menos com parque automóvel subterrâneo, construindo assim o seu próprio
mundo virtual entre as garagens do trabalho e de casa (e a escola dos
miúdos, para aqueles que os fizeram), a quem irei recorrer quando, com os
filhos no estrangeiro e sem amigos, precisar de uma sopinha aquecida para
entreter o resto da vida? À reunião de condomínio?
Dos filhos dos outros, a recibos verdes e com trabalhos precários, posso
esperar desprezo – bem merecido – por ter sido incapaz de lhes cumprir um
destino aceitável. Dos governos que os representarão poderei esperar melhor
do que daqueles que me representam agora? Continuarão o aproveitamento do
ódio social entre grupos e estratos para dividir e a todos roubar o mais
possível. Não é fácil conseguir recursos suficientes para alimentar as
ambições de riqueza dos exploradores europeus virados cada vez mais para o
seu próprio continente – a mama de explorar os outros, é certo, está no fim.
Ironicamente isto vislumbra-se na sequência da globalização feita para
enriquecer os patrões de um sistema que, agora, apenas conseguem prometer a
redução dos rendimentos, mesmo e sobretudo daqueles de quem dizem não
compreender como (ainda) sobrevivem com tanto pouco.
Não admira, pois, que a população europeia, como notou Agostinho da Silva
alguns anos antes, se esteja a suicidar demograficamente: é a
correspondência pavloviana, de facto, a uma política suicida das elites
europeias, enlouquecidas pela sede de poder em tempo de secura.
Reformados provavelmente não faremos mais filhos. Mas seremos capazes de
defender os valores morais que atraíram os povos que colonizámos, apesar das
barbáries cometidas? Ou abandoná-los-emos, morrendo cobardemente e sem
glória, amaldiçoando esta península continental para as civilizações
futuras? Reformados, não nos podemos reformar: teremos que lutar pelas
nossas reformas, o que quer dizer pela dignidade dos nossos filhos, sejam
eles naturais ou adoptados. Como num jogo de futebol, a Europa Connosco
reclama tensão aumentada no fim do jogo e vontade de marcar ao cair do pano.
Reformados de todo o
Portugal uni-vos!
2010-05-26
É tempo de matar o porco!
A sentença ilibatória do senhor Névoa, a par da sentença condenatória do
senhor Ricardo Sá Fernandes, chocou o País. Só um estado adiantado de
decomposição das instituições e da moral pública permite tal conjugação
nefasta de factos. Só não ocorre alarme público por radical desesperança
popular na autoridade do Estado.
De pouco adiantou, uma década atrás, o reconhecimento oficial, por Jorge
Sampaio, da crise do sistema judicial, do empecilho que ele constitui (cada
vez mais) para o desenvolvimento e a democracia no País e da necessidade de
reverter urgentemente a situação. Chegados a tais extremos, porém, com tal
funcionamento das instituições – sejam elas o Parlamento responsável pela
legislação em vigor, ou os sucessivos tribunais que apreciaram este (e
outros) caso (equivalentes mas menos mediáticos) – fica claro que a
corrupção, para além de ser uma forma de (des)organização política do Estado
e dos mercados, é uma prática não apenas tolerada mas também protegida.
A circunstância da crise financeira e económica europeia, dentro da crise
global do domínio ocidental no mundo, em particular a necessidade de
concretização do famoso PEC, de nenhum modo excluiu ou sequer secundariza o
desígnio nacional de organizar a luta contra a corrupção. Pelo contrário: é
também contra a corrupção estrutural que se dirigem as invectivas dos que
contestaram a ajuda à Grécia sem garantias, sem condições e sem fazer sofrer
com a demora da ajuda. O que, ainda que doutro modo, poderá bem ocorrer
também com o nosso país, nos mesmos ou em outros termos.
Os custos financeiros da corrupção, pudessem ser avaliados, ainda que de
forma controversa, caso fossem evitados, não deixariam de ser uma forte
(decisiva?) ajuda às contas públicas. Porém, é ao nível económico, ao nível
das práticas de mercado, da confiança entre agentes de desenvolvimento e
entre o Estado e a sociedade civil, nas suas diversas matizes, é a esse
nível que o impacto do combate à corrupção mais efeitos terá. Não será
possível reorganizar o País com vista a uma nova fase de desenvolvimento que
urge realizar com a promoção por parte do Estado da corrupção alargada,
contra os actos de coragem cidadã de pessoas com provas dadas de
disponibilidade para o serviço público, como é o caso do denunciante acima
citado, transformado em “agente encoberto” como forma de o estigmatizar por
ter organizado a denúncia do que todos sabemos serem práticas correntes e
lesivas não apenas das contas da Câmara Municipal de Lisboa, mas do Estado,
da economia e da moral do país.
A política, bem como as decisões judiciais, não podem continuar reféns de
argumentações técnico-administrativas para protecção de interesses
criminosos que sugam as nossas riquezas. O combate à corrupção tem de ser
uma prioridade de primeira linha. Não pode continuar a acontecer que as
maiores acusações – entre as diversas autoridades jurídicas entre si,
inclusivamente, entre polícias e magistrados do MP, entre políticos contra
“a corrupção organizada ao mais alto nível do Estado” – não tenham efeitos
práticos de tocar a reunir o partido contra a corrupção. É literalmente
criminoso não reclamar por políticas efectivas e urgentes de luta nacional
contra a corrupção, o que significa recolha de informação disponibilizada
por quem possa aderir politicamente a tal desígnio para tratamento e
alimentação das reacções – penais, administrativas, organizativas
económicas, financeiras e outras – que se venham a conseguir coordenar com o
mesmo fim.
2010-5-18
Pedra por pedra
Precisamos um partido de paredes de vidro a múltiplas vozes, sem
centralismos, seja qual for o adjectivo que se lhe siga. Precisamos de um
partido virado para a liberdade de expressão dos militantes de base e para
os seus problemas locais e não para consagrar mediaticamente as mais
brilhantes ideias de dirigentes vitalícios. Queremos um partido europeísta
mas que não aceite ordens de Bruxelas, como ultimatos. Queremos uma União
Europeia dos povos e não dos burocratas e seus aliados, de moral cada vez
mais duvidosa e perdida. Esse partido – apesar de desejável – não existe em
Portugal.
Queremos criá-lo?
A esquerda purificada finge-se irresponsável perante o que se passa em
Portugal, pelo facto de não pertencer ao arco do poder. Na prática, tal
atitude tem negado às propostas de esquerda qualquer vigência regular e
eficaz na vida institucional e, portanto, na vida social. A Nova Esquerda
deve começar por assumir as suas responsabilidades próprias na situação,
pelo simples facto de não se ter constituído antes – apesar do espaço
político estar lá vazio, faz muito tempo, à espera de ser ocupado. Não vale
a pena fingir, como foi feito na viragem de regime de 1974, que não há
responsáveis pelo descalabro, nem dentro do regime nem fora dele. Se alguma
coisa precisa de (e pode) mudar em Portugal é a ética política e pública.
O medo difuso mas persistente e característico que sentimos e vivemos tem de
ser substituído pelo orgulho. Orgulho de querermos mudar de vida e sermos
capazes de dar passos nessa direcção. Não em função de seitas que asseguram
a subida na vida, como pactos com o Diabo. Não em função da resignação
perante as convenientes aparências das “solidariedades” com Bruxelas,
branqueadoras e estimuladoras da corrupção organizada aos mais alto nível em
diversos (todos?) os estados da União. Orgulho de darmos a nossa cara e o
nosso tempo para nos organizarmos, em solidariedade com outros, que pensem
de modo diferente mas que compreendam a necessidade de sanear a vida
pública.
Essa solidariedade de que Portugal e a Europa precisam para cumprir as suas
melhores tradições – em particular a tradição democrática liberal e social
por direitos – é pluralista. Deve, pois, estender-se a todas as organizações
cívicas e políticas que possam colaborar para dobrar este cabo das tormentas
em que estamos encalhados. Porém, se há instituição que faz falta, essa é a
de uma força política capaz de dar esquerda à governança de Portugal e, ao
mesmo tempo, libertar cada um dos portugueses e das instituições em que
trabalham do torpor herdado do obscurantismo que, por toda a evidência, o
regime actual quis continuar do regime fascista, como garantia de paz podre,
que efectivamente conseguiu.
O sequeiro de que Portugal foi alvo nos tempos mais recentes está a chegar
ao fim. Não porque a Esquerda tivesse feito alguma coisa por isso. Mas
simplesmente porque o saque já não tem mais por onde continuar a crescer. As
desigualdades evidentes duram há muitos anos, mas são hoje moralmente
intoleráveis. Pior é a cumplicidade evidente das principais instituições do
país. A falta de democracia que temos vivido revela-se nos resultados:
nenhuma esperança de mudança. Tudo é ficção e vigarices.
Cada um terá que assumir a sua cota de responsabilidade, humildemente, para
que as próximas gerações possam usufruir de um espaço público educado e
despoluído. Como no tempo das catedrais, cada artesão há-de produzir-se e
assinar a sua pedra. Para reconhecimento futuro da nossa vontade colectiva.
A Nova Esquerda será isso ou não será.
2010-5-14
O Papa contra papistas
Da minha distraída memória relativamente às discussões televisivas sobre a
visita do Papa a Portugal fixei, talvez por terem sido particularmente
vivas, as de Rebelo de Sousa – “explicando” como a Igreja está a ser vítima
de uma cabala, pois “a pedofilia está em todo o lado” – e a de um conhecido
fundamentalista a quem foi admitido, sem nenhuma reacção, afirmar que desde
há dois mil anos a Igreja Católica defende a democracia.
Refiro-as aqui porque as declarações do Papa no avião que o trouxe de Itália
apontam tais atitudes – com um conhecimento de causa e autoridade que
escapam ao comum dos mortais – como as inimigas da Igreja. Disse ele, com
razoável transparência e sem ambiguidades, que as cabalas contra a Igreja de
que se fala vêm de dentro da Igreja, nomeadamente aqueles que pretendem ou
continuar a ocultar os crimes ou, reconhecendo a sua irreversível
visibilidade, pretendem impor o perdão aos culpados sem admitir a
intervenção da justiça.
Aguarda-se, então, pela penitência destes nossos católicos militantes,
justificando-se por serem mais papistas que o Papa, como costuma dizer-se, e
afastando-se assim do estigma de serem parte da conspiração para destruir a
própria Igreja a que dizem pertencer. Poderemos esperar pela intervenção de
jornalistas do regime para esclarecer esta questão? Nomeadamente junto do
Patriarca de Lisboa, cuja voz ambígua mais pareceu suportar os conspiradores
do que a rara clareza papal, que os jornais espanhóis associaram à terceira
profecia de Fátima.
O certo é que antes da chegada do Papa o cartaz que me incomodou o passo e
que deveria servir-lhe de boas vindas foi retirado. Serão já as forças de
limpeza a actuar no seio da Igreja portuguesa?
2010-5-12
Acreditar foi o pai que ensinou?
ACREDITAR FOI O PAI QUE
ENSINOU, em letras grandes, - sito de cor - é uma frase publicitária
escolhida para divulgar a chegada do Papa a Portugal. Um imberbe em pose de
imberbe faz de figurante. De imediato alguma coisa me arrepiou: a hipocrisia
parecia sorrir por detrás do cartaz, oculta mas tão evidente que me
repugnou.
A minha vida religiosa
acabou na minha primeira comunhão. Depois das aulas de catequese em que nos
contavam parábolas sem apelo à compreensão – por pressão da minha mãe que
nos pediu para aprender primeiro e escolher depois – fiquei sobretudo
impressionado com a ideia de deglutir o corpo de Cristo simbolizado na
hóstia. Não posso dizer que me preparei bem – aquilo de ter que me confessar
de “maldades” quotidianas era um bocado estúpido – mas lá que me emocionei
com a entrada da
hóstia no meu corpo,
emocionei. Enregelei rapidamente quando notei que os adultos que me
enquadravam nem reparavam no que eu sentia nem eles próprios sentiam –
aparentemente – nada.
A partir daí deixei de me
referir à religião. É como se não existisse. Por isso, para mim, vir o Papa
é o mesmo que ir ou nunca por cá ter passado ou jamais ter existido. Claro
que estou consciente das consequências da sua existência, mas no meu íntimo
algo bloqueou a tal respeito.
Numa ocasião em que o Papa
é conotado, com razão ou sem ela, com o nazismo e o abuso sexual de
crianças, a frase publicitária que o acompanha aparece-me como uma
provocação. Ou até uma confissão. A racionalidade da Fé cristã, que também
existe como potencialidade, é completamente eliminada desta frase, centrada
na obediência patriarcal. O Pai, o meu pai e o padre, como se fossem uma
santíssima trindade, aparecem aglomerados num PAI no meio de uma frase
escrita em letras grandes. O Führer e o abusador sexual (pai ou padre) não
deixam de poder estar incluídos no conceito, por antagonismo à mãe, à minha
mãe – que foi quem me recomendou a Fé católica – e a todas as mulheres,
sedentas de Paz. Porque são elas, crianças, jovens ou velhas, as maiores
vítimas da guerra e da violência, dos Imperadores e dos patriarcalistas.
2010-05-06
Construamos uma nova sociedade
Face ao muro de impossibilidades que se nos deparam e a que fomos conduzidos
por uma classe dominante incompetente, que apenas foi capaz de entregar os
assuntos públicos aos interesses privados, com abastados lucros próprios, é
preciso dizer que há outras possibilidades, a esperança de se viver melhor
depende das nossas vontades reunidas.
A Nova Esquerda quer contribuir para a mobilização de quem vive em Portugal,
para que não abandonem o país à sua sorte: esta não está predestinada. Nunca
esteve. O que aconteceu foi que nos deixamos embalar pelas virtudes de uma
Europa solidária, que agora ameaça retaliar termo-nos deixado conduzir por
uma oligarquia de seitas de arrivistas. E se queremos merecer o crédito
alheio, efectivamente, não podemos continuar a pensar que basta apanhar a
última carruagem do comboio e descansar. É preciso agir.
Para organizar a acção eficazmente são precisos princípios claros e eficazes
para atacar, ao mesmo tempo, a miríade de problemas que se nos colocam, a
começar pelo “medo de existir”, passando pela iliteracia e pela corrupção,
pela desistência da justiça de funcionar para o bem público e acabando nas
contas públicas.
A Nova Esquerda/Movimento para uma Nova Sociedade propõem dois princípios
muito claros e simples, como pedras de toque da acção cívica e política para
a construção de uma Nova Sociedade: a) o reforço e amplificação da liberdade
de expressão; b) a implementação de uma economia social de mercado.
Comecemos por apontar as linhas gerais de acção que se deduzem do segundo
princípio político. Todas as empresas, organizações e organismos públicos,
para se manterem em actividade legal, terão de promover a publicitação, o
desenvolvimento e actualização das razões da sua existência, como contributo
para o bem comum, reduzido a um documento a que se chamará Contributo
Social da empresa ou organização. Todas as empresas e organizações terão
de dar respostas, num prazo adequado de tempo a fixar por lei, a petições
públicas que lhe sejam dirigidas pelos cidadãos, alegando qual a parte do
texto do seu Contributo Social se refere a esse assunto. Caso contrário
deverá a resposta indicar de que modo e em que tempo tal assunto será
integrado no seu Contributo Social.
Problemas candentes como as pensões, a corrupção, os salários e prémios dos
administradores, a precariedade no trabalho, práticas de concertação de
preços, energia, atentados ao meio ambiente e ao património, criação de
condições dignas de vida para as populações, reanimação do interior do país,
etc. seriam tratados pelos intervenientes directos de forma explícita e
pública, como contributo para uma democracia participativa assegurada pelas
entidades mais activas e poderosas das sociedades modernas.
Do cumprimento deste desiderato e da sua qualidade dependerão os apoios e
encargos públicos, fiscais, políticos e outros que o Estado poderá oferecer.
O que implica a institucionalização de uma entidade reguladora dos mercados
sociais cujas tarefas principais serão a) organizar a avaliação formativa e
somativa dos Contributos Sociais por sectores, fileiras e regiões de forma
independente dos interesses partidários, económicos e sociais em presença;
b) produzir relatórios síntese da evolução recente (trimestral e anula) dos
Contributos Sociais.
O financiamento destas actividades deveriam ser feitos pelas empresas e
organizações junto de escolas, universidades ou empresas de consultoria, de
modo a mobilizar os licenciados e outros detentores de graus académicos
superiores para exercerem livre e aprofundadamente as respectivas
competências a favor de uma Nova Sociedade, nomeadamente usando também o
trabalhos dos jovens estudantes para, de forma mais económica, formativa e
participativa, se recolherem dados, se produzirem conclusões e se aprender a
cidadania e a literacia, tudo ao mesmo tempo e de forma integrada, atingindo
todas as gerações.
Nada disto será imaginável numa sociedade onde as leis e o funcionamento da
justiça protegem os agentes criminosos de colarinho branco, nomeadamente
permitindo e até sendo actores de perseguições ad-hominem contra
denunciantes de práticas anti-sociais de entidade tratadas como respondendo
perante outras interpretações das mesmas Leis. É fundamental acabar com a
dualidade de critérios, conforme se tratam de ricos ou pobres, de amigos dos
poderosos ou seus adversários. Isso requererá uma acção enérgica e
determinada de aliança entre agentes políticos, judiciais e académicos
(sobretudo da área do Direito) que se revejam nesta necessidade de modo a,
paulatina mas irreversivelmente, dar a Portugal um Estado de Direito.
2010-04-21
Movimento
para a IV República
5 de Setembro de 2005
Passou a ser lugar comum a noção de estarmos a viver uma crise de regime em
Portugal. Todavia, não se vislumbram sinais de regeneração política, o que
não pode deixar de estar nos fundamentos da acelerada ciclicidade das
desistências e dos abandonos políticos, ao mais alto nível, e a persistência
nos cargos de mais baixo nível, mais difíceis de escrutinar publicamente. A
arrogância de quem se imagina capaz de, por si só, com a clique de amigos e
com os apoios dos boys for the jobs, impor aos portugueses negócios
inexplicados e, provavelmente inexplicáveis, alterna com a aparente
impotência do Estado, também ela pouco transparente e muito selectiva.
A instabilidade política é, obviamente, induzida pela profunda
corruptabilidade do regime. Apesar da avalancha de denúncias dos últimos
anos, evidentemente, nada de essencial tem sido possível melhorar. Os
partidos já sentiram necessidade de limpar as suas hostes, com evidentes
dificuldades e com resultados nada claros. O sentimento de impotência não
pode substituir a confiança na democracia. O sentimento de impunidade e os
queixumes para saco roto – ou, pior, a perseguição dos denunciantes –
corroem o orgulho que temos por Portugal, a vontade de sermos melhores
portugueses, as expectativas de vidas melhores para os nossos pais e para os
nossos filhos.
A alternância democrática foi capturada pelos arranjos políticos implícitos
entre duas facções que parecem digladiar-se quando de facto cooperam na
manutenção do estado das coisas. Sociais democratas para beneficiarem
directamente dos fundos da coesão social da União Europeia, revelam-se, à
direita e à esquerda, neo-liberais na distribuição desses benefícios no
interior, estando Portugal com taxas de pobreza e taxas de desigualdade
social das mais altas, analfabetismo crónico e iliteracia desgraçadamente
única no espaço europeu, ineficiência dos processos de ensino e impedimentos
organizados – e injustos – ao desenvolvimento educativo e profissional dos
jovens, quando as taxas de desemprego de licenciados são enormes, num país
com escassez de pessoas qualificadas. O trabalho, pela pobreza dos sistemas
produtivos e da gestão de recursos humanos, ajuda a desqualificar uma
mão-de-obra já de si desqualificada, num ciclo de enterra moral e cívica das
potencialidades dos portugueses, que continuam a ser mais bem sucedidos lá
fora do que reconhecidos no seu próprio país, para realização de uma
estafada, miserável mas persistente política de exploração das vantagens
competitivas do preço baixo do factor trabalho no nosso País.
Os portugueses têm razões para não acreditarem em políticos que se comportam
como aristocratas ou como contabilistas. Até porque já lhes deram todos os
créditos possíveis e imaginários, e vemos agora no que resultou. Não está em
causa a sinceridade ou a perversidade com que sempre são desenhadas
políticas que mexem com interesses. O que está em causa é a necessidade
inadiável de mudar de rumo, democraticamente, o que manifestamente tarda e
não parece possível com o actual regime. Há pois que ir mais fundo na
exploração das potencialidades democráticas e aprender com outros povos mais
experientes democraticamente como se podem ultrapassar politicamente crises
de nó cego como aquelas que estamos a viver.
Procura-se quem represente e suporte a vontade dos portugueses de se
mobilizarem democraticamente para as tarefas de produção de uma nova
estratégia capaz de colocar o país com capacidades proactivas e inovadoras
no mundo global em que estamos inseridos, em benefício dos portugueses e do
bem estar para quem viva em Portugal. Essa mobilização não pode deixar de
ser radicalmente crítica em relação à intolerável tolerância da cunha e da
prateleira, do uso dos dinheiros públicos para distribuir pelos
correligionários e pelos arrivistas colectores de financiamentos políticos,
do desleixo na colecta de impostos e de organização da segurança social –
que se anuncia velhacamente falida aos que dela esperavam que cumprisse o
contrato que, entretanto, beneficia (escandalosamente) quem nada deveria
poder esperar desse seguro social dos trabalhadores portugueses.
Pode caber à Presidência da República abrir debates
e dar voz à vontade e às iniciativas de todos os portugueses, e não apenas
aqueles que prometem a árvore das patacas ou agricultura biológica das
revistas cor-de-rosa. Pode caber ao Presidente da Republica servir a
autonomia das instituições políticas, a consonância dos seus comportamentos
relativamente à vontade dos Portugueses e não aceitar quaisquer
interferências do Sr. Cunha, sejam elas veiculadas por amigalhaços ou por
partidos inteiros. A justiça – aquela que é produzida pelas instituições
judiciais e a outra, mais difusa, gerada pelo ambiente político e pelas
políticas concretas quotidianas – deve ser sistematicamente escrutinada e
não apenas para efeitos mediáticos ou para entreter os telespectadores. Não
faz nenhum sentido entregar a resolução dos problemas estruturais da justiça
portuguesa às corporações e às personalidades que construíram e beneficiaram
– e continuam a beneficiar – da injustiça que campeia descarada e
impunemente. Não é aceitável que bons desempenhos profissionais sejam postos
em causa por um sistema de profunda interferência política na administração
do Estado, que arreda toda a possibilidade de demonstrações de mérito e,
para isso mesmo, faz circular o pessoal de confiança, em alta velocidade,
por todos os milhares de lugares disponíveis, tornando impossível qualquer
tipo de avaliação de desempenho administrativo e político.
Pode caber ao Presidente da República trazer os
portugueses a construírem o Portugal do século XXI, já que o que também está
em causa, no magma da globalização e das políticas europeias, é saber o que
os portugueses querem ser no futuro: os herdeiros de uma língua e cultura
minoritária e folclórica para vender aos turistas da terceira idade? Ou um
povo que, mais uma vez, será capaz de dar novos mundos ao mundo, de
encontrar caminhos novos para a justiça social, nos quadros financeiros e
demográficos que são conhecidos mas em quadros políticos e sociais que temos
oportunidade de, com a nossa vontade colectiva, encontrar democraticamente.
Para atingir esses objectivos é indispensável começarmos de imediato a
alterar comportamentos, nomeadamente a sermos exigentes connosco próprios e
não aceitarmos mais entregar os pontos a quem nos melhor garante que não nos
incomodará – até porque a experiência mostra como nos enganamos
frequentemente nesse juízo. Temos que exigir de nós mesmos, e em primeiro
lugar às instituições, que as denúncias e as queixas que chegam à
administração serão tratadas em tempo útil, conforme a lei, e de modo
empenhado e sério, em vez do velho sacudir de água do capote. Para que serve
votar num candidato a Presidente da República com
responsabilidades na estruturação de um regime que, manifestamente, caiu da
cadeira, sem lhe pedir uma avaliação específica e criteriosa do que nos
trouxe a este beco? Para assistirmos ao fecho de mais saídas para o regime?
Para adiarmos para amanhã o que se pode começar a fazer hoje?
Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os que lutam
por sobreviver, aqueles a quem não são reconhecidos os seus direitos e que
confrontam com os esquemas kafkianos montados pelo tráfico de influências e
pela corrupção, os que são humilhados por querem denunciar situações
ilícitas são igualmente responsáveis, se comparados com aqueles que recebem
reformas ilegítimas para que possam continuar a acumular benesses e manterem
a culpa solteira? Nestes trinta e um anos de democracia, houve quem desse
tudo, incluindo o bem estar pessoal e das respectivas famílias, para
melhorar Portugal e também houve os que só pensaram em si mesmo, nos seus
pergaminhos e nas conjuras que fossem necessárias para não terem obstáculos
à afirmação das suas irresponsáveis convicções, ao ponto de o povo confundir
os bem intencionados e os mal intencionados de entre os vencedores destas
competições organizadas pelo Sr. Cunha.
Não! Não somos todos responsáveis pelo estado a que chegámos! Os
responsáveis não podem continuar irresponsáveis.
Liberdade
Haverá
liberdade em Portugal?
Parece absurda a pergunta. Pelo menos para a grande maioria de nós que não
foi incomodada por falar. Tal como no regime anterior, a maioria de nós
ainda que quisesse dizer alguma coisa teria dificuldades. Por não saber
como. Por falta de escolaridade, por falta de cultura, por falta de
experiência de debate, por falta de liberdade, numa palavra.
E sofre-se com isso? Ou, ao contrário, é-se mais feliz por ignorar e não
querer saber? Como na canção, o melhor é não nos preocuparmos porque isso só
vai aumentar os problemas? Os dados comparativos sobre doenças mentais não
enganam: o dobro dos portugueses sofrem desse tipo de doenças quando
comparados com outras nacionalidades do sul da Europa. E são sobretudo as
mulheres que sofrem de ansiedade.
Será por falta de liberdade?
A ter em conta que apenas recentemente passou a ser possível em Portugal
denunciar publicamente a violência doméstica e os abusos contra crianças,
pode bem-estar aqui uma parte da explicação. Sabe-se também que as mulheres
em Portugal trabalham tanto como as nórdicas e são aquelas que mais
trabalham, o que aparenta um contraste com o conservadorismo noutras áreas.
Quer dizer: para pormos as mulheres a trabalhar, sobretudo pagando-lhes
menos que os homens mas pagando mal a ambos e estimulando uma sociedade
consumista, nesse campo não somos conservadores. O que é uma oportunidade
para elas escaparem à dependência tradicional através do trabalho (como do
estudo). Fazem-no pela calada, sem grandes alardes – porque se lembram do
que aconteceu no Parque Eduardo VII, em liberdade pós-25 de Abril, à
primeira manifestação feminista em Portugal: foram cercadas de homens com
cio. Não o fazem sem custos, portanto. Entre os quais a discrição e sempre
mais trabalho.
Provavelmente uma das causas e consequências de tal depressão é a taxa de
natalidade sustentada e cronicamente abaixo da capacidade de reposição da
população – que continua a somar-se, outra vez de forma dramática nos
últimos anos, com a emigração. Não há quem aguente. Como dizem mais de um
terço dos portugueses inquiridos, passar a integrar o reino de Espanha não
seria má ideia.
No parlamento, por hesitante iniciativa do PSD, com apoio sobretudo do Bloco
de Esquerda – com a oposição do PS – e por imposição dos factos (de facto a
roubalheira está em fase de profissionalização oficial), dada a corrupção
reinante, as tendências desreguladas para a concentração dos órgãos de
comunicação social, os ataques à autonomia da classe dos jornalistas,
discute-se a liberdade de imprensa. Uns dizem que o governo conspira (que
haveria ele de fazer?) outros dizem que acham bem que assim seja e que isso
é democrático (será que também eles conspiram?). Sobre a liberdade de
expressão, nem uma palavra. Sobre a vida do povo, um manto de silêncio:
sobre a falta de educação e de respeito por iniciativas populares, seja a
nível autárquico onde reina o caciquismo, seja a nível político onde reina o
tráfico de influências, seja nível legislativo onde mandam as “vírgulas” e
proliferam as leis com alçapões, seja a nível da banca onde se digladiam
seitas secretas pelo controlo das finanças e do governo, seja a nível
cultural, tanto nas universidades – que continuam sem bibliotecas – como nos
museus, nos teatros, na música, na literatura, na filosofia, nas escolas, a
censura tem a forma de invejas, tropeções, perseguições administrativas,
abusos de poder. Mas não deixa de ser esta censura que remete para o
estrangeiro milhares de licenciados à procura de respeito pelo seu trabalho
e pelas suas pessoas, lá onde a liberdade possa ser coisa mais sentida e
reconhecida.
Portugal não sabe o que seja a liberdade. Porque das raras vezes que lutou
por ela não quis morrer por isso; preferiu acomodar-se a conceitos perversos
sobre o que isso seja. Liberdade não é cada um fazer o que lhe apetecer; mas
também não é encolhermo-nos de cada vez que alguém mais poderoso manifesta
incómodo pela nossa existência. Liberdade é cada um assumir a dignidade da
sua identidade auto-determinada e auto-construída, plantada e mantida como
um jardim para benefício de todos e da sociedade. Liberdade é o respeito que
devemos aos outros, tal como reclamamos que nos respeitem a nós,
independentemente do que cada qual entenda ser melhor para si e para todos
os outros, incluindo a liberdade de lutar pelas suas convicções.
A liberdade tem consequências: o reconhecimento dos méritos e também das
derrotas. Mas tem defesas: a dignidade de todos e cada um é sobretudo a
defesa da dignidade alheia. Nesse país não poderia ser dito, como eu ouvi
dizer aqui, que embora haja gente a viver com salários de trabalho
indignos, tais salários vão ter de baixar em nome da economia.
Só a falta de liberdade explica ser pensável avançar com tal argumento. Só a
falta de liberdade permitiu a sua repetição metralhada, sem reacção. Só a
falta de liberdade permite dizer-se que há liberdade de expressão em
Portugal.
2010-03-29
Era da vontade
A democracia, há quem diga, deixará aos poucos de ser possível. O argumento
é: a democracia precisa de crescimento económico, de um jogo de soma
positiva, de exploração acelerada do mundo e da humanidade em favor de uma
sociedade que assim se poderá dar ao luxo de exercitar a liberdade. De
facto, com o abrandamento do crescimento económico no Ocidente, a partir da
crise do petróleo de 73, as empresas apoiadas pelos Estados Unidos
desenvolveram a estratégia de globalização, que significa o alargamento da
base de exploração a todo o planeta e um abandono das políticas
nacionalistas de legitimação. As mesmas taxas de lucro podem suportar o
crescimento da acumulação se houver mais transacções. Em tais
circunstâncias, o aumento dos lucros passa a ser possível também pela
negociação das deslocalizações e pelo aumento da exploração dos locais e
povos mais desprotegidos da Terra. Tais lucros, todavia, não são para serem
divididos socialmente: são tomados como obra de gestão de visionários
iluminados e anti-democráticos, num tempo em que todos os ocidentais aspiram
a ser ricos para além do possível, como se os juros à D. Branca pudessem ser
pagos à casta de dirigentes bem informados e bem colocados, sem risco.
A democracia, de facto, quem não o pressente?, está decadente. Há quem
confunda democracia com política. Mas esta última, estando apropriada por
uma classe política corruptível, gestora de gestores, centrada nos lucros
financeiros, aspirante a integrar a classe dominante global, odiando os
povos que trata como públicos e embrutece com espectáculos (dos meios de
comunicação até às escolas e universidades), desprezando os velhos que lhes
aparecem apenas como alvos de exploração dos sistemas de saúde, é a
política, dizia, que comanda globalmente os destinos da humanidade. Porque,
manifestamente, se fosse apenas a economia já tudo tinha implodido.
O capitalismo, por definição, não cuida dos problemas sociais nem respeita
planeta ou humanidade. É a política que o fará ou não, democraticamente ou
não, no respeito dos Direitos Humanos ou não.
A seguir à II Grande Guerra os Direitos Humanos fizeram o seu curto caminho
institucional em nome da dignidade humana de cada pessoa. Foi essa política
exígua desenvolvida após a derrota do colonialismo, nos anos 60, que serviu
de mote ao lado vencedor da Guerra Fria. A capacidade de mobilização da
liberdade de iniciativa económica para organizar a globalização capitalista
revelou-se uma vantagem comparativa que conquistou os próprios gestores do
socialismo real, que o auto-liquidaram para correr atrás do paraíso
neo-liberal, com milhões de vítimas directas.
Eufóricos com a nossa vitória de Pirro, não quisemos dar-nos conta dos
custos de tal operação, nomeadamente a expansão a Leste da União Europeia.
Nos dias de hoje é já claro que os poderes centrais europeus (como os
norte-americanos, os primeiros a nomear a Nova Europa) preferem descartar-se
do Sul – os chamados PIGS – e explorar as competências e determinação dos
países de Leste.
Quais são, então, os nossos activos, em Portugal? Serão os nossos gestores
de gestores nos diversos postos da administração de Bruxelas? Ou será a
nossa cultura universalista? Será o nosso sistema financeiro periférico,
oligárquico e corruptível? Ou será um povo treinado para compreender os
ventos da história e para reconhecer o valor de terceiros? Serão as grandes
obras públicas? Ou será a mobilização dos recursos em rede estabelecidos ao
longo do último meio milénio por todo o mundo, organizados para nos
assegurar paz?
A União Europeia respeita-nos como respeita os seus velhos. Quando tiver
tempo, logo tomará alguma atenção. Nós próprios estamos a seguir essa via de
isolamento social dos indivíduos em busca de rendimentos. Em Portugal as
políticas de habitação obrigam à fixação das pessoas longe dos seus locais
de trabalho, gastando parte importante do dia em transportes para animar
esse sector e desvalorizar todos os outros – porque as pessoas cansadas
rendem menos que as pessoas despertas. Toda a vida social é substituída
pelas rádios dos automóveis e pelas televisões das casas. O envelhecimento
da população é alarmante, bem como a intolerância crescente, bem espelhada
nas políticas de segurança, justiça, imigração e pobreza.
Esta é uma sociedade em vias de suicídio, dadas as políticas anti-sociais em
vigência, nomeadamente as de destruição do Estado Social – por alegadamente
não haver alternativa que não seja a de organizar a substituição massiva dos
jovens que não existem por imigrantes, a que alegadamente a população
resistiria por efeito da xenofobia. A demografia, efectivamente, é um dos
busílis da política actual: as instituições desenvolvem políticas contra a
xenofobia e o racismo, como contra a pobreza, como políticas “sociais” para
minimizar (e mascarar) as políticas dominantes de exclusão social, de
preparação para e provocação da guerra social inter-étnica global, interna e
exterior por igual, nos bairros classificados como problemáticos ou contra
países infiéis. São, de facto, políticas policiais contra os jovens do sexo
masculino que sofrem mais directamente as contradições das políticas
vigentes (por exemplo, sabendo ser as suas vidas destinadas a serem piores
do que a de seus pais e ao serviço dos mesmos patrões) e que podem ter
forças para desestabilizar os poderes instituídos. Tudo se passa como se a
consciência da própria ganância antecipasse a consciência dos excluídos da
ilegitimidade moral e política das práticas de gestão dominantes, que chegam
a enojar os próprios gestores, como aqueles que apareceram em 2008 a
reclamar contra a imoralidade de Wall Street e das práticas bancárias.
Muitos desses, com apoios políticos fortes, mantém hoje as mesmas práticas
que condenaram.
Tal como, há mais de 500 anos, Portugal foi capaz de fazer reverter as
dinâmicas da guerra santa da altura a favor das Descobertas, poderemos
também assumir hoje o legado dos nossos antepassados e viver da política e
do Mundo. Não é esse o nosso destino, mas antes não apenas uma mais valia
que herdámos como também a melhor janela de oportunidade para viver melhor,
connosco e com o mundo. Não é uma proposta para santos, pois as misérias
humanas foram testemunhadas por portugueses provavelmente mais do que por
qualquer outro povo no mundo. É um trabalho de tecedura para o qual
poderemos levar a estranha e ambígua bandeira dos Direitos Humanos, sinal em
vias de ser renegado pelo Ocidente, que o usou também contra os interesses
estratégicos de Portugal (e Brasil) durante o século XIX, aquando da
substituição da escravatura pelo salariato.
Direitos Humanos em Angola, Guiné. Moçambique, S.Tomé e Príncipe, Timor e no
Brasil podem bem ser marcas da presença portuguesa não contra mas a favor
dos povos, intransigentemente contra os gestores de gestores que se tornaram
a classe política dominante. Com tais países será possível refazer como
melhor se entender a nossa demografia, fraternalmente. E acompanhar (com a
mesma fraternidade) a emergência dos países emergentes, proporcionando-lhes
a possibilidade de apoiarem uma experiência política democrática adaptada
aos tempos – construindo um jogo de soma positiva para Portugal que os
“mercados” estão prontos a negar, como se tem visto.
Uma tal perspectiva não é compatível com a política da mentira ou sequer da
política “para inglês ver” que foi a sua predecessora. Precisamos de
políticas de convicção, testadas democraticamente e apoiadas em princípios
de igualitarismo, de serviço público (na administração, no terceiro sector e
no sector privado) e no liberalismo judicial. Essas, sim, farão a diferença,
porque serão mobilizadoras dos portugueses e dos seus amigos para novos
horizontes de convivialidade mais próximos dos ideias humanitários do que a
derrocada da civilização ocidental no Ocidente e a sua réplica exploradora
na China e nos países emergentes faz antever.
2008-03-17
Cultura política para um país inculto
No país onde o Primeiro-ministro está a ser sujeito a escrutínio público por
ter aparentemente usado meios do Estado para controlar a seu favor a
comunicação social, o partido do governo, o maior partido da oposição, as
organizações representativas das profissões jurídicas, o Procurador-geral da
República, o próprio Presidente da República, todos se queixam publicamente
de estarem a ser alvos de conspirações e de, por isso, organizarem
contra-conspirações. Perante tais imbróglios, a justiça, através do Supremo
Tribunal de Justiça, tenta pôr-se a recato da discussão em que a querem
envolver, aparecendo à opinião pública como surda e muda mas de olhos bem
abertos para não colidir com as jogadas políticas de bastidores.
A justiça é, aos olhos dos cidadãos portugueses, uma das instituições menos
fiáveis e mais temíveis, não apenas pelos intermináveis anos de desgaste que
impõe aos litigantes, pelas custas exageradas com que o governo pretende
combater o aumento do número de processos, pelos custos dos honorários dos
advogados, mas sobretudo pela incapacidade do cidadão em controlar a acção
(frequentemente incompreensível ou mesmo danosa) dos respectivos advogados,
porque as sentenças são, em si mesmas, frequentemente incompreensíveis e, em
todo o caso, imprevisíveis por serem bastante independentes dos meios de
prova apresentados.
Uma das características nacionais portuguesas bem estabelecida é a
improbabilidade de algum responsável político assumir as suas
responsabilidades políticas: a palavra de ordem é ninguém se demite dos
cargos, por maiores e mais graves e credíveis que sejam os ataques públicos
aos actos ou ao carácter dos titulares de cargos públicos. Em contraponto a
esta falta de pudor no enlameamento da honra entre políticos, o cidadão
comum é intimado pelos próprios tribunais para não reagir perante as
injustiças mais básicas e danosas: como quase todos concordarão, “não vale a
pena queixar-se”. Sobretudo quando se trata de abusos de poder.
A disfuncionalidade do sistema judicial português relativamente às
necessidades de desenvolvimento – Portugal, apesar da modernização sofrida
após a revolução dos Cravos em 1974, é um dos países mais desiguais da
Europa e também um dos mais pobres – é reconhecida pelos próprios poderes
públicos, nomeadamente quando se trata de avaliar as condições do
investimento externo e se constata como os empresários temem ficar atolados
em processos judiciais intermináveis e com resultados imprevisíveis. O que
não significa que o sistema não seja funcional para outras finalidades,
nomeadamente para novas formas de proteccionismo, a que a oposição chama os
jornais, a publicidade e os empresários do regime. O sucesso empresarial na
economia portuguesa fica assim condicionado por relações políticas
suficientes para poder pagar a sua protecção.
As lutas em torno da transparência – dos rendimentos dos titulares de cargos
públicos, das empreitadas públicas, das parcerias público-privadas, do
acesso do Ministério das Finanças e da investigação criminal aos registos
bancários, os sucessivos erros legislativos e as sucessivas mudanças de
legislação, as políticas anti-corrupção, etc. – revelam aos olhos dos
políticos mais críticos, incluindo no partido do poder, a cumplicidade entre
os órgãos de soberania e as práticas de corrupção. O poder político prefere
delegar a perseguição dos crimes de corrupção ao braço judicial, ao mesmo
tempo que é acusado de desmantelar as polícias competentes encarregues de
fazer esse trabalho, passando assim o odioso da situação para o já
sobrecarregado sistema de justiça e lavando as mãos do que é o seu (im)próprio
modo de financiamento. Poderes judiciais há que, com as dificuldades de
meios mas com as liberdades próprias da arbitrariedade de julgamento e de
imprensa, atacam o poder político, acusando-o através de fugas de informação
para os jornais e de folhetins de descredibilização de personagens,
nomeadamente o Primeiro-ministro, cuja resistência aos ataques de carácter é
típica da política portuguesa – mesmo se danosa para o Estado e o país. Para
a política oficial em Portugal, a estabilidade significa os mesmos nos
lugares de poder
e, portanto, os mesmos canais de subordinação à ordem vigente,
independentemente da liberdade, da igualdade e da sanidade dos mercados.
A noção de haver uma justiça para pobres e desvalidos e outra para ricos e
poderosos está muito generalizada na população portuguesa, bem como a noção
de que a política é para os doutores e, dentre esses, os especializados na
política, cabendo ao vulgo olhá-la como quem comenta o futebol: tomando
partido com emoção. Ou então desligando-se do assunto.
As contradições da situação reflectem-se na dependência e atraso económicos,
na ausência de alternativas políticas que diminui a democracia, como se
reflectem na discussão da liberdade de imprensa concebida como a liberdade
dos donos dos meios de comunicação e eventualmente dos jornalistas, alheia à
discussão da liberdade de expressão, a que mesmo os jornalistas e os meios
de comunicação são insensíveis.
2010, Março 8
Transformar Portugal na Presidência
Embora os poderes
presidenciais em Portugal não sejam apenas de cortesia, mudar Portugal a
partir da presidência da República significa deixar sementes para o futuro
(eventualmente próximo).
Cavaco Silva
está sempre pronto para mudar, que para ele significa fazer “reformas
estruturais”, que por sua vez significou para Portugal abrir caminho aos
novos ricos que criaram o “monstro”: uma economia privada à sombra das
benesses do Estado e vice-versa, com uma desigualdade social das maiores do
mundo Ocidental (1/8 nos rendimentos, 40% de pobres), um crescimento
económico estacionário, a apologia da ignorância e da trivialidade, a
arbitrariedade na gestão das instituições, desde os sistemas de regulação
até ao sistema judicial, controlados por seitas secretas e opacidade
condizente.
Não sabemos
se haverá outros candidatos do regime. Mas sabemos haver dois já no terreno
que, à sua maneira, se apresentam em ruptura com o regime. Manuel Alegre do
lado do maior partido português, conhecido por não se deixar calar e por
estar saudoso de um partido socialista próximo dos anseios populares, como
aquele que recentemente foi encenado em emails e sms para
fastasmagoricamente aparecer na Fonte Luminosa, quer sobretudo mudar o seu
partido e mantê-lo no poder. Fernando Nobre, sem partido, quer dirigir-se
aos portugueses para que o acompanhem na sua campanha de moralização,
resgatando a identidade humanista, pluricultural e pluriracial,
universalmente conhecida, de Portugal.
De momento,
as opções de voto apelam alternativamente à obra feita, às palavras ao vento
que passa e à vocação universalista de Portugal. Esta vocação existe e tem
estado ao serviço do Estado rapace, mas não dos portugueses. A questão é a
de saber se as palavras podem ser entendidas, do que se duvida, não tanto
pela mensagem que contenham ou não mas sobretudo pela desconsideração
imposta em Portugal ao respeito pela cultura, por um lado, e pelos
compromissos assumidos, por outro. Como é evidente, a vigarice continua a
ser quanto muito um problema individual, de carácter, a contrabalançar a sua
evidente utilidade, operacionalidade e até respeitabilidade reclamada pelo
governo e seus apoiantes, nomeadamente os seus parceiros de negócio. Outra
coisa é organizar uma relação directa com os portugueses para lhes dizer a)
há que respeitar Portugal; b) há que abrir ao mundo e às alternativas
disponíveis, principalmente quando a União Europeia se prepara para
estigmatizar a Europa do Sul com bode expiatório para “explicar” a crise; c)
há que aprender a aprender; d) há que exigir funcionamentos justos tanto das
instituições como das empresas, a começar pelo sistema judicial cuja
fealdade terá que ser removida tão rapidamente quanto possível.
Ao governo
caberá alinhar com as mesmas prioridades mas dar prioridade invertida, de d)
par a), àquela que serão as da Presidência.
Fernando
Nobre entende que lhe cabe acreditar nas possibilidades de regeneração do
regime e da democracia. Acha que pode contribuir para isso interpretando –
pela primeira vez em Portugal – a Presidência da República como uma
instituição ao serviço dos portugueses e não da facção dominante do
Movimento das Forças Armadas ou da facção dominante dos partidos.
Qualquer que
venha a ser o resultado eleitoral, Fernando Nobre já ganhou, ao romper com a
partidocracia. Terá que saber conquistar os portugueses, nomeadamente os
jovens e os mais desfavorecidos, a quem a educação política tem vindo a ser
confundida com o oportunismo profissional que se pratica desde as
universidades até às carreiras políticas. Terá que ensinar a
responsabilidade e a respeitabilidade da transparência e do voluntarismo.
Terá que reclamar pelo legal funcionamento das instituições, a começar pelo
sistema de justiça. Do seu desempenho e dos apoios que se lhe juntarem
dependerão, sim, as potencialidades de Portugal no futuro.
20 Fevereiro 2010
Assumamos a marginalidade
A situação política
caracteriza-se por existirem condições objectivas propícias a uma eclosão de
lutas sociais para transformar a sociedade e, ao mesmo tempo, a falta de
condições subjectivas para que as energias propícias à transformação social
venham a proporcionar a abertura de perspectivas de evolução positiva da
vida das pessoas.
Ainda que haja revolta –
como em Paris em 2005 ou na Grécia em 2008 ou durante as contestações das
cimeiras ou durante os Fora Sociais – que fazer com ela? Deveremos colaborar
na integração social dos excluídos ou acompanhá-los na construção de formas
de organização social diferentes das actuais, sob as quais não sejam mais
tratados como não pessoas?
A resposta a esta pergunta
depende do diagnóstico das causas da incapacidade de actual resistência
perante a imoralidade das causas da crise auto-atribuídas pelas classes
dominantes. Se se entender que se vive numa sociedade integradora,
escolher-se-á a primeira resposta. Se, como quem escreve este texto, se
acredita a) o sucesso da actual classe política global ocidental depende da
sua coesão interna e, por isso, dos privilégios que a si mesma se atribuiu,
fazendo com que todas as sociedades se organizem em torno da distribuição de
privilégios – como antes da Revolução Francesa, embora de outra forma e com
um âmbito planetário. Por ser assim é que, mais Estado ou menos Estado, mais
investimento público ou menos, são os privilégios que são o reduto essencial
a defender e não há político que sobreviva se não se dispuser a pactuar com
isso; b) a crescente desigualdade social não decorre de critérios
ideológicos em si (todos simulam ser modernos) mas antes da exclusão imoral
dos povos de Estados dependentes, dos imigrantes, todas as populações
estigmatizadas a viverem nos territórios nacionais dos Estados dominantes e
ainda de todas as populações estigmatizáveis externa ou internamente –
incluindo os islâmicos e profissões inteiras altamente qualificadas, como os
professores em Portugal. São tais processos de estigmatização a justificação
política para o trabalho imoral e anti-moderno de exclusão crescente dos
povos da vida política e económica. “To blame de victim!”
As provocações bélicas, a
vergonhosa apropriação dos recursos naturais globais, as provocações
inter-civilizacionais, a destruição do Direito como sistema de regras de
aspiração universal para aplicação da justiça, a insensibilidade social e
económica, a corrupção, o facilitismo cognitivo das ideologias dominantes,
seja do lado do neo-liberalismo seja do lado do debate político em geral,
incluindo à esquerda, facilitismo esse com implicações nas políticas
educativas, a ganância e o desprezo social como modelos morais, tudo se pode
explicar pela convergência entre ânsia organizada de privilégios – tipo ser
engenheiro por enviar faxes a organizações criminosas e todos acharem muito
bem e muito legítimo, do foro privado – e a determinação em fazer vítimas a
quem poder atribuir culpas – vejam-se os debates parlamentares.
Não se pode é explicar isto
como um fenómeno nacional. Este é um fenómeno global, com especificidades
nacionais, sem dúvida.
A política, como sector de
actividade especializado e profissionalizado, numa sociedade de exclusão (em
que a explosão informativa não permite, no imediato, uma explosão cognitiva
mas antes uma confusão mental, apesar dos aumentos de escolaridade e da
divulgação do inglês como língua franca global. A explosão da informação, no
imediato, permite, isso sim, privilegiar quem esteja em melhores condições
de manipular símbolos, como as redes de informação financeira e a
comunicação social), a política torna-se formalmente desligada da vida dos
povos e, ela própria, parte das dinâmicas de exclusão (veja-se o controlo da
política pelas seitas secretas, a que alguns chamam equivocamente os poderes
económicos: não há poderes económicos sem relações sociais (e morais) que os
suportem! É o que as classes dominantes chamam sociedade selecta, isto é,
redes de confiança (as mesmas que auferiram de exuberantes “subsídios” em
tempo de crise para evitar “problemas sistémicos”. Claro.), incluindo os
negócios privados do Estado, como o sector das sucatas, cuja confiança entre
os parceiros passará à história através do símbolo exotérico que são os ro(u)ba(-)los).
A esquerda, bem como muitos
sectores da economia social e da vida intelectual, deixaram-se capturar
pelas dinâmicas de exclusão – que os ameaçam mas também oferecem modelos de
sucesso social (vide comentadores ou agentes filantrópicos ou famosos).
Aceitam discutir a agenda dos vigaristas e ilusionistas no poder. Os
rendimentos da exploração concentrados pelos Estados possibilitam uma
alargada autonomia da classe política relativamente ao capitalismo e, do
ponto de vista deste, tem a vantagem (indispensável) de manter a ordem, isto
é distribuir as migalhas (metade dos 40% de pobres em Portugal não o são
tecnicamente porque recebem subsídios directos do Estado por aceitarem pedir
o reconhecimento da sua auto-declaração de pobreza: a humilhação porque
passam os desempregados, tratados como arguidos de crimes, é só um aspecto
do modo como as populações dominadas são tratadas) e o cacete (vejam-se os
preparativos para a guerra social que duram há muitos anos nas polícias, nas
forças armadas e no sistema judicial, especialmente a nível
intergovernamental na Europa).
O capitalismo em crise (de
desmascaramento e de confiança – necessidade reorganização das seitas)
esteve de acordo na necessidade de se moralizar em troca do branqueamento
dos mecanismos imorais propulsores da crise: em troca do Estado – solícito e
já preparado – assegurar a Ordem. Uma vez percebido o impasse e a
incapacidade de reacção do campo popular, tudo voltou rapidamente à mesma
exacta conjuntura política que gerou a crise, apenas agora com deficits
maiores, a pagar pelos impostos de todos. Estamos exactamente na mesma, em
termos de relações de força políticas, do que antes da crise, e portanto a
continuar a ravina descendente do ponto de vista da esperança, do
desemprego, dos salários, das pensões, da precariedade, da auto-estima.
O que há a fazer é
estabelecer uma moralidade política anti-situacionista, radicalizar as
reivindicações de equidade – desde logo no sector da justiça, por ser
politicamente pelo menos tão essencial como os aspectos económicos – e dar
conteúdo convivial à reflexão política, isto é, criar uma forma de fazer
política – no sentido institucional – oponível àquela que se pratica nas
instituições actualmente em funcionamento. Há que criar uma rede de relações
políticas subversivas da sociedade da exclusão (por esta ser anti-moderna,
nomeadamente por viver dos privilégios, da violência, da exploração das
pessoas e da natureza, da mentira e da perversidade moral) a partir de uma
discussão sustentada em instituições próprias para o efeito.
A democracia – como a sua
civilização – está em grave crise, precisamente por não ser capaz, na
prática, de admitir a produção de alternativas políticas enquanto este
sistema de poder estiver no comando. Todos os partidos, em qualquer país
ocidental, estão condenados à esquizofrenia de dizerem uma coisa na oposição
e o seu contrário no governo. Logo, a democracia reclama novas instituições.
Há que criá-las imaginando-as.
Essas instituições deveriam
ser formas variadas e variáveis de relacionamento entre pequenos núcleos de
amigos que se entendessem bem uns com os outros e cujas iniciativas fossem
apoiadas por outros núcleos que com eles queiram partilhar uma agenda
transformadora da sociedade em ruptura com a agenda da situação, mesmo que
discordem das perspectivas uns dos outros. À unidade dos partidos do centrão
e à impotência dos partidos de fora do arco do poder oponhamos a nossa
liberdade de expressão e de comunicação em condições de assumida e orgulhosa
marginalidade, através dos novos meios actualmente disponíveis, com toda a
gente livre que por aí quiser emergir, independentemente das ideias que
tenha e da sua representatividade social: as ideias e os ideais não são
melhores por serem populares.
A luta pelo poder dentro das
novas instituições a criar – como acontece também nas actuais instituições –
será feita por gente com ideais muito distintos. A unidade far-se-á apenas
(o que já não é pouco) contra a sociedade da exclusão e os privilégios, com
todos os que queiram ver acabada a vergonha que se vive hoje – para que a
nossa civilização ocidental volte a saber o que fazer de si própria.
Não nos deve bastar reclamar
a mudança de modelo de desenvolvimento: devemos querer e saber construir
novas relações sociais, onde caibam todos os seres humanos, em nome da
Humanidade que desejamos um dia poder ser.
A política na era da
globalização não pode ser uma reflexão sobre Portugal. Tem de ser uma
discussão sobre as nossas possibilidades de colaboração com todas as forças
da liberdade e da igualdade deste mundo que se entendam como oponíveis ao
status quo e que dele estejam dispostas a libertar-se. As nossas redes
políticas devem estar abertas a todas as redes que se interessem por
política e possam contribuir para o resultado de alterar a situação,
nomeadamente o apear da classe política actual e, com ela, das redes de
solidariedade corruptas de que todos os dias temos sinais vividos nas nossas
vidas quotidianas, e instalar uma conflitualidade democrática não armada. As
nossas redes políticas devem saber ensinar-nos a vivermos nós próprios de
outras maneiras, com recurso mínimo à violência. E também organizar a defesa
da nossa liberdade política, pois o autoritarismo não tolera oposições.
Em resumo: há que contribuir
para a construção de um novo tabuleiro político – que já tem muitas peças em
funcionamento – separado e denunciador do tabuleiro actual. É preciso que
passemos a credibilizar e a sinalizar e a partilhar e a estimular e a
organizar as ideias marginais e de contraposição. É assim a democracia! É
preciso premiarmos a dissonância e a dissidência, reconhecer ideias e
sugestões que nos tocam e encontrar formas de dar força a isso a esse
debate: por exemplo, organizando encontros de mútuo reconhecimento e debate
entre pessoas e grupos alinhados nestes princípios de marginalidade
orgulhosa e jornais electrónicos de divulgação de tais eventos subversivos
para todos os gostos e sem censuras.
Sinalizemos com clareza e
determinação a vontade de antecipação daquilo que um dia terá forçosamente
de acontecer: o fim dos privilégios. Poupando aos povos de mais guerras,
perseguições, conspirações e destruições de ecossistemas. Esta é a
alternativa à decadência para um retorno aos privilégios feudais, que opõem
os que têm reformas milionárias por nunca terem trabalhado que não fosse a
pensar no dinheiro que ganham e os que vão perdendo as reformas a que tinham
direito assegurado, como os clientes do BPP ou os trabalhadores da função
pública.
Lisboa, 30 de Janeiro de
2010
A moral da liberdade – um debate necessário
14/6/2009
Os seres
humanos tem tendência a elevar o tom e a potência da voz quando querem
animar um grupo de pessoas (por exemplo, jogadores) ou quando querem vincar
um ponto de vista que lhes seja particularmente caro. A diferença entre
estas duas situações é no primeiro caso não há problema em reconhecer
publicamente a prática e no segundo caso os protagonistas costumam negá-la.
“Não estou irritado!”, gritam para o interlocutor.
“Estarei
sempre à disposição do Jornal da Noite!” disse Marinho Pinto e Moura Guedes.
“Tem toda a liberdade de responder como entender às minhas perguntas!” dizia
Moura Guedes a Marinho Pinto. Frases necessárias na medida em que eram ditas
num momento de alta tensão – foram uma forma de tomar posição – e porque
correspondem a excepcionalidades – os ouvintes poderiam imaginar
precisamente o inverso: que o Marinho Pinto estava a portar-se de tal forma
que jamais voltaria a ser convidado e que Moura Guedes actua de forma a
condicionar a capacidade de expressão dos seus convidados.
Este
episódio da vida portuguesa só não foi alvo de melhor análise por causa do
monopólio de poder entregue aos representantes dos partidos políticos (quem
não seja de um partido vê as suas posições reduzidas à insignificância, só
porque não vão a votos) e porque tal discussão atingiria centros nervosos da
crise nacional (que é de confiança, antes de ser económica), o que
distrairia os portugueses da economia política – segundo a opinião dos
ideólogos da situação, no poder ou na oposição.
O debate
televisivo pôs frente a frente duas perspectivas de acção social para
ultrapassar a (justificadíssima) crise de confiança dos portugueses em si
mesmos, crise essa já assinalada pelo filósofo José Gil uns anos atrás em
O Medo de Existir. Nenhum dos protagonistas pode ser acusado de ter medo
de existir, até porque nenhum dos dois tem medo de projectar imagens pouco
discretas sobre a sociedade portuguesa. O contrário seria mais verdadeiro:
ambos procuram protagonismo, que tanto na linguagem da polícia como dos
políticos, pelo mesmo tipo de razões, soa a demérito.
Protagonista é alguém que, intencionalmente, procura investir o seu corpo,
as suas ideias, a sua energia vital, no espaço público, eventualmente a
favor do público, mas em todo o caso animando esse espaço. Em democracia
podemos não estar de acordo com as intenções ou a forma de actuação dos
protagonistas, mas será em torno deles que se pode produzir opinião,
participação cívica e consequentes condicionantes à acção dos poderes
públicos. Por isso julgo ser oportuno utilizar este espaço mediático que me
é oferecido para reclamar mais debate público sobre estes protagonistas em
confronto. Até porque nenhum ameaçou passar para os meios judiciais aquilo
que é do foro político (embora não partidário). Não há problemas com o
segredo de justiça, tantas vezes utilizado como arma de arremesso político,
não apenas conspirativo e cabalístico mas também, quiçá sobretudo, na medida
em que serve para intimidar quem entenda haver questões políticas a tratar
para além das questões judiciais.
Concordei
com os que alegaram ser de proteger e apoiar as iniciativas mediáticas,
especialmente nos grandes órgãos de comunicação, que se proponham não
respeitar o pacto de silêncio sobre a crise moral que o pais atravessa. É
claro que é discutível a forma como se faça isso. Temos exemplos de sobra,
sobretudo na política e na banca (às vezes, uma e outra, parecem a mesma
coisa), de moralistas – PRD, PP, BCP – cuja moralidade foi publicamente
posta em causa de forma escandalosa. Portanto, se na substância estou de
acordo com a política de adoptar uma postura pública de denúncia da
imoralidade, também não posso deixar de estar de acordo com a necessária
crítica ao modo de cumprir tal política, não vá a forma negar as intenções.
Não
concordei com todos os que defenderam tal posição contra o Bastonário da
Ordem dos Advogados, como se este fosse alguém em campanha contra a
liberdade de palavra, ou sem se referirem ao assunto substantivo – a luta
dentro da Ordem dos Advogados – que esteve na base do convite para estar no
Jornal da Noite e, também, na base da contestação do trabalho jornalístico
por parte de Marinho Pinto.
Se for
verdade que a Manuela Moura Guedes se preparava para interpelar o Bastonário
de modo a apoucar a sua legitimidade e posição social e política, o que
julgo ter sido confirmado pelo que se passou, não terá o Bastonário – como
qualquer outro convidado – o direito de se indignar e de se defender? Será
tal atitude um ataque político à liberdade de expressão?
Aqui
chegados temos que ponderar: a violência simbólica nos media (e na sociedade
em geral, já agora) deve ser contida ou moral e livremente regulada?
O fim da economia
A noção de
nova economia tem sido discutida por um lado como uma fuga teórica da teoria
do valor-trabalho e da teoria da exploração e, por outro lado, como uma
ficção que tende a separar (economias nacionais dos países desenvolvidos) o
que a globalização juntou (circulação livre de capitais e investimentos
incluindo deslocalização do trabalho). A nova economia é a grande narrativa
correspondente ao novo espírito do capitalismo, em que tudo – incluindo as
repartições do Estado ou os trabalhos beneméritos ou as tarefas intelectuais
ou religiosas – tudo deve passar a ser equalizado, digamos assim, pela visão
menagarial do mundo (uma contabilidade refinada com coaching,
com uma pitada de iniciativa e muito modelo de negócio, isto é produtos mais
ou menos tóxicos que dêem lucro).
E se a nova
economia, em vez de ser uma ideologia a realizar fosse antes uma descrição
empirista do mundo tal como ele é visto a partir dos bem sucedidos?
Se a era do
progresso (ainda que apenas sonhado) se acabou? Se as classes dominantes
perderam a confiança no futuro da humanidade, se deixaram de se entender
como dirigentes e passaram a entender-se como domadores? Nesse caso poderiam
reunir-se em locais longínquos e secretos, ultradefendidos com seguranças
temerosas e numerosas, em conclaves sem conclusões que não fossem as
canalizadas através de think thank secretos, próprios para gerarem
opinião através de colunas em canais de comunicação adaptados ao pensamento
menor dos que fazem do quotidiano reality, do consumo sonhos e do
futuro uma merda.
Ao
contrário do século XIX, o trabalho não tende a ser um bem escasso. As
tecnologias e a dificuldade de consumir tudo o que é preciso para mascarar a
queda da taxa de lucro, a globalização, tornam o trabalho super abundante,
tanto mais quanto mais populações são integradas nos mercados de trabalho. O
resultado é que as pessoas agarram-se aos empregos como se eles fossem
trabalhos, quando na nova economia são sempre meios de realização de capital
(o que dantes se chamava comércio) a que anteriormente se chamava trabalho
improdutivo. Trata-se não só de encontrar quem possa estar interessado num
certo produto que beneficia da produção barata em série. Trata-se também de
informar a produção sobre as “necessidades” dos consumidores (em produtos
tóxicos e outros) para que a produção flexível, on demand, just in time,
utilize esse canal para realizar capital.
Aqui em
S.Paulo todos os Omnibus (os autocarros da terra) para além do condutor têm
um cobrador (que nome, heim? Cobre – bicho diabólico – e dor – de
sacrifício). Os cobradores têm emprego, claro. Acompanham de perto o uso das
máquinas automáticas pelos passageiros e também aceitam cobrar bilhetes aos
poucos que não trazem cartões. O que mais fazem é dormir em cima da mesa dos
trocados, coitados. “Não há nada para fazer!”
O seu papel
é de guardas do mercado. Explico-me. Atrás de cada cobrador há uma
informação que refere o facto do código penal brasileiro condenar entre 15
dias a dois meses de prisão (prisões brasileiras) quem entre em restaurante,
hotel ou transporte público sem ter meios de pagar. Esta brutalidade,
evidentemente, pretende dissuadir os que estão fora do mercado de trabalho e
não conseguem arranjar dinheiro a penetrarem no meio social dos que podem
pagar (quem anda de omnibus são os pobres trabalhadores, claro). Os ladrões
bem sucedidos, esses podem entrar.
O aumento
demográfico das metrópoles, a sua desindustrailização, o aumento do sector
da segurança e do comércio, a necessidade de aumentar a velocidade de
circulação de mercadorias, cada vez mais à medida que o número de empregados
vai decrescendo por via dos processos de racionalização, o temor da
avaliação da produtividade ou simples utilidade do trabalho por parte dos
trabalhadores, convencidos de que estão empregados apenas por simpatia e
confiança pessoal dos seus empregadores ou chefes directos, a vontade dos
modernizadores de pressionar os custos do capital (e do Estado) quando chega
a altura da crise, tudo isto tende a tornar cada vez menos escassa a
mão-de-obra e o trabalho.
Não é isso
o fim da economia?
Concerteza:
o que já vivemos não é uma crise económica – essa já foi há anos. O que
temos é uma crise de confiança dos dominantes de poderem continuar a enganar
os outros todos com a ideia de nova economia. Para os dominantes já é
evidente que não têm defesa nenhuma, assim os incrédulos burros que os
acompanham como serviçais se dêem conta, aceitam dar-se ao trabalho de
dar-se conta, de que não terão cabidela nos planos futuros da classe
dominante, cujos privilégios são cada vez mais escassos – devido à crise
política, à crise ecológica e à crise financeira.
Os ladrões
podem manter-se livres da perseguição judicial, mas como poderão continuar a
legitimar poderes de estado e de opinião fantoches nas actuais
circunstâncias de zangas das comadres?
2009-05-13
A violência dos modernizadores
Perante as notícias de carros
incendiados e tiros de contestação das práticas policiais levadas a cabo nas
ruas de Setúbal, há quem venha desdramatizar – “Já passou! É só fumaça!” – e
quem se prepare para pedir reacção “exemplar” da polícia, já que nos últimos
anos, segundo informações de peritos na matéria publicadas recentemente, os
polícias portugueses “só” mataram em média 5 pessoas por ano (nos EUA parece
se a média tem sido 11, pelo que, em termos de modernidade, como se vê,
ainda há alguma margem de manobra). Para compor o ramalhete só falta aqui o
argumento dos custos da modernização: como se fosse verdade (e é mentira)
que a urbanização e a industrialização sejam sinónimo de maior violência
quotidiana nas sociedades afluentes.
Estamos num período de
expectativa relativamente a saber de onde a violência vai irromper: do lado
do governo, apertado pela contestação popular, por processos judiciais e
escândalos regulares de abuso de poder? Do lado da oposição, que – ao que se
diz – já começou a atirar líquidos para a roupa dos candidatos do governo a
eleições europeias? Do lado da União Europeia, que tem discutido propostas
interessantíssimas como as 65 horas de trabalho semanais ou a privatização
da Internet? Do lado dos pobres e excluídos, sobre quem pesa o novo encargo
de pagar a crise criada pelas pessoas de confiança dos governos mundiais?
Ainda recentemente persistentes
tumultos na Grécia assustaram os comentadores, já que o problema veio de
onde menos se esperava: dos adolescentes ricos das cidades gregas, que se
juntaram aos contestatários crónicos e a que se juntaram os imigrantes, o
lumpen e os trabalhadores precários.
Querem-nos fazer querer que a
violência organizada é uma consequência das ideias “radicais” ou de simples
oposição, dos estrangeiros, dos desempregados, dos pobres, dos excluídos.
Não é da polícia que se prepara para a guerra social, a quem os governos dão
meios bem mais caros do que custariam programas de integração social dos
excluídos. Não são os que acumulam reformas de luxo, umas atrás das outras,
enquanto preparam políticas de contenção e de actualização das fórmulas de
cálculo para reduzir as reformas dos outros. Não são os reguladores que
entregam aos regulados a informação para se auto-regularem, enquanto
partilham entre si os benefícios do domínio sobre as instituições
democráticas definhantes.
Os bairros pobres terão que
aguentar a crise, pagar o que puderem e manter-se quietos e calados,
agradecidos pelo favor de viverem perto dos privilegiados e poderem aprender
com eles as competências para se poder viver assim, como por exemplo:
aprender a poupar, a conter as despesas.
Sem dúvida, há que reconhecê-lo,
em Portugal tem sido possível manter o povo agachado de uma forma que até já
irrita muitos comentadores: os portugueses não “inscrevem”, filosofou José
Gil no seu “Medo de existir”. Ficou famoso por isso. Aliviou muita tensão
acumulada, mas os portugueses continuam sem inscreverem nada. Será essa uma
situação sustentável?
O Estado e essa gente que se
governa em nosso nome não vêem razão para se preocupar. Enquanto for dando,
já lhe chegam os problemas que têm mais próximo de casa. Tal como ensinou o
Presidente Bush, o que fazem, em matéria de segurança, é assegurar que a
guerra se passa longe de casa, lá nos bairros problemáticos para onde
procuram empurrar, para debaixo do tapete, a violência e as guerras
compradas na bolsa de valores sociais, desvalorizando assim ainda mais
populações manipuladas mas, por isso mesmo, imprestáveis para colaborarem em
nenhum programa de desenvolvimento, que aliás e significativamente também
não existe, como anuncia insistentemente o Presidente da República.
Os modernizadores, afinal, só
têm uma ideia na cabeça: esperar que as coisas que se componham ou cheguem
ordens de quem saiba mais, tipo FMI, OCDE, Banco Mundial, ou alguma seita
secreta dominante. Ordens para se implementarem a martelo, quer a gente
queira quer não, quer eles saibam o que estão a fazer quer não. A
estabilidade está garantida, com Bloco Central ou sem ele: quem ainda espera
disso alguma coisa, além de porrada?
9 de Maio de 2009
Análise da situação de crise
A
insistência na disciplina económica para compreender a crise, ainda que seja
sob a forma de uma economia política, parece-me um erro crasso a evitar e a
denunciar. Assim o farei aqui brevemente, utilizando o caso daqueles que
estejam, porventura, a desenvolver expectativas, esperanças e actividades em
propostas cooperativistas ou tomando por certas as condições sociais que
permitem actualmente algumas das populações urbanizadas imaginarem poderem
viver autonomamente como indivíduos livres e auto-determinados.
O
sucesso perspectivado das actividades de moralização dos grupos sociais
económica e socialmente mais activos (trabalhadores e empresários, por
exemplo através de formação ou coaching ou através de programas de
solidariedade social como forma de promoção das marcas empresariais) de modo
a estabelecer aí, nas práticas laborais, as bases para a moralização da vida
pública decorre da aplicação uma perspectiva marxista, adaptada aos tempos
actuais: será a infraestrutura que ao transformar-se obrigará a uma
adaptação da super estrutura.
Para efeitos de polémica simplificarei dizendo que uma análise de classes
actualizada (isto é, sensível às profundas transformações anti-progressivas
que se tem confirmado nas últimas 3 décadas) nos levará a infirmar essa tese
marxista, na medida em que – ao inverso do que acontecia no tempo de Marx –
a inversão do sentido do progresso está a tornar a economia um efeito
secundário da política (ao contrário da tese banalizada pelos partidos
marxistas, social-democratas, democratas cristãos e conservadores actuais).
Sendo que essa política é a política do privilégio e do saque – leia, por
favor, Peter Oborne The Triumph of the Political Class.
Se
eu tiver razão, com a autonomização do sistema político (globalizado)
relativamente aos sistemas sociais (locais), a moralização das práticas
locais ou é uma forma de tomar conta do destino de cada um em solidariedade
com os outros que dependem do local (através de programas de solidariedade
interclassista que não existem) contra os que exploram o local em nome do
global - o que bem é preciso fazer, mas com grandes dificuldades práticas e
teóricas – ou também pode ser uma forma de evitar o confronto (inevitável,
em todo o caso) com os poderes globais e moralmente (compreensivelmente)
extra sociais e mesmo anti-sociais. Foi a Tatcher que ficou famosa entre os
sociólogos por ter declarado que não existia nada disso a que se chama
sociedade.
2009-04-16
A justiça de Entre-os-Rios
“Quem se
mete com o PS leva!”
O que é que esta enigmática
frase tem a ver com o caso da queda da ponte de Entre-os-Rios? Tem o mesmo
autor, cuja demissão de ministro das Obras Públicas após o desastre foi
saudada como um raro exemplo de assunção de responsabilidades políticas.
Em Portugal, diz-se com razão,
só as bagatelas criminais são julgadas e a corrupção sobrevive “acima de
qualquer suspeita” à vista de todos. Quem não esteja protegido por
cumplicidades de sociedades secretas dominantes pode ser atacado pela
justiça. Por isso é hora de perguntar, em especial ao Sr. Jorge Coelho que
certamente saberá o que diz e como as coisas funcionam (dizem as más línguas
que é ele um dos que melhor as sabe pôr funcionar), se os familiares das
vítimas do desastre de Entre-os-Rios se meteram com o PS?
Uma petição ao Estado dos
familiares das vítimas reclama que se encontre um modo de evitar a sua
falência, ao terem sido intimados pelos tribunais a pagar meio milhão de
Euros pelas custas judiciais. Espero que haja vergonha e que deixem as
famílias em paz, ainda que à custa de uma atribuição de um privilégio
qualquer que queiram inventar para o efeito.
Mas o problema político é outro:
o que espera os cidadãos que recorram à justiça e não tenham direito a
privilégios?
A justiça insensível à
corrupção, ou melhor incapaz especialmente perante a corrupção, é explosiva
para com os denunciantes e as vítimas, em especial quando as vítimas o são
por efeito de acções do Estado. Numa época de tanta perversidade ética e
moral em torno de interesses financeiros e políticos, ambos cada vez mais
distantes da vida das populações, mesmo das populações de classe média,
quando se anunciam aumentos brutais das custas judiciais já de si
maximizados pelas políticas de (in)justiça dos últimos anos, tendo em conta
as condenações da Comissão de Prevenção da Tortura e do Tribunal Europeu dos
Direitos do Homem contra o Estado português, que sinal nos é dado pela
experiência do julgamento de Entre-os-Rios?
“Quem se mete com os interesses
protegidos pelo Estado leva!” E justiça, é melhor não pensar nisso.
Em Portugal não há tradição de
trocar indemnizações por ofensas mas, no estado em que estamos, é o Estado
europeu mais incapaz de assegurar níveis mínimos de justiça social que
encaixa indemnizações, produza ou não justiça – e, a experiência mostra-o,
não é de esperar que nas próximas décadas haja condições para produzir
regularmente justiça compreensível ou credível. Pelo contrário, o que se vê
é a proliferação de privilégios. Alguns compreensíveis para ultrapassar
injustiças profundamente arreigadas na sociedade portuguesa – como a
injustiça endémica das práticas institucionais – cobrem os outros, aqueles
que queremos todos combater mas não podemos, porque senão levamos.
16/4/2009
O pingalim de serviço ao sistema
O nosso ex-ministro medalhado pela administração
Bush – por feitos jamais revelados em público – retomou poses de Estado para
explicar porque é que o governo português não deve respeito e acatamento às
decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Condenado o Estado português por ter atentado
contra a liberdade de expressão – no caso do barco que procurava atracar em
portos portugueses para tomar posição sobre a questão do aborto – vem alguém
que diz de si mesmo ambicionar representar – ainda mais? – o Estado
português explicar porque faria exactamente a mesma coisa caso tivesse poder
para tal. E nem sequer se estranha que para o efeito evoque a Lei.
Como se sabe, a lei em Portugal é propriedade de
quem nela se possa pendurar. Infelizmente não é uma piada. É a vida
portuguesa.
É, assim, possível fazer carreira política com
um único ponto de programa: o aumento das penas de prisão. Mas é também esse
espírito carcereiro que impede voos mais altos. A malta está de acordo. Mas
descola da vileza necessária para cumprir tais promessas. Os amigos do Bush,
ao invés, reconheceram-no como amigo.
2009-02-04
O que há para se fazer?
No programa
Prós e Contras da RTP de dia 2 de Fevereiro de 2009, a respeito da
confusão judicial em torno das alegações de corrupção no caso Freeport, que
atingem o primeiro ministro de Portugal, e, portanto, todo o país,
geraram-se consensos sobre a culpabilidade do sistema judicial na situação e
sobre a desorientação geral sobre como ultrapassar o problema, sem falar
como prevenir réplicas do mesmo. Que fazer, perguntava a jornalista aos seus
convidados: “Não sei!” foi a resposta mais precisa que obteve.
Como pau
carunchoso, o Estado português desmorona-se à frente dos nossos olhos sem
haver quem ponha mão nisto? Hilariante, e significativa, não fosse caricata,
foi a interpretação feita das palavras do Presidente da República sobre a
inépcia dos legisladores: Cavaco Silva referia-se à nova lei do divórcio –
seu cavalo de batalha – e, porque não o referiu expressamente, todos
interpretaram a acusação de falta de qualidade na produção de leis como um
bota abaixo ao Parlamento e aos deputados. O Presidente ficou refém das suas
palavras e os comentadores usaram isso para denunciar o estado a que a coisa
chegou.
Gente como
Júdice – cujo prestígio cívico o impede de ocupar lugares de
responsabilidade pública sem ser enxovalhado (embora seja presença assídua
nos media) – teme pela democracia. Aqui chegados temos de nos perguntar de
que democracia se fala? A democracia que não sabe que fazer perante o
naufrágio do Estado? Isso não é democracia! Isso é nepotismo e oligarquia,
como alguns dos mais reputados politólogos estão cansados de afirmar, sem
que ninguém os queira e possa ouvir.
O Estado de
Direito e a Democracia ou se constroem juntos ou se abraçam mutuamente como
náufragos. Infelizmente é este último o caso em Portugal. O que há a fazer?
Impor a Democracia e o Estado de Direito. Como: lutando pela liberdade de
expressão e pela liberdade política, princípios básicos dos Direitos
Humanos, contra o compadrio, a arbitrariedade e a corrupção.
Há os que
dizem serem tais objectivos políticos populistas, abstractos, demagógicos e
não operacionalizáveis. Esses não são os democratas militantes de que
Portugal precisa neste momento. Vejam, por favor, o que tem dado 30 anos de
preocupações políticas centradas na economia: colapso e desorientação,
vergonha e desânimo. Democracia é existirem efectivas possibilidades de
mudança de política sem violência. Passarmos a dar prioridade política a
questões morais, base da confiança social e por sua vez base da
possibilidade de desenvolvimento económico. Ora, tais condições não estão
reunidas em Portugal, como o caso Freeport evidencia à saciedade. A
Democracia que dizem que temos distingue-se do Fascismo de forma positiva,
sim. Mas de nada nos servem, de facto, actualmente os males do passado.
Precisamos de liberdade para organizar o futuro e, essa, falta-nos.
2009-02-03
Matem a morte
Como é que
uma manifestação a favor da justiça e da paz, denunciando o assassínio de um
jovem de 14 anos por um polícia, pode tornar-se no motivo de um ferimento de
uma agente da polícia por um dos manifestantes?
Da mesma
maneira que os comentários na Internet às notícias comparavam os traumas
desenvolvidos pelos roubos de automóveis com os causados pela morte de um
jovem, como se os primeiros justificassem os segundos.
A natureza
humana é de uma enorme capacidade de violência. Veja-se o que foi capaz de
fazer com o planeta e com as guerras, por exemplo. O que não quer dizer que
a natureza humana seja hobbesiana, do todos contra todos. Ao contrário: para
sobrevivermos à nossa própria violência precisamos de apoio social dos
nossos próximos, daqueles que sejam capazes de nos reconhecer como gente.
Com as nossas qualidades e com os nossos defeitos.
A sociedade
organiza-se para reconhecer as qualidades (às vezes inexistentes) de alguns
– vejam-se, por exemplo, as práticas de auto-elogio dos poderosos para
aumentarem o prestígio dos seus grupos de influência – e para salientar os
defeitos (às vezes induzidos pelas profecias que se auto-realizam) de outros
– os excluídos.
O Estado,
esse, informado pelas doutrinas políticas e de direito, tem obrigações de
civilização: não discriminar, defender os direitos humanos, assegurar acesso
ao Direito, assegurar a liberdade de expressão, etc. Porque o Estado é
bonzinho? Não, pelo contrário: porque o Estado depende da capacidade que
tenha de pacificar a sociedade. Quando não cumpre essa função perde a
legitimidade e a justificação da sua própria existência – bem lucrativa,
como se sabe, para os seus beneficiários – e arrisca-se a ser alvo da
violência que não foi capaz de conter.
Um exemplo
quotidiano: quem declarou a guerra contra a droga foi o Estado, ou melhor a
ONU e o conjunto dos Estados. Desde então um enorme mercado negro emergiu
com tentáculos em toda a parte, incluindo nos corredores do poder. Quem não
sabe onde se trafica? Porque é que a polícia não acaba com isso? Pura e
simplesmente porque não está nas mãos da polícia fazer outra coisa senão
perseguir o pequeno traficante que é oferecido à morte e respeitar o grande
armazenista com influência corrupta suficiente para não ser apanhado. Nas
prisões, onde a maioria dos presos está lá por causa da droga, oferecerem-se
as doses que se quiser a quem puder pagar, sem que o Estado se sinta na
obrigação de acabar com isso.
Sendo o
Estado uma organização de gente, o que faz é auto-elogiar-se em permanência
a dizer que faz tudo bem – e quando isso não acontece a culpa é de algum
agente descontrolado que há que castigar. Acontece que os castigos previstos
são desagradáveis: expulsão da profissão (que é, nas nossas sociedades, o
tal apoio social que valoriza as nossas qualidades e minimiza os nossos
defeitos, a que os sociólogos chamam identidade) ou até a multa ou a prisão
(lugar onde todos os defeitos são valorizados ao extremo). E os amigos,
colegas, preferem evitar que isso aconteça por solidariedade e também para
impedirem o reconhecimento público de poder haver maldades ou defeitos nos
campos sociais onde vivem.
A exclusão
decorre do funcionamento social competitivo. Como os gorilas, gostamos de
bater no peito sem mácula, atribuindo a outros – que queiram experimentar o
mesmo gesto – o carácter provocador. Na verdade, o poder social é relativo e
exclusivista. A democracia é, porém, um modo de distribuição do poder. De
modo a minimizar a violência interna das sociedades e prolongar a
estabilidade do poder e a segurança dos detentores do aparelho de Estado.
Qualquer
manifestação, seja ela de professores ou de jovens, é sempre um risco para
os poderosos. Mas também é uma necessidade para os manifestantes. O que
acontece a seguir às manifestações (“Nós é que ficamos aqui!” – gritavam os
jovens locais contra um partidário da partir para a violência) é sempre
imprevisível. Todos os professores na rua, por si só, não fizeram recuar o
governo – pelo menos no imediato. Seria coerente uma manifestação pela
justiça e pela paz não ser causa de ferimentos, em especial em agentes da
autoridade acusados de serem, eles próprios, abusadores da violência
legítima. Os resultados, porém, decorrerão da capacidade de encaixe das
partes envolvidas nos acontecimentos.
O que se
viu na manifestação foi a reacção agressiva dos manifestantes ter-se
dirigido contra a pose de suave confrontação de quatro polícias na portaria
da esquadra, substituída depois do ferimento da agente de polícia pela
simples presença (descontraída) do chefe da esquadra junto das grades, em
diálogo com alguns jovens, à margem da manifestação.
A polícia,
a menos que seja radicalmente incompetente, teria de ter informações seguras
sobre o carácter e âmbito da manifestação: os jovens dos chamados bairros
problemáticos estão fartos – e ainda bem para eles e para nós – de serem
enxovalhados: de verem as suas características transformadas em defeitos
(nomeada e simbolicamente a cor da pele) e os defeitos transformados em
identidade colectiva. Pretendem – que bom! – reconstruir a sua identidade
social, transformando-a numa boa marca, como agora se diz, à luz de
exercícios já realizados a pretextos diversos (a Zona J tornou-se um mito do
cinema português e a Cova da Moura tornou-se num percurso turístico).
Ao Estado,
por seu lado, caberá afirmar a democracia: assegurar o direito de
manifestação, a liberdade de expressão e reconhecer o diálogo como forma
privilegiada de acomodar a emergência de novas identidades – de boas
identidades – na sociedade portuguesa.
Há aqui
riscos para o poder? A vida é um risco para o poder. Também para as
crianças, como se viu no caso do jovem abatido. Agora os riscos podem ser
maximizados, como quando os polícias se ofereceram aos manifestantes como
alvos, em vez de dialogarem com eles ou de, como é normal noutras
manifestações, organizarem a segurança da manifestação e assegurarem a
liberdade de expressão.
Não,
não. A responsabilidade da pedrada e do ferimento da polícia é da
manifestação e do manifestante em concreto que lançou a pedra. Do mesmo modo
que o assassinato do Kuku (do
Angoi, do Tony, do PTB, do
Tete, do Corvo) deve ser assumido por quem de direito. Não na lógica do
roubo de carro pela vida de quem possa estar próximo dos culpados, mas na
lógica de dar nomes positivos a jovens traquinas, rebeldes, provocadores,
desorganizados, que só diferem dos filhos das classes dominantes por serem
excluídos nas escolas, nos locais de residência, no acesso ao emprego, no
acesso aos centros de diversão comercial, da imagem púbica sobre o que é a
vida em Portugal actualmente.
2009-01-18
Campos
de caça
16
Janeiro 2009
Um
polícia executou um jovem de 14 anos com um tiro a 10 cm da cabeça. A
polícia não tinha disso qualquer informação: apenas soube dizer que o jovem
roubara o automóvel e estava armado. A família recordou ter tido a
possibilidade, nas vésperas do homicídio, de retirar das mãos da polícia o
rapaz, pois queriam levá-lo com eles (?).
Passa-se isto dias após o senhor Procurador-geral da República manifestar os
seus receios de agravamento da violência nos bairros classificados como
“problemáticos”, nomeadamente por a circulação de pessoas no espaço da União
Europeia ser uma realidade – pelos vistos perigosa.
Passa-se isto seis meses depois de o governo ter enviado a polícia à caça
nos bairros periféricos, para provocar uma cobertura mediática estival capaz
de contrapor aos casos de incapacidade da polícia para deter o crime a
manifestação do poder de intimidação da mesma polícia contra o Outro, aquele
que habita em bairros escolhidos para o efeito.
Passa-se isto meses depois de os jovens residentes nos bairros de caça
policial começaram a contar e a nomear a lista dos companheiros abatidos
pela polícia desde que têm memória.
Enquanto os técnicos descobrem ocorrerem a maioria dos crimes nas zonas
nobres das cidades, onde a polícia não quer, não sabe ou não pode evitá-los,
a administração interna divulga os locais de residência dos alegados
meliantes – que não podem deixar de corresponder aos locais onde a polícia,
longe do palco dos crimes, actua quotidianamente de forma ostensivamente
intimidatória.
Maximiano Rodrigues, instalador do IGAI, organismo de polícia das polícias,
deixou-nos em testamento a denúncia do interesse do governo em desprestigiar
esse organismo de Estado, ideia confirmada pelo seu sucessor no cargo.
Disse, na altura, que o facto de no ano em que se demitiu de funções não ter
havido vítimas mortais de encontros com a polícia, tinha sido resultado do
trabalho do IGAI e, disse mais, o desprestígio do IGAI significaria – como
se veio a verificar – um aumento de homicídios cometidos por agentes e um
desprestígio da polícia.
Um
agente de segurança do Estado, fora da comunicação social, manifesta-se
preocupado pelo facto de, na sua corporação, a base de recrutamento estar a
encurtar - apesar do desemprego, o número de candidatos aos lugares a
concurso tem diminuído – e a selecção não excluir, ao contrário favorecer,
os cabeças rapadas.
Uma das
razões de, a partir de 1996, ter começado a tomar mais atenção às questões
de segurança foi uma resposta que na altura ouvi a um assessor jurídico do
primeiro-ministro de então: “Quem é que o senhor quer que agente lá meta?” A
pergunta foi:”Como é possível estar um fascista à frente de uma direcção
geral de serviços de segurança?”
A
guerra colonial acabou, faz várias décadas. As relações de amor-ódio entre
os povos envolvidos desenvolveram-se. Por que é que a maioria dos filhos e
dos netos negros dos portugueses e dos imigrantes que escolheram ajudar a
construir a modernidade desta país têm de pagar tão alto – com a exclusão
social organizada superiormente e executada também pela polícia – o preço de
viverem aqui? Por que fazemos das suas dificuldades de integração social,
negligenciadas pelo Estado, bodes expiatórios dos nossos erros colectivos?
Por que é que em vez de tratarmos de enfrentar as verdadeiras questões – o
crime onde ele se pratica, a falta de vontade política de regulação (tanto
económica como policial, tanto laboral como nos alojamentos sociais), os
jogos de poder, os vícios de praticar o racismo, a homofobia ou o machismo –
preferimos, através dos nossos governantes e dos meios de comunicação
social, convencer-nos que as nossas inseguranças se resolvem fustigando o
Outro?
Segurança com liberdade!
Democracia sem exclusões!
MATEM A
MORTE
Gaza and Acts of Terrorism
Dear R.D.Coates,
It is sad when to rule of market is used by its
adversaries (I suppose you are) to talk about something what you don’t feel
the need to understand.
You present the Gaza last week events as a play
between two sovereign armed parties: one, strongest than the other and full
of goodwill, only show its power when provoked.
You accept that Hamas is mostly using terror (meaning
psychological war that produces fear in living people) and Israel used
deadly strategies. My questions are: Do you propose that death is morally
cleaner than terror? Why did you not mention the fear feelings of
Palestinian side? Are you not sympathetic with?
You should present the situation in Palestine as a
situation where a modern State, sponsored by Western powers, organized a
discriminatory legal regime based on religious and ethnic segregation, where
one can find 4 different kinds of citizenship (with different social
economic and political rights associated by legal constraints), beside the
people with no identity at all (1/3 of the population is out of national
statistic counting) who lives in city like no roof prisons, from where the
water, the food, the healthcare, the identity cards, the traveling licenses,
the jobs, every single part of life is controlled by the armed enemy,
organized as an army.
Do you know that a Jewish person cannot married
legally in Israel with other people than Jewish legal recognized person? Do
you know that mixed couples must married themselves in Creta? Do you know
there are roads where only Israeli persons can drive? Do you know if you are
Palestinian it is possible you cannot be able to invite friends of your at
your home place?
Do you understand what means for the people in Gaza
being under siege for months for voting wrongly in Hamas candidates? Why
should not the Humanity (if it has an army) siege north American people for
voting George W. Bush? (ok, I know: your President, himself, did it anyway).
Do you listen to the news about the electoral
competition between Israeli parties on killing Gaza people, such as unarmed
civil police, presented by Israeli government as they were warriors?
I do not know much about what is going on the Middle
East. I do not need to know much to say that your speech about it is
absolutely wrong. You do not argue with facts. You moralize the situation.
That would not be a problem if you would be able to be balanced: terror is a
feeling only felt by Israeli? Strange, is not it? Comparing death
causalities with terror feelings is not subtle: is wrong, obviously.
You tried to avoid the evidence: in that case you
prefer to back the guards of the biggest prison on earth against the
prisoners. It is a choice (a very common choice, I must say). Anyway a wrong
choice: the violence comes (off course) from the master of the situation (look
at Zimbardo Lucifer Effect, please). The situation still is in place because
it serves the master. Who is the master? That is the big question.
USA will shut down Guantanamo. Well done. Still, one
should shut down all prisons in the world, where mankind dignity in mocked
by and used by criminal leaders to stay in power, corrupt power - as we can
see in Palestine and Israel too.
In Israel there no war. There is a western colonial
like occupation using Jewish guards to control Palestian people inside
prison walls. Israeli citizenship is imprisoned, as much as the families of
prison guards are imprisoned too. Even they get some privileges.
Silenced by the violence they perpetrated every day,
as a professional task, to serve western interest against whatever are the
relevant values of western civilization, Israeli people seek for peace as
much as Palestinians. How is it possible, if western powers need them where
they are? That is why they are paid for, is not it?
There is a difference between Europe and USA. A
speech like R.D.Coates wrote would be difficult to be written in Europe.
That is why I felt the need, for the first time in
my life, to write about Palestine. I know very little about it. I hardly can
write in English. Any way my point is not hard to make: you are morally
biased, Mr Coates. You follow the evil side that legitimate the oppression (even
the genocide and the ethnic religious apartheid) inventing a war with only
one army in the field. There is no such a war, except in the market
ideal-type ideology.
2009-1-3
melhores cumprimentos
António Pedro Dores
Gaza and Acts of Terrorism
Rodney D. Coates*
With extreme sadness I have watched
events unfold over the past week as thousands of Palestinians and Israelis
have been traumatized by violence, death, and terrorism. All of us have
seen the distraught faces of children, past mourning, in a sort of daze as
the mayhem and destruction assaults reason on a daily basis. While cries
for a cease fire and some sort of temporary resolution have gone unanswered,
the missiles continue to fly from both sides. Now, as a ground assault
seems imminent, many have tried to paint the Israeli's as the culprit we
must not ignore the repeated and blatant acts of terror by Hamas which
continues to precipitate the crisis.
For days, Hamas directed hundreds of
missiles daily to rain upon innocent Israeli towns. For a similar number of
days, Israel held back with restraint. It was only after several days of
continual missile attacks, did Israel finally decide to retaliate. I find it
strange that many now call these acts of self-defense cruel and inhuman.
Without minimizing the hundreds of Palestinian civilian deaths, we should
equally not minimize the abject act of terror on the part of Hamas which has
directly resulted in these deaths. Put simply, Hamas acts as a coward by
hiding among the innocent while it wages its terror attacks upon Israel. By
so embedding its military operations within towns and villages, Hamas
commits the perfect act of terror.
The function of Terrorism is to use
limited resources to get maximum exposure in various media. The aim of
terrorists is not to win a war or a battle, but to garner the maximum of
publicity for a particular cause. Therefore, terrorist's campaigns are
judged according to the amount of media exposure their actions produce. The
most successful campaigns, from the vantage point of the terrorist, are
those which minimize their losses while maximizing the terror produced.
While we note the number of Palestinian people that have been killed, few
have counted the number of Israelis' who have lived in terror for the past
few weeks not knowing when and if a missile will strike. The most potent
weapon of terrorist is fear, and the daily fear of not knowing maims
thousands of Israelis. Further, being forced to retaliate, the Israelis
suffer worldwide condemnation for their response. The actual blame should
fall on Hamas who chooses to hide behind women, children and the innocent.
Victory in this dance of death will
not come from violence, it must come from diplomacy. But diplomacy cannot
come until the violence has been abated. Israel would be foolish to abandon
its own defense while being attacked. We pray that sanity will come to the
Middle East, that the Palestinian leadership will abandon the use of terror
cloaked in human lives and seek peaceful resolution of this conflict. We
can ill afford to reward acts of terrorism, cowardice and violence. We must
continue to demand peace, diplomacy, and compromise.
Rodney D.
Coates
Professor of
Sociology and Gerontology
Miami
University
Oxford, Ohio
45056
513 - 529
1590
Obviamente, demita-se o presidente da CP
Notícia nacional do dia
(2009-1-3) foi a abertura de um inquérito à administração da CP para
investigar um série de factos alegados em carta anónima indiciando nepotismo
e gestão danosa em casos muito concretos e com autores também identificados.
Um dos visados é o próprio presidente da CP, cuja honra – compreende-se –
poderá estar afectada.
A forma como reagiu deviam
impedi-lo, de moto próprio ou por iniciativa da tutela, de continuar no
cargo.
Não está em causa a culpa
que possa ter ou não ter nos casos (se existem) arrolados na denúncia
anónima. Só com um conhecimento mais detalhado das acusações poderia
apreciar a necessidade ou não da sua exoneração do cargo: ainda que o
interesse público deve sempre prevalecer sobre interesses privados, como a
honra ou a posição de seja quem for, não é lícito nem interessante para o
bem público oferecer a falsos acusadores a possibilidade de afastar
dirigentes inconvenientes.
O que é intolerável – para
o interesse público – é o comportamento do presidente da CP confrontado com
as acusações.
a) o anúncio da intenção de
mobilizar o processo penal para perseguir os denunciantes é intolerável.
Primeiro porque o país precisa de todas as denúncias possíveis para combater
a corrupção endémica de que sofre. Segundo porque o processo penal não é,
não deve ser, a sede de debate de políticas de gestão de empresas públicas.
Terceiro porque justificou com tal reacção o facto de os denunciantes se
terem coberto com o anonimato, com o legítimo e compreensível propósito de
se salvaguardarem – precisamente – de ataques judiciais que oneram a vida
das pessoas por muitos anos, décadas eventualmente, sujeitas a todo o tipo
de pressões e humilhações próprias deste tipo de tribunais, especialmente em
Portugal onde a justiça é o que é.
b) a mobilização de
recursos da CP para prosseguir fins pessoais é intolerável. O presidente da
CP anunciou ter dado ordens aos juristas da empresa para perseguirem
criminalmente os denunciantes, 34 funcionários da empresa não identificados,
iniciando uma caça às bruxas para que todos os apaniguados do Presidente
dentro da empresa procurarão contribuir com alguma dica, a fim de ajudar a
salvar a honra do seu chefe. Ora, as empresas públicas pagam suficientemente
bem aos seus administradores para que eles tenham recursos – apesar dos
elevadíssimos custos da justiça em Portugal – para pagar aos seus próprios
advogados e as custas judiciais, sem recurso a bens públicos, muito menos
aqueles que estão à sua disposição para fins empresariais (e não para fins
de interesse pessoal).
O interesse da CP é
combater a corrupção, o nepotismo, a gestão danosa e outros males que a
possa prejudicar, como organização e empresa. É certo que a defesa do
bom-nome de uma companhia também pode ser importante. Mas não no caso de um
monopólio. O bom-nome de um seu colaborador também pode ser relevante,
principalmente quando esteja em causa a moralidade social e, portanto, a
desmoralização do pessoal que trabalha e se identifica com a empresa. A
reafirmação da solidariedade colectiva que une quem trabalha quotidianamente
na empresa pode ser um acto de gestão e de liderança indispensável. E é
precisamente aqui que bate o ponto:
A moral da CP, e das outras
empresas públicas, não deve continuar a ser a moral neo-liberal (para usar
um estrangeirismo em moda) de que tudo e todos devem servir os melhores e
que estes têm direito a usar qualquer recurso para esmagar quem se lhe
oponha. A moral a construir para o futuro é a da velha distinção entre os
interesses privados e pessoais dos interesses empresariais, organizacionais
e sociais, tal como Max Weber descreveu (benevolamente) o espírito do
capitalismo (ideal).
A CP está atacada por
corrupção a nível da administração? Nada mais natural, no estado de coisas
actual. Há quem fique ofendido com isso? Isso é salutar. O presidente da CP
desce de chinela ao terreiro a ameaçar os denunciantes? Perdeu as
estribeiras – o que não é bom sinal para um gestor público -, mas quem não
se sente não é filho de boa gente. Anuncia ter mobilizado recursos públicos
para vingar a sua honra abalada? Equivale a uma auto-confirmação daquilo que
é o essencial da denúncia: o senhor presidente está habituado a usar o
património da CP para fins pessoais.
Demita-se.
Determinantes
2008-08-30
Faz trinta anos que fui
expulso de um curso de cooperativismo organizado pelo Instituto António
Sérgio, recém-criado, com financiamento do fundo da ONU para países em
desenvolvimento. Era um internato de poucos meses, com direito a um
rendimento mensal para os candidatos e alojamento mais refeições. As
disciplinas de curta duração eram avaliadas, à medida que iam sendo dadas,
através de testes e respectivas avaliações em notas de zero a vinte.
Já não me recordo dos
pormenores. Lembro-me bem, isso sim, de dois episódios.
Um deles refere-se à
organização interna do curso. Fazendo jus ao patrono do Instituto, as verbas
referentes aos pagamentos aos alunos foram entregues à comunidade dos
estudantes para, à moda republicana, assumirem a auto-gestão cooperativa. Um
dia, quando uma ou duas colegas abandonaram o curso (talvez por notas
insuficientes), os nossos rendimentos foram reduzidos de duas bolsas e
decidiu-se dividir por todos tal redução, enviando lá, para onde foram as
colegas, a sua remuneração.
Fiquei fulo. Primeiro porque
o dinheiro me fazia falta. Segundo porque foi a única decisão alguma vez
tomada pela “república”. Terceiro, mas a mais importante das razões, a
decisão foi tomada por umas irmãs de caridade amigas das miúdas que tiveram
que sair, contando apenas com a tolerância dos restantes aprendizes de
cooperantes.
Recordo isto porque me
lembrei de um amigo, também aluno desse curso, que se me dirigiu para me
dizer que estava a exagerar nos protestos. Quando o episódio me veio à
memória pensei para mim mesmo: já nesse tempo o caminho, que entretanto
percorremos durante as últimas décadas, estava a funcionar. Quem pode manda,
e o resto do pessoal procura evitar incómodos. Os princípios são exageros. A
discussão dos princípios uma estafadeira inútil. A injustiça tolerável.
O segundo episódio, ocorrido
no mesmo curso, revela-me como, efectivamente, também as instituições, ainda
de forma ingénua e titubiante, já tinham entrada na mesma linha.
O brasileiro funcionário da
ONU que acompanhava o curso começou a dedicar-se a actividades de bufaria.
Os organizadores imaginaram – ao que sei, erradamente – que haveria uma
célula comunista infiltrada entre os alunos. Para tirar as coisas a limpo o
energúmeno tratou de organizar já não sei bem o quê. Seja lá o que foi,
provocou em mim uma reacção: cada vez que o via chama-lhe bufo em frente a
quem estivesse presente. Ora, a partir de certa altura todos os meus
professores decidiram dar-me zeros em todas provas, tendo conseguido, no
final, por duas centésimas, inviabilizar a nota suficiente para eu ser
aprovado.
Logo que me apercebi do
caminho das coisas comecei a provocar situações capazes de denunciarem
perante os próprios fautores da perseguição encapotada a sua miseranda
verdade. E, no final, lá consegui um papel comprometedor assinado por alguém
e enviei o caso à direcção do Instituto. Se fosse hoje, claro, nunca seria
recebido. Na altura fui. Três aventesmas atrás de uma secretária olhavam
para mim como se fosse uma ave rara. Explicaram-me coisas ridículas, cuja
memória não tenho. E a coisa lá acabou, de tal modo que, passadas umas
semanas, ao entrar na faculdade de letras, ao dar de caras com uma das
aventesmas, o homem inverteu a marcha e resolveu sair do edifício por outra
porta para não ter que me enfrentar. Quiçá, temia ser esmurrado. Isso nunca
foi o meu estilo.
Depois de perder o curso do
Inscoop por apego aos princípios – na altura eram só situações intoleráveis
para mim – ainda teria de viver por quatro vezes, desta vez em situações
profissionais em todas as instituições por onde passei mais de 6 meses,
situações equivalentes: perante a reclamação avaliação da aplicabilidade dos
princípios a situações concretas, as autoridades baldaram-se e assumiram o
vergonhoso poder de tomarem para si a posse do pior que tem as instituições:
o poder expedito e arbitrário contra um ser humano que legitimamente quer
fazer o seu caminho com dignidade.
A função dos bairros problemáticos
2008-08-29
A comunicação social informa
sobre casos extraordinários de criminalidade violenta (assaltos a bancos em
que a polícia apanha os assaltantes em flagrante, explosões em carrinhas de
segurança de onde são roubados milhões) em parte, segundo relatos da própria
imprensa, resultado de algumas poupanças que os bancos fazem em termos de
prevenção e segurança.
A polícia mata em directo
nas televisões e os sentimentos do auditório explodem, como explodiam os
populares nos circos romanos. As televisões passam e repassam a sequência,
para satisfação pública, eventualmente na esperança de o caso servir de
medida de prevenção contra quem possa imaginar ou querer assaltar bancos ou
cometer crimes violentos. A punição, diz-se, serve para intimidar os
criminosos e a punição mais violenta torna o cálculo custo/risco benefício
potencial uma equação mais difícil de ser propícia a uma decisão pela
violência.
Os dias seguintes mostraram
precisamente o inverso. Será que o trabalho das televisões estimulou os
potenciais criminosos a avançar? Será que a dureza das penas apenas provoca
os criminosos? Se a causa dos crimes for o desespero, a perspectiva de um
suicídio provocado e executado pela polícia, pode ser uma perspectiva
aceitável e estimulante. Não terá sido a isso mesmo que se referiu o
assaltante que sobreviveu quando disse ao primo, pelo telemóvel, que
preferia morrer a entregar-se à polícia?
Faz já muitos meses que o
meio político nos informa da certeza de estar em gestão, e a emergir a
qualquer momento, uma crise de violência na sociedade portuguesa, dada a
radical divergência entre as promessas da entrada na CEE e as realidades
actuais, em particular as situações insustentáveis de muitos cidadãos que,
mesmo empregados, não têm condições de manter os mínimos para a sobrevida.
Serão as notícias apenas uma informação da ponta do iceberg?
Na verdade não se sabe nada
de relevante sobre isso. Os jornalistas relatam, a sociedade agita-se para
querer saber o que se passa, as polícias e os estudiosos não fazem a mínima
ideia. Os políticos estrebucham, procurando aproveitar a ocasião para fazer
valer os seus pontos de vista desconsiderados anteriormente – porque a nossa
democracia não funciona bem – e para tentar atingir a popularidade do
governo, para fins eleitorais. O governo manifesta preocupação e as polícias
organizam espectáculos mediáticos. Aqui chegados, é fácil agora deduzir a
resposta à questão deste artigo: a função dos bairros problemáticos é
servirem de figurantes precários de filmes de curta-metragem para televisão.
Sem contrato, sem remuneração, o seu papel é o de serem agredidos e pagarem
as contas das destruições da polícia em casa de cada um.
Lá, onde se sabe se
concentrarem em maior número vítimas de criminosos (como, de resto, é
relatado pelas notícias sempre que bandos rivais se confrontam nas ruas – os
bandos escolhem as mesmas ruas que a polícia: porque será?) o Estado envia a
polícia para os vitimar outra vez. Pode bem dizer-se que já estão
habituados. E o Estado ainda ganha noutro aspecto: escusa de investir na
segurança dessas zonas mais problemáticas, pois as populações, agredidas por
polícias e por ladrões, não têm outra escolha a não ser defender-se a si
mesmas, poupando recursos colectivos.
As mesmas tácticas são
usadas em Israel, quando a cada ataque terrorista, de um lado e de outro, as
autoridades decidem vingar-se na população, com o argumento da existência da
solidariedade familiar ou étnica entre criminosos e populares. Em Portugal,
à escala de um país em segurança na Europa, quando um crime provoca alarme
social, organiza-se uma caçada a um bairro problemático. E, segundo parece,
todos estão de acordo ser isso uma estratégia de segurança a adoptar
sistematicamente, para evitar a queda de ministros (coitados).
Mesmo para quem nada percebe
de segurança, é óbvia a revolta provocada nas populações directamente
atingidas, os traumas pessoais por vezes reportados nos media, a confusão
provocada entre a violência legítima e criminal, a necessidade de
auto-defesa promovida junto das populações, a mistura de sentimentos
legítimos e de intenções ilegítimas, a impossibilidade prática de discernir
a corrupção policial (o abuso do poder, o encobrimento de criminosos
protegidos, a incompetência, os serviços mafiosos) e a defesa das
populações.
Esta política irresponsável
e ignorante exposta aos olhos de todos, aparentemente sem reacção dos nossos
representantes defensores dos direitos humanos ou do simples bom senso, já
está a provocar rupturas sociais no frágil tecido nacional, enquanto a
corrupção permanece fora das cogitações de segurança do Estado.
A segurança no País – tão
importante … para os turistas, segundo o nosso Presidente – é um caso de
estudo. Mesmo sem fazer esse estudo, aposto serem as qualidades/defeitos do
povo português a maior contribuição para tal estado de coisas. A menos que
se considerem serem tais qualidades inatas, próprias de um genes habitante
do interior das nossas fronteiras, a procura da manutenção de tais
qualidades passa por estudos sociais capazes de identificarem e valorizarem
isso mesmo. Quem sabe se as operações de retaliação contra os pobres,
actualmente em uso para fins políticos, não irão destruir a ingénua crendice
nacional na legitimidade dos poderes de Estado?
Insegurança, o que é? Ou as dúvidas trocadas
entre um Chico-esperto e um Otário.
2008-08-28
A onda estival de
criminalidade reportada pelas televisões portuguesas parece confirmar o
aumento da criminalidade violenta registada no primeiro semestre. O que a
onda de criminalidade não revela é o sentimento de insegurança que se vive
em Portugal. Esse apenas será revelado por inquéritos de opinião.
Portugal, apesar do ano de
2008 ser mais violento, continua a ser um dos países mais seguros do mundo.
E, da Europa, um dos países mais ignorantes sobre o que é a criminalidade.
Sem experiência de
criminalidade, o conhecimento sobre tal fenómeno será, necessariamente, mais
reduzido. No caso português esta correlação lógica é aprofundada pela falta
de gosto dos portugueses pelo saber (veja-se os índices escolares e de
literacia), cujas causas são sociais, isto é, decorrem das relações
estabelecidas durante a história do país entre os principais sectores da
sociedade portuguesa, geralmente conhecidos por ricos (ou chicos-espertos) e
pobres (otários, para os amigos).
Quando os jornalistas,
acusados de serem eles, através das notícias que fazem, a inventar a onda de
criminalidade, procuram especialistas para coadjuvarem ou negarem a
coincidência entre as notícias alarmantes (pelo menos para o governo e quem
se sinta potencial vítima) e a realidade efectiva (como se as notícias
fossem irreais), a ignorância fica exposta: Cândido Agra, a maior referência
académica nacional na área, declara ao Diário de Notícias não haver
informação disponível para se pronunciar sobre o que se possa estar a
passar. Parabéns professor: cada um deve assumir as suas responsabilidades.
Será preciso saber-se de
onde vem a onda de criminalidade? Obviamente, dava jeito para se poder
preveni-la, combatê-la e ultrapassá-la. Quanto custa produzir essa
informação? Muitos anos de estudos devidamente organizados e liberdade de
acesso à informação institucional. Os custos financeiros podem ser
insignificantes: os custos políticos e culturais, esses, seriam
incompatíveis com o estado de coisas neste país.
Por exemplo, todos sabemos
como o segredo de justiça é bofe nas mandíbulas dos acusadores, polícias e
procuradores não identificados e, reconhecidamente, não identificáveis.
Imagine-se, então, como seria possível guardar informação sensível, como a
que diz respeito às causas da criminalidade, num Estado como este.
Nesta área, mais do que
noutras, o Estado e os poderes fácticos que dele tomam conta sabem ser
praticamente garantida a directa politização dos problemas: recordemo-nos
dos vários ministros demitidos por não utilizarem as palavras correctas
junto da comunicação social, na sequência de casos mediatizados de alguma
violência durante o Verão: a actriz de telenovelas que foi roubada na
auto-estrada durante a madrugada, o arrastão racista na praia de Carcavelos,
os fogos florestais, agora a onda se criminalidade violenta.
Durante o Verão, na silly
season, é isso que tem acontecido: o longo relaxamento do controlo
político sobre a agenda mediática dá numa sobrecarga repetitiva de notícias
choque, com efeitos encantatórios. A opinião publicada, todavia, não deve
ser confundida com opinião pública, com o sentimento quotidiano dos
portugueses. Aliás, a primeira tende a convergir e a segunda tende a
divergir: pessoalmente, por exemplo, entendo ser preciso combater o crime no
imediato, rapidamente (a um ritmo compatível com a produção mediática) mas,
ao mesmo tempo, respeitar a dignidade das pessoas acusadas pelas polícias e
pela justiça (frequentemente fora da avaliação imediatista feita pelos
jornalistas de serviço).
Pelo facto de me sentir de
esquerda, não posso evitar o sentimento de insegurança e até medo. Agora
duvido que pessoas que se sintam de direita fiquem satisfeitas por ver
mortes em directo na televisão, repetidas à náusea, ou ataques a “bairros
problemáticos” e operações stop nacionais como forma de retaliação, para
dispersar a atenção concentrada dos media sobre os feitos criminosos.
Todos preferiríamos ver as
regras do código da estrada respeitadas sistematicamente – até pelos membros
da oligarquia reinante –, e não só durante as operações stop. Todos
gostaríamos de saber os processos de realojamento reavaliados racionalmente,
em função dos melhores critérios conhecidos para tais operações. Quem
precisa de políticas penais decorrentes de critérios economicistas,
corporativos ou de protecção a criminosos sexuais contra crianças?
Naturalmente, não seremos um
país de que nos possamos orgulhar de um dia para o outro. Não condenarei o
atirador que abateu o meliante nem o seu chefe, mas pedirei uma actuação
sistemática, em defesa dos cidadãos, da Inspecção a todos os casos de
alegada violência policial contra cidadãos, também nesse caso. Elogiarei as
acções policiais impeditivas de consumação de crimes, se não houver
violência desproporcionada. Defenderei a liberdade dos órgãos de comunicação
social para exprimirem os sentimentos que a sua vida profissional os leva a
interrogar, exigindo critérios racionais, preferencialmente aos critérios
partidários, nessa avaliação pública. Esperarei por movimentos sociais
capazes de reclamarem o cumprimento da legalidade a respeito da criação de
condições sociais para a habitação condigna e trabalho suficientemente
remunerado para evitar a pobreza absoluta. Esperarei, ainda, que a luta
contra a corrupção em Portugal seja capaz de melhorar as condições de
transparência e acessibilidade dos processos e informações administrativas e
contratuais, de modo a vir um dia a ser possível ao povo aprender a
valorizar o conhecimento, sem o qual nenhuma política preventiva será
possível de gizar.
Para já. resta-nos a
repressão? Resta-nos hipotecar a (nossa) liberdade por alguma segurança (de
outros)? Parece que sim. Quem reprime os repressores? Quem afasta de cena os
corruptos e os corruptores?
Pela minha parte disponho-me
a investigar as causas da nossa segurança nacional, apesar do nosso desgosto
colectivo sobre o ponto a que chegámos, ao fim de quase 900 anos de
história. Aliás, parece-me ser esse um desígnio nacional altamente
estimulante e instrutivo para um povo dividido entre chicos-espertos e
otários (pessoalmente, sinto-me bem integrado em ambos os grupos ao mesmo
tempo).
O quadro político e institucional do alegado motim de Caxias
2008-08-17
Num mundo onde, segundo um recente director-geral dos serviços prisionais, a
investigação de crimes é virtualmente impossível por causa da lei do
silêncio, que significado terá o arrolamento de prisioneiros na lista de
acusadores dos alegados cabecilhas de um motim?
Treze anos após os acontecimentos, a justiça portuguesa prepara-se para, em
Março de 2009, começar um julgamento de pouco mais de duas dezenas de
arguidos.
Meses volvidos sobre os acontecimentos conhecidos como o motim de Caxias, a
Associação Contra a Exclusão pelo Desenvolvimento (ACED), então
recém-constituída, manifestou publicamente, a pedido de alguns dos arguidos
que nos contactaram, a convicção de haver interesse em “abafar” o caso por
parte dos acusadores [isto é, do Estado], já que não se conheciam
diligências para avançar com o processo, cujos contornos políticos eram
evidentes através do envolvimento directo do governo, através do seu
ministro da justiça, colocado em defeso no Hospital Prisional, perto dos
acontecimentos. Manifestou também a vontade desses arguidos em que a verdade
pudesse vir ao de cima. A verdade era, para eles, a provocação do motim como
forma de aniquilar a luta dos presos que vinha em crescendo desde 1994, e
que iria continuar, de facto, até 2001.
Pessoalmente, tomei contacto mais intenso e directo com as vidas prisionais
em 1996, mas no Parlamento, quando lá estive com um grupo de pessoas
portadoras de um pedido popular de debate parlamentar sobre a questão das
amnistias, recentemente abolidas, digamos assim, do instrumentário político
para gerir as prisões. Desde então, esta é a minha declaração de interesses,
tenho seguido, como activista, as lutas pela justiça e pelo direito nas
vidas prisionais, em particular no que diz respeito às garantias de
liberdade de expressão a que os presos têm formalmente direito. Mais tarde,
mobilizei aquilo que as lutas dos presos me ensinaram da natureza humana
para desenvolver as minhas actividades profissionais, que são ensinar e
investigar a nível superior as potencialidades da sociologia.
Publiquei alguns trabalhos científicos sobre as prisões e em particular
sobre as prisões portuguesas, cf.
http://iscte.pt/~apad/novosite2007/textorelt.html e
http://iscte.pt/~apad/novosite2007/livros.html. Tenho um entendimento de
como a política manipula a vida dos prisioneiros (e dos funcionários das
prisões) para atingir fins que lhe são próprios e que, de resto, torna a
política – surpreendentemente, para quem esteja desprevenido – um tema
recorrente nas conversas prisionais.
Dadas as características institucionais das prisões, nomeadamente a sua
estreita ligação com o exercício do poder de Estado, numa aliança entre o
poder jurídico do lado do decreto de culpabilidade, e o poder executivo do
lado da investigação dos factos, é natural que as tensões políticas se
reflictam nas prisões e os conflitos prisionais, em particular os motins, se
reflictam na vida política. Sobre isso, a propósito do que possa ter
acontecido no alegado motim de Caxias, daremos a nossa contribuição.
Mobilizaremos, para tal, factos publicamente conhecidos, desde logo o
episódio da demissão forçada do Director Geral dos Serviços Prisionais, juiz
Marques Ferreira, em 1995, depois de ter denunciado publicamente, através da
televisão, estarem as prisões portuguesas reféns de “máfias” que as
controlavam. Ameaçado de morte, segundo alegou também na televisão, ao
contrário de resistir em nome da autoridade do Estado, como começou por
anunciar, demitiu-se (ou foi demitido), passando o lugar a ser ocupado pelo
seu vice, Dr. Celso Manata, que jamais se voltou a referir ao assunto. Pelo
contrário, inaugurou uma campanha de boa imagem das prisões portuguesas,
através da publicação de “Prisões em Revista” completamente irrealista e
que, se não esteve na base, ajudou ao confronto entre o Ministro da Justiça,
Dr. Vera Jardim, e o Provedor de Justiça, Dr. Meneres Pimentel, aquando da
publicação do primeiro relatório de 1996 da Provedoria de Justiça sobre o
estado calamitoso das prisões em Portugal. Em 2004, Freitas do Amaral, após
todos esses anos de investimentos nas prisões, anunciava ter um plano a 12
anos com vista a tornar as prisões portugueses naquilo que se pudesse
considerar “a média europeia”.
Primeira característica a registar da política nacional a respeito das
prisões: abandono das mesmas à sua sorte, sem nenhum orçamento de
investimentos, desde, pelo menos, a revolução democrática, em 1974, mas
agora, desde os anos 80, no quadro de fortes crescimentos da população
prisional, com sobrelotação do sistema, tornando inexequível – por exemplo –
a determinação legal do cumprimento de pena em cela individual.
Para fazer face a esta situação, vários governos decidiram medidas especiais
de amnistia com o objectivo de aliviar as cadeias. Tal política tinha um
sucesso relativo, visto que em poucos meses os níveis de ocupação anteriores
eram atingidos e até ultrapassados, aumentando os níveis de reincidência
criminal e pressionando a nova acção de amnistia, e assim sucessivamente.
Porém, os factos políticos mais relevantes deverão ter sido os relacionados
com a luta dos presos no processo das FP-25A, que mereceram a certa altura
uma amnistia especial, por razões políticas. Isso causou alguma divisão no
Partido Socialista e na sociedade portuguesa, e também nas prisões, onde
alguns discordaram dessa concessão. Eleito Presidente da República, Jorge
Sampaio decidiu terminar com a política prisional de amnistias sucessivas e,
para dar o exemplo, não concedeu a tradicional amnistia sempre que um
Presidente da República era eleito. Na Assembleia da República, o grupo de
peticionários, a que me juntei na ocasião acima referida, era recebido por
vários deputados, tendo um deles explicado que o ambiente político não era
favorável à aprovação de uma tal petição. A Assembleia não desejou fazer
oposição ao recém eleito Presidente.
Naturalmente, entrou-se numa fase de adaptação do sistema prisional à nova
situação, tendo 1997 sido o pico mais alto não apenas no números de presos
mas também no número de mortes de prisioneiros em Portugal. Como se percebe,
a política tem um impacto directo nas vidas prisionais. Mas as vidas
prisionais ameaçam irromper na vida política a qualquer momento.
Face à fragilidade da situação prisional, em que: a) desde 1994, por
iniciativa dos activistas e militantes políticos presos, se verificaram
tentativas de organização de lutas de prisioneiros em diversas cadeias,
principalmente naquelas onde estavam presos com penas mais longas; b) à
gestão local e sem regulação de cada estabelecimento prisional onde os
poderes fácticos eram então, como provavelmente ainda hoje, mais importantes
do que a cadeia de comando; c) ao fim das amnistias e à sobrelotação, a ser
gerida pelo governo, alguma coisa tinha que mudar.
Disso mesmo se aperceberam os media e os jornalistas. Cumprindo a sua
função em democracia, procuraram informar-se sobre o que se estava a passar
nas prisões e sobre como o governo entendia dever transformar as cadeias,
face às circunstâncias.
O que os media iriam encontrar, caso se interessassem pelo assunto,
seria o mesmo ou pior do que aquilo que o Provedor encontrou. E, seja por
necessidade de exercer os seus direitos de livre expressão, muito limitados
para quem esteja preso, seja por discordarem das políticas seguidas (a
amnistia às FP-25A e/ou a abolição das amnistias regulares), seja como forma
de pressão na expectativa de aliviar a violência institucional endémica,
muitos presos estavam interessados em fazer chegar mensagens às comunicação
social. Sei disso porque ainda hoje esse é o principal objectivo da ACED.
Se os magistrados judiciais temem o contacto e a intromissão dos media
nas suas actividades, imagine-se o que acontece com as prisões.
Não havendo condições de mudar, a curto prazo, a forma de administrar as
prisões, acossada a sua direcção pessoalmente por “máfias que dominavam o
sistema prisional”, tendo de acatar a decisão presidencial que deixaria sem
alívio a pressão demográfica dentro das prisões, estando a aumentar o número
de reclusos doentes, nomeadamente com doenças infecto-contagiosas, sem
recursos técnicos, seja a nível administrativo, de saúde ou sequer
dietéticos, que fazer?
Sem dúvida, afastar os media do caso e restringir ao máximo a
liberdade de expressão e de comunicação dos reclusos. O contrário disso,
procurar exprimir publicamente sentimentos ou opiniões sobre o que se
passava nas prisões adquiriu, naquela circunstância em particular, um cariz
político difícil de aceitar para os que entendem que a ralé da sociedade
pode ser simplesmente ignorada. De facto não pode (e não deve!).
Estando alguns presos no EP de Caxias empenhados em contactar com
jornalistas para fazer declarações políticas sobre a situação e reclamar
melhores condições de vida – o que era essencial, especialmente na altura,
quando a degradação das vidas prisionais de aprofundou em todos os
indicadores conhecidos – essa terá sido, também, a oportunidade dos serviços
prisionais matarem dois coelhos de uma cajadada: acabar com aquela tentativa
concreta de exercício da liberdade de expressão e, ao mesmo tempo,
culpabilizar os jornalistas e respectivos órgãos de comunicação social por
estarem a colaborar com inimigos do regime democrático – os presos,
calcule-se.
Se o alegado motim de Caxias não tiver sido um motim, poderia ter sido
inventado, bastando para tal a entrada dos polícias anti-motim. A violência
instalada, pelas represálias impostas a muitos presos e pelas notícias que
sobre o motim se divulgaram, desta vez apenas do lado das autoridades, foram
uma ajuda preciosa para distrair e afastar os jornalistas da sua missão,
através da produção de um monopólio de facto de fonte de informação.
Este efeito de monopólio pode passar desapercebido ao público em geral. Mas
é um efeito muito conhecido das forças da ordem. Por experiência milenar
sabem que o uso da violência estigmatiza o lado perdedor e descredibiliza
toda a informação que aí possa ter origem. Ao invés, do lado dos vencedores
esperam-se explicações susceptíveis de legitimar o que se passou.
O Portugal
fascista
"Gonçalo Amaral
desfilou pela RTP reclamando-se santo. Esqueceu-se de mencionar que todos os
relatórios médicos comprovam que Leonor Cipriano foi efectivamente torturada
pela PJ. E que o pseudo-santo não só não impediu, como também não denunciou
as torturas de que Leonor foi vítima, como ainda por cima mentiu no
relatório ao MP, assinando um testemunho dizendo que assistiu Leonor a cair
pelas escadas. E o gajo desfila impune, com a cumplicidade do Estado
fascista, e da RTP do Estado fascista. Veja-se a diferença entre o furioso
ataque jornalístico de que Marinho Pinto foi vítima no mesmo programa e pela
mesma jornalista, e a complacente entrevista feita ao Gonçalo, o torturador.
"
Concluia-se que
o fascismo ainda mora entre nós, nas nossas mentes e também nas nossas
instituições democratizadas. De facto, não é possível evitar tais
pensamentos. Como é possível tolerá-los praticamente sem reacção?
A venalidade e a justiça em Portugal
2008-07-16
Há pessoas admiráveis. Uma delas é, de momento, o Sr. Bastonário da Ordem
dos Advogados. Um advogado à antiga, que diz o que pensa, sem temor.
Dos advogados que dão o corpo ao manifesto pelos seus constituintes ouvimos
falar no antigo regime, em particular nos Tribunais Plenários. Gente humilde
mas firme, culta mas solidária, informada mas sem preconceitos. Desses
advogados temos apenas a memória. Tínhamos, até que Marinho Pinto apareceu a
reclamar o património da reivindicação de justiça para os casos concretos e
para o País.
É preciso entender que foram os advogados que deram voz à voz que já todos
conhecíamos, não apenas das colunas dos jornais mas também das posições
enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados.
Os advogados humildes querem ser firmes – que bela notícia. Informados,
querem afastar os preconceitos – que bom. Mas como acontece que tal cultura
ainda não é solidária, ainda não é sensível no dia a dia?
Uma das explicações consta da recentíssima carta do Bastonário aos seus
colegas – peçam, como eu fiz, a um advogado que lhes envie por email
a carta e leiam-na: ela diz-nos respeito a todos. Diz o Bastonário que desde
a entrada de Portugal na CEE a Ordem se tornou um centro privado de formação
de advogados a granel, para dar honorários aos amigos dos tachos que se
sentaram à volta da mesa, e que agora reclamam “Aqui D´El Rei!” que nos
estão a tirar privilégios, nomeadamente de tomarem lugar no Conselho Geral
onde se discutem as políticas da Ordem.
Fica claro como a Ordem se tornou num mini politécnico com direitos sobre os
candidatos a advogados, sem controlo de nenhuma tutela, e com resultados
catastróficos para a justiça em Portugal. Quem diga que o Bastonário só
ataca Juízes, engana-se: o Bastonário quer, sobretudo, atacar advogados
tachistas e venais.
Assim outros dirigentes de outros sectores de actividade, em Portugal,
tivessem a sabedoria e a firmeza para purgar dos lugares onde tenham
responsabilidades as perversidades que todos sabemos terem sido o resultado
de apropriações indevidas de recursos injectados no país via fundos
comunitários. Depois desta carta aos advogados, a Ordem dos Advogados só
pode ficar melhor. Podem estar, disso precisa o país, reunidas as condições
para a emergência de novos protagonistas forenses, lá onde a venalidade
possa ser substituída pela moralidade.
Humanizar as prisões?
2008-06-27
O ministro da justiça anunciou (mais uma vez) que também as prisões vão ser
alvo de modernização. As prisões de que nos fala são as que desde 1996 ainda
não conseguiram acabar com os baldes “higiénicos” nas celas, cuja abolição
estava prevista para o fim do ano passado e agora está prevista para o fim
do ano … 12 anos depois do seu primeiro anúncio.
Com um novo modelo de negócio, vender as prisões situadas em territórios
urbanizáveis e fazer (sempre) cimento em larga escala em terrenos baratos, a
ineficiência deverá não ser tão implacável. Daí o empenho do Sr. Ministro em
aparecer em público a falar de prisões, quando normalmente o que manda dizer
é que todas as queixas e denuncias são investigadas – sem se atrever a dizer
que o código do segredo impede, sistematicamente, burocraticamente,
amedrontadamente, qualquer conclusão útil para evitar o que recorrentemente
ocorre nas prisões portuguesas. Neste caso (huf!) o código do segredo ainda
não estará instalado: as prisões vão ser construídas de raiz e, finalmente,
de alguma coisa é possível falar.
Mas falar de humanização não é hipócrita? Quando o Estado – os diversos
governos solidariamente desde 2001 – adoptou uma política de segurança (tão
eficientes quanto a abolição dos dejectos em baldes) para evitar crimes
dentro das cadeias, lançando mão de processos ilegais, como são as Alas de
Segurança e os regimes conhecidos como Guantanamo português em Monsanto
(onde há guardas especializados em meterem as mãos nos corpos dos presos:
com que cheiro chegarão a casa?), porque lhe terá dado agora para as
humanidades? Pior do que isso: como se pode falar de humanização quando o
que de facto está planeado é o inverso: são economias de escala,
concentração de altas quantidades de presos, reduzindo o número de prisões,
em situações … concentracionárias.
A experiência de tais situações no passado ficou registada no terror que
incute a simples menção da palavra.
Não seria preferível que o Ministério da Justiça
pugnasse por fazer cumprir a lei penitenciária, em vez da lei do cimento?
O sonho da inadaptação
2008-05-05
Não costumo tomar atenção ao que
me lembro dos sonhos que tive. E sempre me fez confusão aqueles que dão
importância a isso, sabendo que sonhamos muito mais do que somos capaz de
nos lembrar e lembramo-nos de imagens diferentes daquelas que sonhamos.
Seria como pedir uma opinião sobre um filme a porteiro de cinema de um
complexo com muitas salas a servir.
Não foi o caso, desta vez. O
sonho, ele próprio, se me impôs. Sonhava que estava num grande escritório a
que retornara recentemente (poderia ser, portanto, qualquer dos empregos que
tive até hoje, excepto a universidade). Era segunda-feira, como é de facto
hoje, e tinha (outra vez) de me meter num buraco em que os ombros só cabiam
se os encolhesse para ter acesso ao meu posto de trabalho (ou de
colaboração, como hoje mais se usa dizer).
Decidi tomar uma atitude e dizer
aos colegas em volta não estar disposto a passar a vida a meter-me num
buraco. Um deles, que segui, logo se dispôs a ir procurar o chefe para lhe
pôr o problema. Abriu uma porta e dirigiu-se a um jardim suspenso, melhor
dito: uma horta urbana no topo do edifício, onde um camponês tomava conta
dos seus rebentos vegetais. Percebi que não deveria ficar a observar e
voltei para ao pé do buraco e aguardei. Pouco tempo depois, principalmente
tendo em conta que o camponês que me apareceu estava impecavelmente vestido
com um fato completo, um homem muito pequeno aproximou-se de mim.
Tão pequeno era que me pus de
cócoras para falar com ele. Imperturbável, com o braço direito sobre um
corrimão, como fazem alguns automobilistas na sua janela, mas, neste caso,
do lado do pendura, dirigiu-se-me a palavra numa frase lapidar: “Estive a
meditar no seu caso e verifico que levanta muitos problemas. Devo concluir
pela sua inadaptação ao lugar?”.
Por acaso não pensei no novo
código de trabalho – só agora, que estou a escrever, isso me passou pela
cabeça. Pensei em mostrar-lhe o buraco para ele ver com os próprios olhos –
como se já não o tivesse visto. Aí o sonho terminou abruptamente como quando
sonhamos que vamos morrer. Foi aí que percebi o sonho: a cantora pergunta
paradoxalmente “what´s love got to do with it?”. O meu sonho perguntava: o
que é que os factos e a razão têm a ver com isso? Apenas a humilhação conta.
No dia anterior tinha escrito
sobre a indiferença dos media portugueses às denúncias de mau
funcionamento da justiça, incluindo alegações de tortura judicialmente
acolhidas tratadas como indiferente à persecução de processos judiciais com
provas obtidas nessas condições. Tinha escrito sobre a cumplicidade dos
media nesse processo, vendendo personagens criminosos que encantam o
público e tornam os media interessados nessas condenações, incapazes
de voltarem a trás e pôr em causa as suas próprias convicções, feitas em
torno da venda de histórias afinal ficcionadas, com a colaboração da justiça
instituída.
Dias antes tinha preparado uma
irónica tomada de posição no meu departamento contra o discurso único, a
irresponsabilidade generalizada, as estratégias defensivas quando estamos
encostados à nossa área a jogar uma final em que estamos a perder (mas
alguns contam ganhar na secretaria e outros preferem não exagerar no
desgaste físico).
Lembrei-me também do tempo que
em finalmente pude jogar nos seniores, meus heróis, e me explicaram que não
podia correr tão depressa porque assim me isolava no meio dos adversários.
Acordei a pensar no significado
do sonho e a lembrar-me dos estudos sobre inadaptação nas prisões.
Lembrei-me ainda da denúncia que fiz, faz anos, de um caso de censura
académica por razões directamente políticas partidárias – sobre um trabalho
meu – a que ninguém com responsabilidades institucionais, por razões
diversas, entendeu dar importância. Pus-me a pensar se não terei sido
cúmplice disso mesmo ao evitar começar aos gritos ou passar a denúncia a
outros níveis de tutela?
Para mim, na altura, foi uma
revelação: não tinha ideia de que isso pudesse funcionar assim. Esfriei as
relações pessoais com alguns colegas (mas curiosamente não com todos os
directamente envolvidos no acto de censura, que foram muitos) e passei a
estar avisado. Foi tudo o que fiz. Tinha consciência, como tenho hoje, do
destino que a minha avó me avisava estar feito para quem se mete na
“política”, para quem questione as práticas instituídas e, por via disso, os
poderes mandantes dos buracos e de quem neles aceite trabalhar, ameaçados de
inaptidão se não aceitarem a situação.
É uma versão dos tormentos
kafkianos das condenações à loucura dos dissidentes soviéticos. Condenações
enraizadas – como é hoje evidente – no espírito do povo, nas espinhas
dobradas, uma a uma, perante a indiferença e o medo generalizados, a pedir
algozes na direcção de tais processos, em nome da perenidade das
instituições e da ignorância dos princípios naturais de sã convivência e
solidariedade. Para inglês ver e português torcer.
Contra o Acordo Ortográfico
2008-05-05
Pois é... Singular que a defesa pública da Língua Portuguesa
se faça sob a promoção de um apelido Romeno. Não haveria sequer um Costa? Um
Silva? Um Dias? É a doce Roménia que sentirá a falta desta Língua?... Mas
porquê? Para que serve hoje tal Língua? (É a Língua de Sócrates e Cavaco e
em todo o espaço de uns teóricos duzentos milhões só houve um Nobel da
Literatura e mesmo esse não consegue viver cá e escreve habitualmente em
Castelhano no El País (porque também não há propriamente jornais).
Defesa da Língua... (Por nostalgia?)... A minha
Língua materna é aquela em que a liberdade de falar, criar e discutir me
sejam dadas. E todas ma oferecem, excepto esta. Quatrocentos
processos judiciais a alvejar a liberdade de palavra no foro (!) e milhares
de processos disciplinares com o mesmo escopo e quantas dezenas ou centenas
de processos a alvejar a liberdadede imprensa?
Morra a Língua imprestável! Arranquem-lhe os acentos,
façam-na aqui tão grotesca quanto o são os poderes decisórios do país da
Casa Pia. Alarmam-se uns porque a população vai deixar de saber escrever...
Mas a população não escreve. Aliás a população nem sequer lê. Nem parecendo
que nisto, alguma vez, os poderes à escala do sítio tenham visto alguma
coisa de inquietante.
Porque não haveria a terra dos cágados de ser a terra dos
cagados? (Abaixo da alma de homens nada convém à Dignidade Humana, tanto dá,
portanto, que sejam cágados como cagados)... Há aqui alguma distinção
relevante a fazer entre coisa frigida e coisa frígida?
Aos trinta por cento de europeus neste território que querem
(comprovadamente) ser espanhóis, a Hispânia oferece-lhes o Castelhano; para
os hesitantes, há a variante Galaica e para os homens com alma de cágado ou
de cagado há a esperança salvadora da Sharia e a Nobreza do Àrabe. São
Línguas com pujante Literatura, vivas porque Línguas onde se cria. Quanto à
Língua de Portugal já nem vale o argumento geo-político: Moçambique integra
o espaço político anglófono, a Guiné integra a comunidade dos países
francófonos (e têm toda a razão, estes). Falhando hoje em tudo na asquerosa
vida, a Língua de Portugal deveria ao menos acertar no momento da sua morte.
O Brasil impõe?... Porque não haveria de impor? A Língua é do Brasil. Não é
dele a imprensa relevante da Língua? Não é dele a Liberdade que na Língua
cabe?
Quanto ao gesto da Senhora Buescu ele parece-me fuoarte
bine. São sempre belos os gestos de defesa das causas perdidas.
Respeito-a a ela. Não à causa. O linguarejar autóctone merece bem a morte.
Morra a língua das minutas dos eunucos do palácio. Língua dos bordeis de
órfãos. Língua da padralhada dos pedómanos. Língua de gente que quer fugir e
realmente foge (com excelentes motivos)... Como se pode fugir com tal
Língua atrás? Arranquem-lhe os acentos, matem-lhe o nervo das conjugações
reflexas, anulem-lhe os pilares das consoantes surdas. Língua de gente
achatada, deve ser achatada. E quem nisso não couber, já aqui não cabia.
Rebente tal Língua: Pum!
por José Preto
Parabéns Hélder Costa.
4 de Maio
de 2008
Na noite de
25 de Abril de 2008 a televisão pública passou um programa de variedades
organizado no dia anterior (não fosse haver algum incidente censurável) pela
associação 25 de Abril. Gostei de ver a diversidade e quantidade de
expressões culturais persistentes em Portugal no campo da música, apesar da
repressão a que têm estado sujeitos. Mas gostei especialmente dos bonecos
que deram vida aos curtos textos de Hélder Costa. O arrepio da assistência
ao ver-se retratada até se sentiu cá em casa, a kilómetros de distância e no
dia seguinte. Foi um toque no nervo.
Numa conferência de imprensa organizada pela ACED, uma
semana depois das comemorações do 34º aniversário do 25 de Abril e no dia da
(falta de) liberdade de imprensa, quatro juristas e um criminólogo
referiram-se, de modos diversos, a propósito de casos mediáticos de
desaparecimentos de crianças, ao modo conspirativo como se fazem as
investigações criminais e a justiça em Portugal. Ao ponto de torturas
poderem ser admitidas em processos de condenação e da liberdade de expressão
em geral, e dos advogados em especial, estar condicionada de modo antagónico
ao que é determinado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Estiveram presentes as televisões privadas e outros órgãos
de comunicação social. Não viram na ênfase na discussão dos princípios
fundamentais da regulação de um estado de direito nada de relevante para ser
noticiado. Será por não terem percebido o que foi dito? O conteúdo foi
previamente anunciado – ainda está no site de anúncio
http://iscte.pt/~apad/ACED_juristas/maddie.html: não foram ao engano! Ou
será por estarem condicionados na sua liberdade? Já será proibido falar
publicamente de tortura em Portugal?
No início do Verão de 2007 a ACED recebeu anúncio de
torturas na cadeia de Monsanto, recém inaugurada. Estranhou-se o silêncio
dos media, que poderiam servir - precisamente – para evitar os abuso de
poder. Mas o silêncio persistiu mesmo quando familiares de presos se
dispuseram a dar a cara às câmaras na tentativa de aliviar a situação dos
seus parentes. Mesmo quando a Procuradoria Geral da República entendeu por
bem abrir um inquérito sobre as alegações de tortura em Portugal nenhum meio
de comunicação fez disso uma notícia.
Porquê? O que se passa em Portugal?
Será como o Hélder Costa escreveu para as comemorações
televisivas da revolução: os antigos fascistas andam agora todos satisfeitos
nas suas modernizadas roupagens? E não será que os antigos fascistas somos
nós todos juntos? E isso não mete nojo? E isso não é perigoso?
O Horror ao Direito
2008-04-21
Portugal não reúne a condições
institucionais mínimas para ser considerado um estado de direito. Essa a
declaração subscrita por algumas figuras públicas, sem reacção ou alarme
social.
Todos concordamos que o estado
da justiça portuguesa é um dos principais obstáculos à modernização do país.
Pessoalmente, o que mais me preocupa é o facto de que estas frases terem
consequências muito directas na vida de muitas pessoas. Quantas das que
integram os 40% de portugueses pobres não são injustiçadas? Quantas doenças
e óbitos não decorrem da falta de recursos de justiça? Quanto do medo e da
inacção cívica que habita Portugal não são estimulados pela ausência de
tutela do direito?
O que me mobiliza aqui não é o
que mais me preocupa. É, antes, a criação de uma situação de impossibilidade
de se cumprir o Direito com que fui atingido pessoalmente e que passo a
analisar, brevemente.
Em 2004 ficou claro, após 7 anos
de experiência de actividade associativa de comunicação pública de situações
atentatórias dos direitos de reclusos, haver uma forte probabilidade de
existir impunidade ilegítima mas institucionalmente concertada em casos de
crimes graves, como homicídios, nas prisões portuguesas.
Dos fundamentos dessa conclusão
quis-se dar conhecimento aos órgãos de soberania, à Procuradoria Geral da
República, órgão responsável pela averiguação deste tipo de crimes, e aos
portugueses, através da comunicação social, conforme prática estabelecida
pela associação na sua actividade cívica.
A esse respeito representantes
associativos foram recebidos na Assembleia da República e na
Procuradoria-geral da República, que registaram, de modos diversos, as
nossas comunicações.
Das declarações à comunicação
social, o sindicato dos guardas prisionais tirou elementos de acusação
contra mim, acompanhado mais tarde pelo Ministério Público. Acusam ter
havido intenção de criar um clima entre muros propício a aumentar os riscos
de exercício da função profissional e de ofender a instituição, através do
corpo de guardas. Ver tudo AQUI
A juíza de instrução entendeu
ser essa uma questão válida para ser apreciada em tribunal.
O problema é saber se assim é. E
se assim for, como pode acontecer estar o juiz de tal tribunal condicionado
na sua decisão pela circunstância de, ao condenar, poder estar a entregar à
pena de morte extra-judicial o condenado precisamente por ter denunciado a
possibilidade de ser essa a situação nas prisões portuguesas.
Imagine-se, para efeito da
demonstração, haver matéria de justificação para condenação do arguido.
Poderá o tribunal, caberá ao tribunal, garantir que, na prisão, a morte ou a
doença grave não irá atingir o condenado – precisamente por ter denunciado
isso mesmo? Mais especificamente, poderá o tribunal assegurar não existir
nenhuma senha persecutória contra o acusado dentro das prisões?
Vários casos históricos mostram
não apenas a incapacidade como a irresponsabilidade do Estado para proteger
quem, sob a sua tutela de segurança, estima poder estar a ser vítima de
perseguição e de ameaças de morte (exemplos de memória como os de Dionísio
Alberto Oriola, assassinado em 1998, Augusto Morgado Fernandes assassinado
em 2001, Marco Santos assassinado em 2002, Hélder Oliveira, violado e
falecido em consequência dos maus tratos na prisão em 2004).
No caso vertente, a ironia da
acusação é a possibilidade de encobrir a mesma intenção que serve de
acusação. A alguém lembraria serem as denúncias de crimes ocorridos em
prisões uma forma de induzir violência espontânea contra os guardas
prisionais, a não ser alguém que tenha experiência do valor e da eficácia de
tais processos indutivos? Tais acusadores serão eles – sindicato dos guardas
em conluio com a instituição prisional, de que se reclama representante –
idóneos para acolher o arguido condenado nos seus recintos, sem gerar tal
situação a tentação de indução de violência contra o denunciante, ora
reduzido a criminoso?
Dito de forma mais chã: que
tratamento penitenciário se pode esperar ser oferecido a um condenado por
organizar a luta social contra todos e cada um dos guardas prisionais? Na
prática, a acusação o que diz ao tribunal é: entregue, respeitosamente, o
pecador ao braço secular, eles próprios. Gente séria, direito garantido. Ou
como diria um antigo dirigente sindical de má memória, não são meninos de
coro. Mas precisam de autorização para actuarem.
Ora, tal autorização foi-lhes
dada pelo ministério público e pelo tribunal de instrução. No debate
instrutório, o próprio advogado de acusação sentiu necessidade de explicar
que não pediria prisão efectiva do arguido (de outro modo, é evidente,
fragilizaria mais a moralidade, já de si esguia, do processo). Desejaria
apenas um correctivo simbólico, na esperança de os tribunais poderem ter
algum ascendente moral sobre a consciência da pessoa acusada.
Esperança vã, claro, já que nem
ele próprio oferece ao tribunal outra coisa que não seja a convicção da
compreensão do conluio sistematicamente observável a olho nu pelos
portugueses entre a administração – e em especial os serviços de segurança –
e os diversos órgãos de soberania, incluindo os tribunais, mesmo à margem da
lei. Mera presunção de radical impunidade dos servidores do Estado policial,
porque servidor do Estado também é o arguido, mas de outra parte do Estado.
Desejaria ter o apoio
equivalente dos órgãos representativos da minha corporação na defesa do
Direito e da Liberdade (nomeadamente da liberdade de expressão). Mas esse
não é o caso, nem a mim me ocorreria comprometer a minha corporação (ainda
que por óptimos motivos) na minha defesa dum processo acusatório (judicial
ou não) contra mim próprio.
Agora, também não posso oferecer
a nenhum juiz qualquer credibilidade ou autoridade quando aceita julgar a
possibilidade de me entregar, liminar e literalmente, nas mãos
ensanguentadas de instituições cúmplices e encobridoras de situações tidas
por inaceitáveis pelo próprio Estado. Tais declarações foram proferidas por
um antigo director geral dos serviços prisionais, sucessor de um que foi
assassinado e ele próprio ameaçado de morte por ter denunciado as máfias que
dominavam (e deixaram de dominar?) as prisões. Foram proferidas em relatório
pela Provedoria de Justiça. Foram escritas num relatório de Reforma
Prisional dirigido por Freitas do Amaral. Faz anos, e ainda por muitos anos
assim será, as prisões portuguesas são uma vergonha para o país.
A questão é: como será possível
reformá-las num país avesso ao direito?
DECLARAÇÃO DE REACÇÃO DO MEU DEFENSOR:
BEM HAJA!
Resposta a um comentário amigo:
Quanto a poder estar a assumir
previamente a posição de condenado, o que penso é que arrisco "apenas" uma
multa, embora a pena admissível seja prisão efectiva. E, naturalmente, pode
o caso acabar encerrado sem condenação. O que me permitirá tomar a ofensiva,
a partir daí (o que de resto faço desde já).
A questão, como a coloca o meu
defensor, e como eu a retomo à minha maneira, é a de que o sentido do
próprio processo - que já passou por várias instâncias jurisdicionais,
incluindo juízes de direito - é contra Direito.
E até comprometedor do bom senso de
justiça. Não podem as instituições judiciais permitir pressões extra
judiciais nos tribunais, como acaba por ser o caso. Não podem as decisões
judiciais integrar tais pressões nas suas próprias decisões, como é o caso,
por reflexos corporativos, como se costuma dizer.
O Direito já falhou,
independentemente dos resultados do processo. Mais do que a minha defesa
pessoal, o que está em causa é a necessidade de construir Direito em
Portugal.
Estratégias e estratagemas
2008-03-17
Ao revelarmos a aceleração das
mudanças sociais nas sociedades actuais, como podemos deixar de atender às
aceleradas transformações da própria sociologia?
Mergulhado num processo de
aceleração da mudança imposto por via político-administrativa, que escolheu
a redução da democracia como estratégia para obrigar as instituições a
submeterem-se a lideranças mais voluntaristas, o departamento não pode
deixar de sentir o balanço. É, por isso, salutar procurar organizar uma
estratégia legitimada, tão adequada aos tempos de incerteza quanto possível.
Como o deveremos fazer, no imediato? a) cavalgando as ideias da reforma,
antecipando já o futuro de elitização administrada da condução dos destinos
do departamento? b) com respeito formal e substantivo do modus operandi
legítimo neste momento, independentemente do venha a ficar decidido no fim
do processo?
Não subscrevo a ideia
triunfalista dos que já se imaginam num tempo em que ditarão pessoalmente a
lei, sem prestação de contas. Dos que entendem estar a chegar o tempo do
leite e do mel (para as suas próprias intenções e actividades), bastando
para tal atravessar o purgatório dos restos de democracia ineficiente que
ainda existe. Fazer estratégias não é desenhar uma ponte entre este e o
próximo anos lectivos. Fazer prospectiva não é viver de imediato o sonho de
futuro. Acompanhar as transformações sociais aceleradas não é só (nem
principalmente) projectar no futuro próximo as tendências verificadas nas
estatísticas sobre o passado.
A nossa vontade pessoal (ou
colectiva, se a soubermos forjar) terá maior probabilidade de influenciar o
futuro quanto mais realista for, quanto menos saltarmos etapas para um
futuro incerto, quanto mais resistirmos à vertigem da superstição, mesmo se
esta é alegadamente fundada cientificamente. Quem pense ser capaz de
estabilizar a sociologia o suficiente para lhe fixar uma definição válida
para todos e para os próximos anos, evidentemente só pode suportar-se em
crenças extra-científicas. Quem pense ser detentor de alguma verdade, em vez
de se considerar pesquisador da verdade, engana-se. Donde não virá mal ao
mundo, desde que não nos enganemos todos juntos, a reboque de tais
megalomanias. O futuro é para a frente, não para trás.
A liberdade individual, pelo
menos o respeito por ela e pelo seu exercício por parte de quem esteja
disposto a usá-la, em cada momento, não é apenas um imperativo moral dos
cientistas modernos: é também uma condição de resistência e persistência das
actividades científicas e da ciência, cuja produtividade é muito aleatória,
mas será nula na ausência de liberdade. Cientistas que não prezam a
liberdade podem ser repugnantes mas não são problema maior. Instituições que
pretendam ser científicas sem assegurarem a liberdade dos cientistas, não
existem. Instituições científicas insensíveis à defesa da liberdade
individual dos seus membros são suicidárias.
Os sucessos do passado não
asseguram o futuro. Segundo as intenções da reforma em curso, não deveriam
sequer assegurar o futuro imediato – o que parece um pouco radical para o
ritmo de planeamento possível em actividades científicas. A excelência exige
toda a atenção e, segundo parece, depende mais do respeito dos orçamentos e
das estatísticas do que da criatividade e imaginação científicas.
Como o futuro é incerto, dentro
e fora do departamento, dentro e fora do ISCTE, a que poderemos nós
agarrar-nos para organizar um plano estratégico? A extraordinária resposta
dos partidários internos da reforma político-administrativa em curso é “o
emprego”! Os partidários da política governamental para a instabilidade no
emprego – para alegadamente promover o mérito – são partidários de políticas
defensivas do emprego no departamento. Como compreender ou explicar isto?
Como explicar a proposta de um semi-plano estratégico administrativamente
urgente em Novembro que persiste por aprovar em Abril? Como explicar as
profundas alterações sofridas pelo documento entre Novembro e Dezembro –
primeiro excludente de parte importante dos maiores e menores projectos já
tradicionalmente instalados no departamento e, depois, aberto a tais
projectos, passando, por exemplo, de um programa doutoral para vários?
Quem quiser que responda. Pela
minha parte quero afirmar continuar disponível para discutir com os colegas
interessados estratégias de futuro para o departamento e em particular para
a sociologia – discussão essa para a qual preciso de companhia, sem o que
será sempre um monólogo. Prefiro pensar uma estratégia proactiva de
ampliação do espectro de actividades (e de saídas profissionais potenciais)
da sociologia, a longo prazo, capaz de envolver e articular interesses
variados, em função de um processo voluntário de auto-mobilização assistida
pelos órgãos do departamento, incluindo colegas do departamento e colegas
externos ao departamento, incluindo docentes-investigadores de diversas
áreas do saber, dentro e fora das ciências sociais.
À ideia de tomar conta de um
mercado de assistentes sociais já existente e em crescimento contraponho a
conquista de espaços de manobra nos vastos e importantes sectores da saúde e
da justiça – para além dos sectores de actividade já assediados pela
sociologia, como sejam, por exemplo, os media e as comunicações, a
organização do território e o planeamento, as políticas sociais e a acção
social – sectores esses em profunda transformação, em crise de crescimento,
em situação de urgente reorganização e reconceptualização, com peso político
e social incomparável relativamente à proposta defensiva contraposta.
Não se trata de controlar as
iniciativas dos colegas, como dizem as propostas avançadas pela direcção do
departamento, mas de proporcionar amplas perspectivas de desenvolvimento,
cooperação e mobilização para cursos, investigações e debates científicos a
coordenar e promover pelo departamento nos próximos anos, até que se esgotem
as potencialidades da estratégia acordada, na mira de lançar a sociologia
para uma nova etapa histórica, a realizar na primeira metade do século XXI,
de maior centralidade e intervenção social e profissional.
O mundo está em acelerada
transformação. Mas há quem insista em fazer querer que sabe o que é isso da
sociologia, a verdadeira, a justa, a progressista. Imagina-a, eventualmente,
como uma máquina fotográfica (analógica?) a tirar fotografias a um ecrã de
uma sala de cinema, para, em laboratório, ampliar ao máximo e, assim,
conseguir descortinar as rugas do tecido por detrás das imagens e anunciar,
finalmente, a realidade social ao mundo de ignaros. Por mim prefiro uma
sociologia capaz de navegar ao sabor das marés mas com um destino bem
identificado e concertado de pesquisa sobre o que seja central nas
sociedades actuais.
Alternativas de vida
2008-03-09
O Sócrates não vai demitir a ministra? Pedida a demissão na rua, o
primeiro-ministro, segundo alguns, não o vai fazer. Porque é teimoso, porque
não se pode deixar condicionar pela rua, porque não pode abandonar o
reformismo. Porque não deve dar mais força aos partidos que gostam de
cavalgar as lutas populares.
Isso é irrelevante para o destino do país, na minha modesta opinião. O que
tenho curiosidade em saber é se os movimentos de professores, fora dos
partidos e dos sindicatos, vão conseguir afirmar-se e desenvolver-se. É essa
possibilidade a boa notícia destes últimos dias.
É claro que o mundo político vai andar agitado pelas considerações
político-sindicais de adaptação às novas circunstâncias: o povo, através dos
professores, deu sinais de não tolerar bem os ataques à democracia
perpetrados por este governo, na prática e nas palavras. A essência do Povo
mudou muito nestas últimas décadas. Além dos trabalhadores dos transportes,
são os profissionais dos serviços sociais – hospitais e escolas,
nomeadamente – e da justiça, quem encarna a soberania popular – os direitos.
A revolta é evidente, como o revelam o relatório da SEDES e o impacto
político que tiveram as conclusões desse estudo. Não é por acaso que a
revolta se manifesta lá, no sector onde a interpretação da política
reformista do governo foi mais intensa e profunda. Os trabalhadores que
sempre se dispuseram a, reforma após reforma, a colaborar com todas as
ordens, sem autonomia e sem voz, desta vez foram estridentes. Todos e em
público, independentemente das suas convicções (porque elas nunca foram
importantes ou relevantes) gritaram a uma só voz, muitas palavras de ordem,
sob o redil dos sindicatos, por quem não morrem de amores. Ao inverso. Os
movimentos de professores que começaram a emergir como cogumelos
apresentaram-se, em geral, críticos das prioridades sindicais.
O país precisa de gente empenhada e clarividente para ser capaz de
reconstruir o seu destino multissecular, num contexto altamente complexo e
pouco favorável. Precisa dos mais novos, como dos mais velhos. Ora, quando a
maioria dos professores nunca saiu da escola, onde ingressaram aos seis anos
e onde se tornaram professores, onde construíram um reino de liberdade
condicionada – não podem sair das salas de aula nem ensinar fora dos
currículos – a produzir crianças e jovens sem ideologia, sem palavras nem
convicções, dependentes de opiniões de caudilhos tecnocratas de quem esperam
orientações, como robots, a revolta das últimas semanas só pode ser salutar.
Um exemplo – o melhor exemplo – para os seus alunos. Uma esperança de
liberdade. Liberdade pessoal, individual, sem tutelas outras do que a
consciência desenvolvida por cada um.
Não se pode esperar da classe dos professores, após 50 anos de obscurantismo
e 35 anos amesquinhantes da criatividade e da liberdade, clarividência.
Pode-se esperar, entretanto, alguma dignidade: que reclamem da sociedade e
dos governantes respeito e uma ponta de educação cívica no trato com os seus
mestres. Fizeram-no de modo espectacular. O que trocou as voltas ao governo:
se a sua política fosse pró-sindicatos não poderiam esperar-se melhores
resultados. O que coloca um desafio aos professores: como sacudir as tenazes
do jogo democrático formal vigente – entre ministério e sindicatos em
amplexo político-partidário perverso – e assumir nas mãos de cada um e de
todos os professores a responsabilidade militante de formar cidadãos
(crianças, jovens e adultos) livres. Livres dentro de si mesmos, confiantes
nas respectivas potencialidades pessoais, conscientes da necessidade de
acção para as testar, na certeza de que mesmo os erros serão apreciados, e
não serão motivo de punição, como actualmente acontece.
É neste aspecto que a política de educação de Sócrates falhou rotundamente –
e ainda bem. Os professores não estão dispostos a verem cerceadas as
possibilidades de tomarem iniciativas próprias, ideológicas, empenhadas,
contra e a favor do que entenderem ser um tributo à liberdade prometida
pelos regimes ocidentais. Nem com as visitas da polícia. Correndo, portanto,
os riscos inerentes. É disso mesmo que Portugal precisa, para se afirmar
como gente digna dos nossos antepassados. Infelizmente, contra o governo. A
bem dizer, não foi nem será a primeira vez. “É a vida!”
Nem autoritarismo, nem social autoritarismo:
independência pessoal!
2008-03-04
No sábado, os professores do
país apresentam-se em Lisboa, numa manifestação democrática, quando nas
escolas – não por acaso – a democracia está a ser minguada. O Presidente já
pediu contenção – avisado pela experiência carnavalesca da sua governação –
e Fátima Campos Ferreira pediu mediação internacional.
Não é para menos: face às más
notícias da nossa inserção na globalização e nas políticas europeias, já que
não dá jeito reformar o Estado, quis-se reformar a sociedade. Pôs-se à bulha
a população com os sindicatos, com os corpos especiais do Estado e com os
funcionários em geral – os “privilegiados” – como nuvem de fumo para reduzir
direitos na saúde, na educação, na segurança social, no acesso à justiça,
nas garantias de liberdade e de privacidade. Os mais velhos derem o exemplo,
e obrigaram o ministro da saúde, cheio de razão, a ir-se embora e entregar a
pasta a uma colega crítica, que entretanto vai continuar a política que
criticava. Os professores são a segunda leva de reclamação de fundo.
O bloqueio partidário da
política, está feita a prova, não impede a emergência da política. Dá-lhe é
uma urgência e uma irracionalidade que os países desenvolvidos aprenderam a
tratar através de processos democráticos. Infelizmente, não é o caso em
Portugal.
A democracia formal tem sido
tomada como garantida e natural. Esta governação mostrou como as derivas
anti-democráticas (anti-sindicais, pró-corrupção, anti-direitos-humanos, por
exemplo) podem emergir de onde menos se espera, do partido das liberdades. É
certo que os portugueses se deixaram embalar pela leveza do ser europeu e
pelos brandos costumes, que são afinal um espírito matreiro de subordinação.
É certo que também os professores preferiram adoptar a política da “nossa
política é o trabalho”. É certo que os sindicatos são um espelho de
contrapoder, com os mesmos vícios de exclusão da discussão e da participação
política dos partidos, a quem se referem. Também é certo que a Igreja de
Roma se opôs à formação cívica para todos nas escolas e a formação pessoal e
social – como a formação de adultos – jamais vingou em Portugal. Por isso,
nem nas nossas reuniões de condomínios é possível acordar decisões razoáveis
e sensatas, a menos que haja algum deputado ou outra pessoa importante na
vizinhança em quem se possa descarregar essa responsabilidade.
Na hora da escolha, isso também
se verificou, os portugueses escolheram a “evolução na continuidade”
política desta república em crise, apesar dos votos independentes. O governo
atirou-se contra as promessas eleitorais, na direcção da única ideologia bem
estruturada – o neo-liberalismo – que também é a mais fácil: façam-se uns
cálculos, avance-se a todo o vapor, que ninguém está preparado para
reclamar.
Ora no sábado, dia 8 de Março,
vai haver reclamações. É certo que lhe falta organização. Vai levar tempo a
ter corpo. Mas, sem dúvida, os professores estão a mostrar o caminho:
utilizam o espaço público com nervo, em nome da sua dignidade e da dignidade
do país. É das melhores notícias ultimamente: é o equivalente ao 16 de Março
de 1974. A brigada do reumático é o conjunto de todos aqueles que não
compreendem o relatório da Sedes (“Portugal e o Futuro” dos dias de hoje).
Quando chegará o êxodo dos reformados de luxo para o Brasil?
Parabéns ao Sr. Carlos César
Segundo a agência Lusa de dia
9 de Fev 2008, o Presidente do Governo Regional dos Açores admitiu a
possibilidade de a base das Lajes ter sido utilizada para transporte de
prisioneiros clandestinos e torturados pelas autoridades norte-americanas.
admitiu que tal possibilidade deveria ser dirimida diplomaticamente junto
dos responsáveis norte-americanos.
http://noticias.sapo.pt/lusa/artigo/5c26c938d9cc3826f83c7d.html
Esta posição é uma alteração
significativa e um avanço relativamente ao passado, quando o presidente
brincou com a sua obrigação de vigilância sobre o respeito pelos direito
humanos no território nacional, alegando serem visões místicas as denúncias
da deputada europeia do seu partido, Ana Gomes.
ver
AQUI posição pública
da ACED sobre esta mesma questão,
um ano atrás.
Mas é preciso ir mais longe.
E encontrar formas de investigar por conta própria o que se passou realmente
e evitar que se repitam casos equivalentes no futuro, nomeadamente
preparando as autoridades portuguesas em geral para serem diligentes quando
ocorra alguma suspeita, em vez de assobiarem para o ar e porem vendas nos
olhos.
Vemos, ouvimos e lemos!
2008-02-01
Link para discurso do
Bastonário na abertura do Ano Judicial 2008
Porque é que o Bastonário dos
Advogados provocou escândalo ao dizer o que vinha dizendo faz anos – atenção
à gravidade e impunidade da corrupção instalada no Estado ao mais alto nível
–, repetindo aquilo que muitos outros antes dele já disseram, coisa banal
tanto nos noticiários como nos blogs e emails?
Um dos argumentos mais
significativos é este: “No lugar que ocupa perde-se liberdade e há coisas
que não se podem dizer!”. A este argumento corresponde, ao nível do
senso-comum, um outro que corre assim: “Ele há-de calar-se quando lhe derem
o que ele quer!”. É assim que estamos de solidariedade institucional: nada
em público, tudo em privado?
O programa sufragado pelos
advogados determina-se numa campanha nacional contra a corrupção. Contra a
coisa e principalmente contra a complacência perante a coisa. Tema que
aflige os portugueses faz anos, que tornou conhecido o casal Maria José
Morgado/Saldanha Sanches e que foi ponto forte nas últimas campanhas
eleitorais, sem nenhuma consequência prática, a não ser a promoção do Eng.
Cravinho para um Banco internacional. A comunicação social tem procurado,
temerosamente – porque sabe que é perigoso mas também chamativo –, promover
protagonistas desta causa e, por isso, também desta vez, deu destaque às
declarações e tomadas de posição públicas do Bastonário. O que é novo são os
ataques de cara destapada de alguns moralistas armados em paladinos da
democracia, obviamente interessados na matéria e até nervosos. Acusam o
estilo agressivo do Bastonário com agressividade. Invectivam as invectivas.
Pretendem liquidar o mensageiro. A liberdade que se dane!
Num estudo recente, ainda por
publicar, tive oportunidade de verificar – a partir de opiniões produzidas
pelos portugueses a respeito do assunto – ser a maior característica da
mente de cada um, quando interpelada, a confusão e falta de clareza e
coerência na opinião. O estudo das ténues tendências com maior coerência
distinguiu quatro: os neo-liberais (para quem o problema se resolverá com
menos Estado), os conservadores (para quem a defesa do Estado impede de
reconhecer a existência de corrupção, mesmo contra a maioria e o bom-senso:
cá está), os securitários (para quem será a imposição da moral pela força a
melhor solução) e os reguladores (para quem a luta contra a corrupção é
política e judicial ao mesmo tempo).
Marinho Pinto, o “nosso”
Bastonário, apela ao corpo dos advogados – os que o elegeram e os outros,
assim como aos cidadãos seus potenciais patrocinados – para tomarem partido
pelas tendências reguladoras, que já existem mas são frágeis. Pedidos de
mais policiamento, próprios das ideologias securitárias, são muito vulgares
e facilmente mobilizáveis por todos os populismos. Quando acaba a gritaria,
como sabemos de experiência feita, apesar de Portugal ser o país da Europa
com maior proporção de policias entre a população, espera-nos novo escândalo
que volta a revelar o estrutural abandono dos excluídos e a radical falta de
prevenção dos riscos. Atitudes de avestruz, negando a evidência, boicotando
avaliações, tornando as regras procedimentais em plasticina ao serviço dos
autoritarismos locais ou centrais, próprias do conservadorismo nacional,
tacanho, irracional e ignaro, são as vivências que se projectam na votação
televisiva de Salazar como a personalidade mais admirada pelos tele-ouvintes,
e também no desgosto dos críticos por isso continuar a acontecer, mais de 30
anos após o fim do Estado Novo. O neo-liberalismo, claro, embora seja também
minoritário como convicção, é politicamente dominante na UE e também em
Portugal, onde os melhores alunos podem ser recompensados com carreiras
políticas internacionais, seja ao serviço da burocracia não-democrática de
Bruxelas, seja ao serviço de estratégias empresariais globais.
Como diz o Bastonário, a sua
denúncia é política, ideológica, contra as perversidades do sistema. E é por
isso que se tornou um escândalo. O seu discurso é um catalizador de vontades
não apenas dos advogados – que bem precisam de nervo e sentido de serviço do
Direito e dos seus valores primeiros, como a Liberdade e a Igualdade – mas
de todos os sectores da sociedade portuguesa mobilizável para definir qual
das quatro tendências ideológicas prevalecerá nos próximos anos. Caso tenho
sucesso – faço votos para que assim aconteça – a luta contra a corrupção,
mas também a correcção da reorganização do Estado e das decisões sobre obras
públicas, por exemplo, deixarão de ser verbos de encher. O tribunal de
contas será respeitado e as leis também se aplicarão aos partidos.
Percebe-se que é chato.
Liberdade académica ou ninho de cucos
2007-12-3
A racionalização dos recursos do
departamento pode ser entendida de dois modos, substantiva e praticamente
contraditórios entre si.
a) os recursos são
administrativos e burocráticos, concentrados na direcção do departamento,
nas direcções dos centros de investigação associados e nos outros órgãos
executivos do ISCTE, a cujo funcionamento e controlo os colegas se devem
adaptar;
b) os recursos são cognitivos e
de iniciativa científica, acumulados nos diversos grupos de pesquisa, cujas
sinergias podem e devem ser organizadas de modo a concretizar ao máximo as
respectivas potencialidades singulares e as possibilidades de cooperação
entre si, para prestígio e proveito colectivos.
O que tem vingado historicamente
tem sido o entendimento b), embora os escassos recursos administrativos
tenham tendência para serem apropriados pelos titulares dos cargos de
direcção (como é normal, ainda que não seja desejável).
O que está em causa actualmente
é saber se as transformações impostas pelo processo de Bolonha irão ser
utilizadas para maximizar o controlo dos cargos de direcção sobre as
actividades científicas de terceiros, em função de critérios particulares de
quem ocupe o poder, a pretexto de funcionalidades administrativas e
economicistas (“escassez de recursos”). Ou se, pelo contrário, o trabalho de
luta contra o feudalismo académico será feito em nome da liberdade, por
exemplo utilizando a ideologia dos jogos de soma positiva. Nomeadamente
organizando o debate científico intra e interdisciplinar em função das
realidades sociais que devem ser chamadas – não apenas para efeitos
palacianos – a participar na vida académica, em concreto através do
reconhecimento, regulamentação e estímulo de práticas pro-activas de
intervenção dos académicos na vida social exterior à academia.
Pessoalmente tenho razões,
infelizmente bem actuais, para pensar poder estar a ocorrer uma deriva
administrativista no ISCTE, como dei a conhecer. Quando as questões de
funcionalidade administrativa são interpretadas em termos de relações
pessoais, está-se a escamotear, na prática, a centralidade cognitiva do
trabalho académico. Quando se defende, como critério de racionalização, a
independência e autonomia dos poderes executivos relativamente ao escrutínio
dos docentes/investigadores, é no mesmo sentido que se caminha. Nenhum
vanguardismo académico auto-declarado se expressa no campo das concepções
administrativas – nomeadamente limitando as competências de auto-regulação e
de emissão opinião de pessoas e órgãos em nome da racionalidade (de tipo
a)). Este tipo de tendências não animam nem estimularão a vida académica do
departamento. Nem serão eficazes na desfeudalização das práticas.
O modo de sair da situação da
segregação em quintas, em que cada um se defende sem tempo para prestar
contas detalhadas e em tempo real – como entendo ser desejável, ao modo das
avaliações on going, como se praticam nas melhores universidades do
mundo –, não deve ser por força administrativa imposta através de apelos de
urgência. Sob pena de se institucionalizar e agravar o sistema de
apartheid ideológico no departamento e no ISCTE, que deve ser corrigido.
Não é copiando a estratégica centralista de pacificação de Luís XIV que se
induz a liberdade criativa necessária ao desenvolvimento científico. Ao
invés: é fazendo universidade, isto é desideologizando (e despartidarizando)
as diferentes abordagens da vida académica e cooperando sob o princípio da
liberdade de palavra, independentemente do acordo que mereça a cada um o
sentido das palavras do outro.
Os desacordos não devem ser
motivo para desqualificações de corredor, em surdina, e pasto de intrigas.
Ao contrário: devem ser sinais de estímulo para a organização de
oportunidades de se expressarem livremente, de modo organizado e
desdramatizado, que é a maneira de se desenvolverem naturalmente saudáveis
espíritos competitivos, compatíveis com funcionamentos sinergéticos e
solidariedades institucionais.
Essa cooperação é, de resto,
indispensável para enfrentarmos (inevitavelmente juntos) os novos processos
de avaliação que nos serão impostos, sejam eles formais ou de mercado.
A liberdade e o sindicalismo
2007-11-16
O pai do liberalismo,
Tocqueville, ganhou muito prestígio por ter antecipado intelectualmente o
que viria a acontecer no século seguinte. Qual Nostrodamus, notou como – nos
tempos em que as paixões democráticas na Europa napoleónica ansiavam por
igualdade já! – a liberdade poderia ser negligenciada e preterida, desde que
o despotismo (populismo, diríamos nós actualmente) parecesse sintonizar-se
com as ânsias populares.
Esta oposição entre os valores
modernos afirmados pela Revolução Francesa, entre a igualdade e a liberdade,
vieram, de facto, a dominar todo o século XX, opondo a União Soviética aos
EUA. Nesse tempo, uma das maiores contradições do regime do socialismo real
foram as limitações impostas às organizações sindicais dos trabalhadores,
alegadamente sustentáculos políticos dos regimes políticos vigentes. Ao
contrário, no Ocidente, os sindicatos gozaram de amplas liberdades e de um
estatuto de parceiros sociais autónomos mas integrados no aparelho de
Estado, como forma de institucionalizar as pressões socializantes, as
tendências igualitárias, que continuavam a fazer-se sentir muitas dezenas de
anos após a Revolução e em face das ideologias políticas oriundas do mundo
soviético.
Com o fim da Guerra Fria as
conjunturas mudaram de carácter. Com a convicção activa do fim da história,
do fim das ideologias, ainda que não corresponda à realidade, com a simples
convicção de que a liberdade não só foi um valor vencedor da luta fratricida
entre duas versões da modernidade mas também é irreversível, chegou-se à
grande mentira: a guerra pelo petróleo apresentou-se como uma guerra de
civilização (a Fé e o Império, lembram-se?) e a luta anti-sindical levada a
cabo inclusive por partidos com o nome de socialistas é travada em nome da
democracia.
Como diria um político
conhecido, podemos errar, torturar, matar. Mas nós investigamos e assumimos
publicamente os nossos próprios erros (enquanto formos sociedades abertas, é
preciso acrescentar). Ora, será que continuamos a sê-lo? Será que, por
exemplo, o princípio da igualdade perante a lei está ainda em vigor, nos EUA
e em Portugal? Será que os checks and balances tradicionalmente
utilizados na luta social, nomeadamente nos mercados de trabalho estão a
funcionar? Será que os tribunais de trabalho fazem justiça aos trabalhadores
quando estes se confrontam com as empresas que os contrataram? E quando as
empresas são muito poderosas mesmo, se nem os Estados as conseguem controlar
– como no caso das deslocalizações – como é que os trabalhadores se podem
defender?
A globalização traz consigo
problemas de deslegitimação do Estado, em particular no aspecto em que às
empresas é, na prática, reconhecido um estatuto de impunidade prática – que,
de resto, justifica os paraísos fiscais organizados pelos próprios Estados.
Nestas circunstâncias, quando os Estados têm por base de apoio aquelas
pessoas que menos possibilidade têm de se deslocalizar – os trabalhadores –
como se dá o caso de estarem a ser as organizações sindicais aquelas que
estão a ser alvo de desqualificação política por parte de governos a braços
com consolidações orçamentais decorrentes das limitações que tenham de
cobrar impostos? É pura preguiça dos governantes, que não querem pagar os
custos de uma sociedade aberta? Ou será a predominância da tão lucrativa
vontade da mistura de interesses públicos e interesses privados? Ou as duas
coisas ao mesmo tempo?
Os sindicatos não são
organizações perfeitas e muitos deles deixam muito a desejar quanto ao seu
funcionamento de representação democrática. É verdade a sua fragilização nas
últimas décadas. Mas não haja ilusões: os sindicatos são aquilo que deles
fazemos: governantes, patronato e sindicalizados. Menorizar os sindicatos é
trabalhar para agudizar os conflitos sociais, numa altura em que a
desorganização, desorientação e desmoralização da sociedade portuguesa são
evidentes. A quem servirá tal política?
A Casa Pia globalizada
2007-11-09
Os portugueses emocionaram-se
com o facto de figuras públicas serem capazes de cometer crimes que, na boa
consciência popular, só pessoas vis, desqualificadas, mal formadas e
mal-educadas seriam capazes de cometer. Imaginaram ser tais crimes
circunscritos, apesar de tudo, a alguns seres perversos acusados em
processos judiciais. Assim bastaria castigá-los para que tudo pudesse voltar
ao normal.
O que intriga é como é que os
castigos podem demorar tanto, quando não há sequer redes incriminadas (como
se aventou no princípio haver, e como parece que continua a haver suspeitas
fundadas de haver, aparentemente organizadas pelos mesmos de sempre), porque
os arguidos têm dinheiro suficiente para contratar bons advogados, sem que o
tribunal, aparentemente, se dê conta que tamanha demora não apenas intimida
as vítimas e testemunhas, como acaba por negar valor a qualquer decisão
judicial, seja de condenação seja de absolvição. Porque razão os superiores
interesses da justiça instituída se vergam perante os interesses (legítimos)
de defesa dos arguidos com mais recursos? Será isso um bom sinal ou um mau
sinal?
Não há respostas fáceis e, por
isso mesmo, a existência de conspirações – que é real, pública e notória,
mesmo que não sejamos capazes de lhes definir os contornos – não explica
tudo. Há que procurar mais fundo: na própria natureza humana e na natureza
das nossas sociedades.
Recentemente a actualidade
trouxe à baila o caso de uma organização humanitária (?) que terá raptado
mais de uma centena de crianças a seus pais no Tchade, país centro-africano
de colonização francesa, para os trazer para a Europa como se fossem
crianças órfãs vítima das guerras genocidas que ocorrem naquela região do
mundo. A grande preocupação do presidente francês, a quem o
primeiro-ministro espanhol agradeceu publicamente, foi subtrair à justiça
local os indiciados de um tal crime, por imaginar – com razão? – obter com
tal atitude uma imagem de dureza e de capacidade de actuação (moral?) em
França e no mundo. O grande argumento de defesa da organização acusada é o
“amadorismo” da acção dos seus membros no terreno. Que quer dizer isto? Que
os que foram apanhados são operacionais inocentes ao modo dos funcionários
nazis que organizaram e realizam burocraticamente o Holocausto em nome das
ordens recebidas dos seus legítimos chefes? E, nesse caso, a que ordens ou
políticas gerais obedecem? Será desse modo que se pretende rejuvenescer a
demografia europeia assegurando a exclusão de culturas estranhas e exóticas
que podem trazer os imigrantes? Haverá um plano para isso? Sarcozy está a
par desse plano?
A incapacidade de indignação das
oposições políticas e morais nas sociedades europeias ao status quo
secreto e fora da lei, do facto consumado e da dispensa de lei para os
nossos amigos versus o estado de sítio para os inimigos, estabelecida
primeiro nos EUA e agora seguida pela França e pela Europa, é um mau sintoma
do estado das nossas sociedades, desorientadas e exaustas de correr atrás de
coisa nenhuma. A moral da guerra sempre impediu que se envolvessem mulheres,
crianças e velhos na violência bélica. O século XX, com o desfile de
genocídios, mostrou que a civilização moderna passa frequentemente ao lado
da moral. Será que o século XXI não pode mudar isto?
Finalmente a normalidade
2007-10-12
Por palavras semelhantes àquelas proferidas pela
actual Provedora da Casa Pia o Provedor ao tempo do rebentamento do
escândalo da descoberta de uma indústria de abusos sexuais foi exonerado de
funções. Disse a senhora Provedora fazer o que lhe é possível – e não mais –
para evitar abusos e, por isso, entende que todas as denúncias públicas de
situações de que não tenha conhecimento apenas perturbam o melhor
funcionamento da instituição. Isto no mesmo dia em que a organização dos
representantes dos funcionários da mesma instituição vem denunciar o inferno
que terá sido o período de vigência da Provedora escolhida para apanhar com
o escândalo.
Quando rebentou o escândalo público – ou melhor:
quando foram dados à estampa nomes conhecidos envolvidos pelo Ministério
Público no assunto – houve quem reclamasse da demência geral, da excitação
desproporcionada, do moralismo e do judicialismo.
Pessoalmente acompanho estas últimas duas
queixas, mas não as primeiras. A indignação, a repugnância, a revolta são
salutares perante a ignomínia e o abuso. Exigem reflexão normativa e moral,
o que é uma coisa boa. Sem dogmas e preconceitos: aí estou de acordo.
Entregar a coisa a especialistas (magistrados e advogados), ainda por cima
quando toda a gente sabe que são incapazes, por sistema, de realizar os
objectivos da sua missão colectiva, um dos pilares (em falta) da democracia,
foi um erro grave das massas de portugueses que ficaram enojados e
desorientados durante muitos meses. O pior que se fez foi resumir o assunto
a um processo judicial, omitindo responsabilidades políticas que,
principalmente à esquerda (a direita tem mais pudor, parece), se pretendem
branquear, como se fosse coisa boa esconder a lama debaixo da alcatifa.
(claro que a alcatifa cheira mal!).
Os escândalos são óptimas oportunidades para
conhecermos melhor a natureza das coisas e das pessoas, incluindo nós
próprios, e testar a capacidade de intervenção das instituições morais e
judiciais. Nesse sentido, que lições se pode dizer que aprendemos
colectivamente? Na boca da actual Provedora, absolutamente nada. Os mais
altos responsáveis (acompanhados pelos representantes dos funcionários) da
Casa Pia – após um interregno manifestamente doloroso para eles (são
insensíveis a dores alheias) – querem a normalidade, uma esponja sobre
assuntos desagradáveis cuja memória ou recordatória impede que continuem a
sua “missão educativa”(?).
Ele houve psicólogos que se inquietaram com o
sofrimento das crianças e foram perseguidos por isso (recebam a minha
solidariedade!). Ele houve psicólogos empenhados em explicar que acontece
nas vidas plebeias momentos de excitação descontrolada, mas que essas coisas
sempre acabam por acalmar. Não houve perseguição destes últimos, até porque
parece que têm razão. Os senhores ainda são senhores e os meninos e meninas
da Casa Pia continuam desprotegidos.
O extraordinário início do ano
2007-09-25
Na segunda aula tenho quinze alunos, o mesmo
número que da primeira. Entre todos apenas três estiveram nas duas aulas.
Isso não é novidade. Faz anos que vou reparando que os alunos se revezam de
modo a evitarem a maçada das aulas o mais que podem sem, todavia, boicotarem
completamente a possibilidade de haver aula. Ao mesmo tempo, as condições de
ensino pioram, concretamente o tamanho das turmas aumenta, sem que isso se
reflicta no trabalho docente: afinal mantemos o volume da audiência. Talvez
facilite é o planeamento de desdobramento de horários entre os alunos.
A presença dos alunos nas aulas, muitos nos
queixamos, parece inerte. É realmente difícil estabelecer algum diálogo com
eles. Há, evidentemente, também alguma inépcia pedagógica da nossa parte. Os
docentes universitários imaginam eventualmente que os jovens já acompanham
raciocínios básicos – para nós – quando ninguém os ensinou – a eles. A minha
questão é esta: de que serve queixarmo-nos da inércia ou apelarmos à
participação dos alunos nas aulas, de que serve tentarmos melhorar as nossas
práticas pedagógicas, se os alunos estão principalmente preocupados em fazer
corpo presente nas aulas apenas o suficiente para fingirem – connosco,
docentes – que elas funcionam?
Esta questão é tanto mais importante quanto
estamos a viver uma profunda reforma no ensino superior. Até agora temos
assumido que a maturidade dos estudantes do universitário era um dado e que
os resultados académicos eram da sua responsabilidade pessoal, não dos
docentes ou da escola. A partir da reforma instalou-se um sistema oposto,
tão estúpido quanto o precedente digo eu. O desempenho da escola é medido em
sucesso escolar (despachar alunos entre os anos) e no prazer que os alunos
tenham tido no convívio com o professor – que por sua vez responsabiliza
estes últimos pelo sucesso da escola, através de uns questionários aos
alunos sobre o valor dos professores. O futuro dirá se esta descrição é
demasiado simplista – afinal, dirão alguns, há avaliações internacionais da
qualidade do ensino. A ver vamos, digo eu.
Até agora a reforma significou, no meu caso,
encontrar formas de evitar o abandalhamento visivelmente crescente da
vivência das aulas: converseta é praticamente inelutável. Entradas tardias e
saídas precoces tornaram-se vulgares e recorrentes, às vezes praticadas em
acumulação pelo mesmo aluno(a). Os sinais de olhos que três ou quatro anos
atrás eram suficientes para acabar uma conversa mais prolongada são
actualmente imperceptíveis para os alunos. Avisos explícitos ou mesmo
ralhetes têm efeito por dez minutos.
Claro que os alunos têm o direito de não gostar
do que lhes é oferecido. Têm é, digo eu, a obrigação de reclamar explicita e
racionalmente contra o que entendem estar mal, para que seja possível
melhorar. Não é isso uma reforma? Mas será isso que lhes é pedido? Ou o
facto de estarem a ser usados como armas para responsabilizar os professores
pelas (más) qualidades do ensino (ficando as gestões e as políticas com os
eventuais méritos) não lhes estimulará a irresponsabilidade, prática de
resto anteriormente já conhecida nos graus de ensino não superiores? Quem
irá acabar por ganhar com isto?
Pela minha parte, e isso é extraordinário,
escrevi um regime disciplinar para as minhas aulas. Jamais pensei em vir um
dia a fazê-lo. Mas ele aí está.
No fim da aula uma das três alunas que esteve
nas duas aulas e que, eventualmente por coincidência, interveio numa aula de
exposição levantado questões sobre o sentido do que dizia, tendo em conta
matérias aprendidas no ano anterior, desculpou-se dizendo que é o entusiasmo
pelos assuntos e não outra coisa qualquer que a levou a interpelar-me. “Os
meus colegas acham que o faço para dar nas vistas, mas não é. Vou tentar
conter-me!”. Por email, uma aluna do ano passado pediu-me uma opinião e um
conselho. Trocámos três ou quatro emails. Por fim pediu-me desculpa e para
não interpretar o contacto como um pedido de uma cunha.
A reforma será capaz de libertar e prestigiar os
alunos que querem aprender ou não será. O caminho que está a levar, pelos
vistos, não mudou o essencial.
A quem serve o alarme público contra a diminuição dos tempo de prisão
preventiva?
2007-09-16
As mesmas entidades sociais manifestaram-se
publicamente, nas últimas semanas, em defesa da presunção de inocência de
companheiros formalmente acusados de tortura e apelando ao alarme público
contra políticas governamentais que libertam presos preventivos, presumíveis
inocentes acusados de crimes graves.
Este tipo de atitudes é compreensível e
condenável. A civilização resulta do esforço pessoal e institucional para
criticar as tendências naturais da espécie humana, e é a essa luz que as
condenações devem ser usadas e dirigidas. Dos órgãos de justiça exige-se, a
este respeito, maior preparação e sensibilidade que ao comum dos cidadãos,
meros beneficiários do ambiente seguro possibilitado pelos progressos da
civilização. Os membros concretos de cada instituição, porém, são
fundamentalmente pessoas como as outras, sujeitas às mesmas necessidades de
todos nós: defender os amigos e desconsiderar, eventualmente injustamente,
tudo o que as possa incomodar. Onde acontece a institucionalização da
aplicação sistemática de dois pesos e duas medidas, o perdão para os colegas
e a condenação de terceiros com problemas judiciais, está a desenvolver-se
uma sociedade de castas – os intocáveis, neste caso a classe alta de que se
reclamam parte integrante, e os outros. Os essencialmente bons e o eixo do
mal.
Os processos Casa Pia e Meddie mostraram a todos
os portugueses como os casos de justiça são, uns mais que outros,
politicamente manipulados, às vezes até partidariamente manipulados, para os
dois lados, por forças obscuras que não dão a cara. Sobre quem tenha a razão
– ou se existe uma razão pura – isso não foi objecto de consenso. Mesmo quem
declara frequentemente acreditar na justiça – na esperança de que o processo
lhe corra de feição – mais parece fazê-lo sem convicção. Isso é natural,
compreensível, mas também não é útil. A justiça não é uma questão de fé. A
lei portuguesa, por exemplo, admite não penalizar as tentativas de
manipulação dos arguidos – por isso se diz ser esse um estatuto privilegiado
para quem seja chamado a colaborar com a justiça; por isso as pessoas comuns
não gostam de ser testemunhas na polícia ou nos tribunais, pois sentem, com
razão, estarem a ser usadas para fins desconhecidos e eventualmente
contraditórios com o seu próprio sentido de justiça: o suspeito não pode ser
perseguido se em sua defesa mentir, desviar as atenções da justiça, ao
contrário da testemunha. E merece juridicamente o estatuto de
presumivelmente inocente até à condenação definitiva. Precisamente porque se
reconhece a ocorrência de erros judiciais e a necessidade de dar meios
técnicos de defesa a todos, culpados de facto e inocentes.
Durante o processo, é trabalho da acusação
inventar os cenários de inculpação para organizar as provas susceptíveis de
convencerem os juízes da culpabilidade dos suspeitos. O sucesso dos
trabalhos resume-se à condenação, ainda que seja de inocentes – o que também
acontece, naturalmente, mesmo sem intenção da acusação. Compreende-se, mais
uma vez, que os profissionais da acusação sejam particularmente afectados
pela sua própria idiossincrasia. Devem representar com persistência a
perspectiva acusatória. Devem, por isso, estar especialmente bem formados.
Devem ter formação permanentemente actualizada sobre justiça. É mau sinal
para Portugal quando as posições vernáculas das tendências securitárias
produzidas pelos ossos do ofício vêm a lume em bruto.
Não há, evidentemente, nenhum perigo para a
segurança pública significativamente maior do que haveria antes, depois da
libertação de mais de uma centena de presos preventivos, acusados de crimes
(de outra forma não se poderia justificar a sua prisão). De facto, todos os
anos, um número semelhante de presos preventivos sai das cadeias
portuguesas, depois de meses de clausura e amesquinhamento, inocentados ou à
espera da conclusão de processos. Muitos outros saem condenados à pena de
prisão já cumprida em prisão preventiva. Diz-se ser assim para evitar os
números de injustiças reconhecidas oficialmente aumente ainda mais. Porque
se dá o caso de aqueles que agora se queixam dos perigos nunca tenha
reparado anteriormente nos mesmíssimos perigos também eles decorrentes das
intoleráveis demoras dos processos?
As taxas de criminalidade (mesmo depois dos
aumentos recentes) em Portugal são das mais baixas da Europa e do Mundo. As
taxas de encarceramento são das mais altas da Europa, principalmente pelo
tempo exagerado (e socialmente contraproducente, tanto do ponto de vista
financeiro e como da reincidência criminal) da duração das penas efectivas e
das prisões preventivas. De facto, há evidência científica interpretada no
sentido de afirmar serem as penas de prisão, e as práticas institucionais de
criminalização, uma das principais fontes de insegurança nas sociedades
modernas, Tudo se passa como se as sociedades fossem capturadas pelos seus
próprios protectores. Quem nos protege dos nossos protectores? Costuma
perguntar-se, com razão.
No contexto global actual é indispensável tomar
posição contra o partido do ódio e do alarme social provocador de medo,
instigador da violência. O mundo não é feito por bons e maus: somos todos
feitos da mesma massa, mesmo quando aquilo que vemos ao espelho seja
repugnante, ignóbil e merecedor da nossa acção condenatória. Não devemos
cair na posição mimética daqueles que condenamos – eis o nosso maior desafio
civilizacional. Em Portugal e no mundo.
Estado de Direito
ressuscitado
2007-08-20
Por estes dias terá
ressuscitado o Estado de Direito em Portugal. Qual Fénix, para defender a
propriedade privada e os trangénicos, ei-lo reaparecido depois de ter sido
avistado moribundo em luta contra a estupidez, a pedofilia e a corrupção.
Quando a banca faz
arredondamentos ilegalmente a seu favor, aproveitando o conhecimento que tem
das primeiras técnicas de crime informático e esbulhando milhões de
portugueses, o Estado de Direito serve para procurar evitar que os bancos -
em crise, como se sabe - devolvam o que roubaram. Quando um grupo organizado
fora dos partidos usa os meios que (não) tem para fazer propaganda política,
os que jamais souberam clarificar como são financiados os partidos chegam-se
ao "Estado de Direito" para condenar tal concorrência. Do mesmo modo que a
prometida livre circulação de bens e recursos financeiros num mundo
globalizado, teoricamente para todos, por via de regulamentos acordados
entre os que têm as armas, acaba por ter apenas um sentido, dos pobres para
os ricos, que se tornam mais opulentos com a crise dos primeiros.
PS: recebi mensagens com
informações úteis para quem queira entender o que está em causa
AQUI e
AQUI e
AQUI
António Balbino
Caldeira
2007-07-21
António
Balbino Caldeira alimenta um blog contra o sistema.
Impressionado
com o processo Casa Pia e as (ir)responsabilidades do Estado neste caso foi
levado a procurar respostas. E a incomodar muita gente poderosa.
Pelo que foi
tratado de forma intolerável e impune, que julgávamos improvável depois da
PIDE ter sido denunciada.
Sobre isso
vale a pena ler
http://doportugalprofundo.blogspot.com/
Tal
correspondência sugere a possibilidade de haver processo causa-efeito, que
apontaria para a confirmação da sua tese principal: a pedofilia não é apenas
uma excrescência do sistema. É um dos cancros do sistema.
Quando
surgiram dúvidas públicas sobre o percurso “académico” de Sócrates,
investigou o assunto. Persistentemente. Passados alguns meses tinha
conseguido fundamentar as suas dúvidas na incapacidade de respostas do
primeiro-ministro. A ponto de ser secundado pelos meios de comunicação de
referência, permanecendo actualmente a questão nebulosa e alvo de processos
judiciais para eventual esclarecimento – se alguma vez vier a ser possível
tal coisa.
O anúncio
público da iniciativa política do PM de instaurar um processo-crime contra
António Balbino Caldeira é um acto de instrumentalização política do poder
judiciário que não é próprio de um democrata com princípios. Como têm
chamado a atenção vários sectores sociais, a democracia e a liberdade que
lhe é suporte, estão em causa nesta fase da vida nacional. O medo dos
advogados instigado institucionalmente, o medo dos empresários em
participarem na vida pública, como veio a lume a propósito da contestação à
Ota, o medo de existir do José Gil. O sebastianismo estimulado pelo
voyeurismo televisivo sobre os supostos radicais, que tem promovido o
salazarismo e o neo-nazismo na praça pública.
É melhor
prepararmo-nos para lutar pela Liberdade.
A censura do chefe da oposição
2007-04-19
A novela da atribulada vida
académica do primeiro-ministro está a ser secundada por um debate
despoletado pela acusação de falha de carácter que lhe lançou o chefe da
oposição. E se foi preciso os jornais insistirem na tecla da vida
académica de Sócrates para que o líder do PSD levantasse a questão de
carácter dos políticos – como o tinha feito anteriormente a respeito das
eleições autárquicas, para dentro do seu partido – talvez isso venha a
valer a pena, isto é, possa ter consequências práticas na política
portuguesa.
Ouvi dizer na televisão que a
questão do carácter dos políticos não deveria estar a escrutínio público
ou político. O que me parece inaceitável em democracia é que os dois
argumentos (a censura do debate e a censura do político) sejam alegados
conjuntamente. Das duas uma: o debate está na praça e quem não gosta
abstém-se; se não se abstêm, que sentido faz estar no debate para dizer
que o debate não deve existir, sem explicar porquê?
Este problema tem a ver,
nitidamente, com a prática dos órgãos de comunicação social de
destacarem políticos para o seu serviço (como acontece com outras
empresas do campo financeiro, energético, etc.), para animarem fora de
comentários políticos. Como tem a ver com a qualidade da democracia
portuguesa, autista e cada vez mais isolada da vida a que falta
cidadania. Quando quem comenta não o faz desinteressadamente, produz-se
uma enorme confusão entre a tentativa de fazer pedagogia – fazer opinião
para povos livres e democráticos, bem formados – e a tentativa de
controlo da opinião pública e publicada. Esta rede de conspirações entre
partidos e meios de comunicação social faz e desfaz primeiros-ministros
e governos, gerando a instabilidade política que emerge da falsa
estabilidade produzida nas urnas pela mesma cumplicidade da comunicação
social e os políticos, denunciada entre outros por Santana Lopes.
Vivemos em Portugal a instabilidade política estabilizada e pouco
democrática.
Voltámos à noção de que o povo
português não está preparado para assistir e participar em certas
discussões, como as do carácter dos políticos, que por isso devem ser
censuradas? Ou o que é democrático é organizar a discussão política de
forma racional, ampla, participada e inteligível, em liberdade? A
promiscuidade entre poder político e direcção dos media, que
alegadamente deveria ser combatida pela privatização dos meios de
comunicação, deve ser combatida ou auto-regulada?
Pessoalmente entendo a censura da
censura de carácter como uma atitude política que pode até ser racional.
Mas isso mesmo, a sua racionalidade, precisa de ser melhor debatida,
entre comentadores independentes dos partidos/media de preferência,
independentemente das suas preferências partidárias.
É racional evitar a demagogia e é
fundamental combater o ódio na política. Mas se assim é, como se dá o
caso dos cartazes no Marquês? Como fica de pé a mensagem de ódio –
entretanto combatida pela polícia judiciária – e é apeada a mensagem
humorística? Porque é que os tribunais não estão expressamente
mandatados, nestes casos e noutros de emissão de mensagens sociais de
ódio, para intervirem preventiva e pedagogicamente? Porque é que os
cidadãos justamente indignados e disponíveis para agir civicamente
contra o ódio estão democraticamente desarmados, à mercê da
disponibilidade dos partidos políticos ou dos dirigentes das
instituições – Câmaras Municipais, Procurador Geral da República – para
lidarem com a serpente ainda no ovo? É que se os tribunais tivessem
poderes para acolher de forma expedita petições contra o ódio e em
defesa da democracia, também no caso das conspirações contra o
primeiro-ministro certamente teria havido uma ou mais iniciativas de
cidadãos a argumentar o inverso do que acredito: não é legítimo aos
media levantar o problema de carácter do primeiro-ministro a propósito
da vida académica, pelo menos enquanto este não sair de funções. Se um
tribunal pudesse pronunciar-se sobre esta questão, qualquer decisão que
tivesse tomado, desde que fundamentada na lei e na constituição – que é
democrática – seria um acto político útil e de primeira relevância. A
falta de capacidade dos sistema judicial em intervir politicamente lá
onde faz falta à democracia, como é manifestamente o caso, por
desconfiança e/ou inépcia dos partidos, sequiosos de poder, de todo o
poder, faz com que Portugal esteja nesta situação ridícula na véspera de
uma presidência da União Europeia, desnecessária e antecipadamente
frouxa e desacreditada, qualquer que venha a ser a evolução dos
acontecimentos.
O que parece vir dar razão aos que
entendem que é melhor acabar com a liberdade para que os políticos
possam, ainda mais tranquilamente, prosseguir os seus negócios que faz
deste país ao mesmo tempo o mais pobre e o mais desigual e o mais
economicamente comprometido da União. Mas de facto é o inverso que se
passa: os partidos devem ser capazes de seguir o exemplo dos militares
de Abril e, democraticamente, abrir mão dos seus poderes exagerados e
imorais e entregá-los ao povo, nomeadamente formando um sistema de
justiça que possa ser uma instância de recurso às fraquezas de carácter
dos responsáveis políticos – que se manifestou em José Sócrates sob a
soberba de insistir, sabe-se lá porquê, em assegurar ao mundo (ou a si
mesmo?) o valor das suas credenciais académicas, manifestamente tão
miseráveis como os indicadores de literacia do país.
O que falta ao povo português é
liberdade. Falta-lhe um sistema judiciário que defenda, como lhe cumpre
mas não é capaz, a liberdade de todos e de cada um, incluindo o governo
e o seu primeiro-ministro. Isto porque os partidos portugueses (todos,
incluindo os que estão fora do arco do poder) se entendem como
sorvedouros de poderes públicos e privados à custa da inibição de órgãos
de soberania deficitários, como é manifestamente a judicatura e como
passou a ser também, a meio do mandato, o governo.
É claro que a felicidade não está
à nossa esquina. A persistente e cada vez mais profunda crise da
justiça, que o Presidente da República significativa e
surpreendentemente resolveu desvalorizar, deixou os tribunais a pender
mais ainda para a tese da ditadura e do ódio, como o demonstram os
extraordinários acórdãos legitimadores da violência doméstica e da
censura jornalística em caso de eventual ofensa à honra de entidades
poderosas com a verdade (outra vez a verdade no caminho dos poderosos
que pretendem manter-se irresponsáveis). A falta de preparação e de
auto-responsabilização das magistraturas portuguesas e a recorrente
chocante irracionalidade do sistema judicial e das decisões que profere,
possível pela manutenção persistente de uma situação que atravessa e
mina toda a II República, não se ultrapassa de um dia para o outro, nem
se ultrapassa subtraindo competências a este pilar da democracia
política. Nem é ultrapassada por políticos que desvalorizam a moral e a
ética, como gostam de fazer os economistas mas não devem fazer os
políticos.
Voltando à vaca fria, como é
possível que, no mesmo governo, um ministro despeça um assessor por ter
usado um fax do seu gabinete para enviar uma mensagem pessoal para a
comunicação social, por alegada incompatibilidade de mistura de funções
públicas e actividades privadas, e outro ministro alegar comportamento
exemplar do primeiro-ministro que usou timbres e fax públicos para
trocar correspondência com um influente professor de uma universidade
durante a realização do seu curso superior? Como é possível quem apoie o
primeiro-ministro vir censurar a censura de carácter do seu primeiro,
sem se ter indignado – ainda que menos intensamente – com a atitude do
ministro que despediu o assessor? Há aqui, de facto, questões de
equidade e balanços morais e éticos que são relevantes de ver
esclarecidos: haverá duas classes de cidadãos em Portugal? Os assessores
cujo comportamento ético escape ao controlo dos ministros podem
tornar-se primeiros-ministros impolutos? Os últimos ficam autorizados em
partilhar livremente e a seu bel-prazer os recursos naturais e
institucionais do país e os primeiros devem ser mantidos envergonhados e
condenados, excluídos do debate político, reduzidos a fiéis
funcionários? Não é por isso que alguns concidadãos perguntam, cada vez
mais abertamente, que no tempo do Salazar, como agora, onde está a
diferença? Não será melhor para a democracia afirmar, confirmar e
defender essa diferença? Não será de dar prioridade ao combate ao medo,
à auto-censura e à desmobilização de operadores judiciários, jornalistas
e cidadãos perante o poder desmesurado da partidarite portuguesa?
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