Sociologia da
Instabilidade
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Sumários 2017/18 Princípios da sociologia da instabilidade Teorias sociais à luz dos estados de espírito Lição 2. Apresentação da tarefas e do conceito de estados de espírito, 12-10-2017 Lição 1. Argumentos sobre Rendimento Básico Incondicional, por Paulo Pedroso e Philipe Van Parijs, 28-09-2017 Informações sobre o RBI. Paulo Pedroso é um sociólogo do ISCTE. Ele era secretário de estado do governo, há 20 anos, quando foi posta em prática a política do Rendimento Mínimo Garantido, actualmente Rendimento Social de Inserção. Para o efeito, Pedroso estudou as ideias que Van Parijs desenvolve há mais de 30 anos: a ideia de pré-distribuição, assegurando rendimentos a cada pessoa para a vida. Pedroso argumentou contra e Van Parijs a favor, da implementação do Rendimento Básico Incondicional - RBI. O argumento mais dramático foi usado por Pedroso quando ele se referiu à visão de uma guerra civil causada pelo RBI, opondo quem trabalha e paga impostos para sustentar os não-trabalhadores que vivem do RBI sem trabalhar. Van Parijs respondeu explicando que, como acontece hoje, a clivagem entre aqueles que trabalham toda a vida e aqueles que nunca trabalham não será tão clara como tal guerra pressuporia. As novas tendências do mundo do trabalho - sem RBI - são para misturas cada vez mais intensas entre diferentes posições. Cada pessoa muda de ocupação e setor de atividade várias vezes ao longo da vida. Entre actividades, cria filhos, estuda, viaja. A guerra existe, mas a partir de outras causas. O argumento do ethos de trabalho foi usado por ambos os lados. Pedroso argumentou que o RBI irá negligenciar o prestígio da ética de trabalho que tem ligado o rendimento ao trabalho árduo. Van Parijs argumentou que o trabalho doméstico, o trabalho voluntário de vizinhança, fazer companhia a pessoas doentes ou incapacitar, são alguns dos tipos de trabalho que não tem visto reconhecido o valor que merecem. Além disso, do modo como funcionam as ajudas de desemprego, obrigam as pessoas a cair na armadilha da pobreza: se aceitam trabalhar, perdem seus subsídios e, então, torna-se irracional começar a trabalhar por tão pouca recompensa (diferença entre salário e subsídio de desemprego). Van Parijs também argumenta que o mérito do salário da maioria das pessoas não depende do mérito pessoal, mas, da sorte de beneficiar, ou não, dos resultados da antiga organização social e econômica herdada das gerações passadas. Esta herança, não é justo ser a benefício exclusivo daqueles que ganham maior rendimentos. Essa é uma grande razão para a pré-distribuição. Pedroso argumenta que a utopia de homem novo é um caminho perigoso, como a história do comunismo mostrou. Van Parijs responde que a política de RBI não pressupõe qualquer tipo especial de pessoas. O inverso é verdadeiro: o RBI aceita qualquer tipo de pessoa e que cada um decida o que quer se tornar. Ambos, Pedroso e Van Parijs concordam que o RBI favorece a liberdade individual. Pedroso disse que seria muito caro para o orçamento do estado aumentar 30% ou mais, para pagar RBI. Van Parijs responde que um regime de dividendos de robôs e transações financeiras fará o serviço. Pedroso argumenta que o estado deve ser cuidadoso para evitar destruir as conquistas recentes do apoio social às pessoas necessitadas, na senda da segurança social começada por Bismark e Humboldt. Van Parijs respondeu que, para ele, há três processos principais de oferecer apoio social moderno às pessoas: a assistência desenvolvida primeiro localmente nos Países Baixos, na Alemanha e na Inglaterra, no século XVI (a paróquia ajuda as pessoas em dificuldades, contra a vontade da Igreja da altura); o sistema de seguro aplicado às necessidades sociais, apresentado por Condorcet em Paris; a pré-distribuição utilizada para crianças, para idosos, para famílias e que deve tornar-se universal e incondicional, sob o nome de RBI. Essas três ideias não são incompatíveis. Eles sobrepõem-se hoje e vão continuar a sobrepor-se no futuro; sob diferentes formas, em diferentes países e grupos de pessoas. Isto não é um resumo das conferências. É apenas um registo de alguns dos argumentos.
Sumários 2016/17 Será a sociologia capaz de vir a ser uma ciência? Tipos de sociedade (PP) Grande Entrevista a Krzysztof Charamsa (RTP 49:23) sociedade misógina, elitista e dissimulada
Lição 10. Revisão da matéria dada, consciência e estados de espírito, 20-12-2016 A consciência humana tem duas vertentes: a vertente ambiental e a vertente social. Esta última decorre da presença em grandes quantidades de células espelho que têm o efeito de vivermos inconscientemente, como nossos, estados de espírito alheios. Os seres humanos podem, inclusivamente, viver fisiologicamente o equivalente a situações reais anteriormente vividas apenas por intervenção da memória, sem acção actual, porque nos lembramos delas (como acontece de forma patológica nos casos de stress pós-traumático). Tanto a consciência ambiental quanto a sociai são selectivas. A partir do momento em que nascemos vamos acumulando capacidade de percepção relacionadas com sentidos e emoções e criando vazios, grandes vazios, preenchidos com a indiferença e a ignorância. Por exemplo, a generalidade dos habitantes de qualquer cidade ignora os seus próprios monumentos que, por sua vez, são especialmente apreciados pelos turistas. As belezas locais são frequentemente banalizadas e ignoradas, eventualmente por boas razões: os monumentos e as belas paisagens são lugares de desfrute de classes dominantes que procuram afastar da sua presença as outras classes. A ignorância e o alheamento desses edifícios e lugares é socialmente produzida e efectiva ao nível da consciência das populações. De outro ponto de vista, as pessoas conhecem bem aquilo que faz as suas referências quotidianas, resultantes da acumulação de percepções e conhecimentos que lhes vão sendo úteis. Claro que podem ignorar, para efeitos de poupança de energias, situações, factos, edifícios, ideias que lhes seriam úteis, caso não as desprezassem. Geralmente, tendo resolvido um problema de forma satisfatória, torna-se difícil inovar – há as chamadas resistências à mudança, também às mudanças de percepção. Por exemplo, quando se muda de casa para um local próximo, na cidade, é provável que se retorne ao local da primeira habitação para tomar o rumo certo para organizar as viagens na cidade ou para fora dela. As pessoas durante anos construíram o seu próprio mapa mental e, mudando ligeiramente de local de partida, enquanto não reconstroem o seu novo mapa de estradas, é-lhes mais fácil retomar o mapa antigo. Com a idade, para os séniores, a mudança de casa pode tornar-se um desafio violento e uma experiência de maior isolamento, precisamente pela perda de referências e, sobretudo, pela dificuldade de reconstruir referências dos locais úteis para o dia-a-dia. A sociologia da instabilidade valoriza a construção da existência pessoal e social com base nas necessidades biológicas das pessoas, necessidades típicas da espécie humana. Diferentes nos diferentes grupos etários. Nisso se diferencia das atitudes (usadas na psicologia-social) ou dos papéis (usados na sociologia). É um conceito que se refere a uma teoria social centrífuga, aberta à evolução da espécie humana e questionadora da biologia e da ideologia para ajudar na compreensão dos fenómenos sociais. Não se refere a uma teoria social centrípeta, auto-suficiente, para a qual os conceitos são puros e se definem completamente no quadro de teorias especializadas e dados produzidos por métodos singulares dirigidos à população activa. Os estados de espírito procuram ultrapassar as barreiras criadas dentro das ciências sociais, nomeadamente entre psicologia e sociologia, entre a micro-análise e a macro-análise, entre a história e a sociologia, na senda do conceito de disposições de Pierre Bourdieu. Como este autor, reconhece a génese das disposições na infância de cada pessoa, para quem os meios ambientes e sociais com os quais formou a sua consciência têm um impacto particular. Admite também que o uso dessas disposições é parcial (as disposições desdobram-se em estados de espírito singelos, uns mais usados que outros) e pode ser alterado na vida adulta (por exemplo, quando se muda de hábitos, por mudar de casa ou de emprego ou de família) mudando a frequência dos estados de espírito (mais ou menos felizes) e criando, aprendendo, novos estados de espírito que passam integrar, de forma mais ou menos central, a velha personalidade, actualizando-a, no quadro normal da sua evolução mais ou menos descontinua. O conceito de estado-de-espírito procura identificar modos padronizados de orientação dos comportamentos mais diversos. Esses padrões permitem o reconhecimento entre pares do qual seja o estado interior das pessoas, mesmo quando elas não o explicitam. São eles que permitem o uso do método weberiano de identificar o sentido da acção de terceiros, em função das potencialidades de cada sociólogo se colocar no lugar das pessoas observadas e de presumir, com alguma certeza, o sentido subjectivo (inacessível sem ser por empatia) da sua acção. Os estados de espírito são património da humanidade. Para poderem ser replicados tem de haver pessoas e sociedades que o façam, em termos práticos. Por exemplo, a fixação em textos dos estados de espírito vivenciados não são suficientes para os manter. Ao contrário. Com a evolução das sociedades, as descrições dos estados de espírito são reinterpretados em função de novos estados de espírito produzidos em novos contextos ambientais e sociais. O que não quer dizer que seja impossível, com algum esforço, reverter essa interpretação e enquadrá-la na sua época própria. Porém, nunca se saberá ao certo avaliar a exactidão de tais interpretações. Em particular, antes de estarem claros os processos bio-sociais-ideológicos de produção de estados-de-espírito. Se algum dia isso for possível de fazer. A evolução da espécie produz novos estados de espírito, muitos deles apenas possíveis de produzir devido às experiências anteriores. O que não quer dizer que, como acontece com as palavras, não caiam em desuso alguns desses estados de espírito. Pode dizer-se que os estados de espírito são frases, sentidos, de uma linguagem não-verbal nem gestual que implica todo o corpo humano e que permite a comunicação não racional. Constituindo, portanto, a base das comunicações mais racionais. Base das sociabilidades auto-referenciais (do individuo consigo mesmo), produtivas ou práticas (referidas ao meio ambiente) ou sociais (solidárias ou discriminatórias). Nesta concepção, a sociabilidade é fortemente instável, como o demonstra a própria evolução das sociedades. Actualmente, as mudanças são particularmente aceleradas pelas dinâmicas do capitalismo, que surgem como exteriores às sociedades. Como enfatizam as teorias estruturalistas. As pessoas resistem por auto-defesa, para assegurar a sua sobrevivência, como enfatizam as correntes socialistas, mas também para procurarem ser felizes (perseguir os seus interesses), como enfatizam as correntes individualistas. Na prática, as estruturas institucionais herdadas são ao mesmo tempo concepções de sociabilidade ideal, edifícios simbólicos e respeito por níveis de realidade diferenciados, cuja harmonia é sempre problemática. Os estados e os regimes só se mantém enquanto as suas contradições internas, entre as classes e as fracções de classe, entre as justificações legítimas e as diferenciações práticas, a capacidade de sobrevivência física e mental das populações, a solidariedade geral, se mantêm. A instabilidade desses arranjos – descobriram os serviços secretos ao serviço de quem lhes pague – pode ser perturbada facilmente. Mas, mais tarde ou mais cedo, acaba por ser perturbada espontaneamente por mera evolução das contradições, como ocorreu em Portugal, em 1974, quando o regime fascista cedeu sem luta ao golpe de estado dos militares. Abrindo campo à revolução, isto é, à difusão do espírito revolucionário criado anteriormente na clandestinidade. Lição 9. Análise de dimensões de realidade, 15-12-2016 A sociologia mudou sempre que a época política mudou. Ela surgiu no século XIX em muitas partes do mundo, produzida por autores separados uns dos outros. Acompanhando a modernização do mundo, isto é, a ocidentalização das cidades mais abertas ao comércio internacional. Foi na Europa, em 1904, que Durkheim, contemporâneo de Max Weber, institucionalizou a primeira cátedra de sociologia. Nas vésperas das Guerras Mundiais que haveriam de destruir os países mais avançados na Europa. Incluindo, claro, as instituições académicas. Cuja vida continuou, porém, nos EUA. Enquanto nas partes menos desenvolvidas do mundo os autores clássicos nacionais ficaram sem seguidores. Ignorados até hoje. A institucionalização da sociologia nos EUA criou uma referência ainda hoje essencial na teoria social: Talcott Parsons e o seu estrutural-funcionalismo, inspirado na biologia (o autor nunca esqueceu a sua formação inicial nesta disciplina). Teoria essa – como as que lhe sucederam em termos de hegemonia académica – viradas para aquilo que hoje se chama empregabilidade dos estudantes. Podemos caracterizar essa teoria, com a ajuda de Mouzelis, como operando através de processos mentais de redução (por exemplo, a dados) compensados com imaginação sociológica (reificação), que funcionam e parecem credíveis por serem praticados em especialidades isoladas umas das outras – sociologia centrípeta, como o movimento de dispersão que converge nos processos de onde radica, fechando a disciplina em si mesma através da desmultiplicação de subdisciplinas desconhecedoras umas das outras (aliás como acontece com as outras ciências sociais e com estas, no seu conjunto, relativamente às ciências naturais). A tomada consciência dos limites cognitivos e utilitários deste tipo de situação pode melhor ser feita a partir de um contraponto de possibilidades teóricas – a sociologia centrífuga – abertas à necessidade de colaboração entre saberes no quadro das ciências sociais (por exemplo, entre a economia, a psicologia, a sociologia, a história e a geografia, etc.), entre estas e os saberes doutrinários (teologia, ideologias, direito, etc.) e as ciências naturais (física, mas sobretudo biologia, incluindo neurociências). Tomar consciência dos limites actuais das ciências sociais é melhor entendido por quem procurar sair da prisão em que o processo centrípeto tem enredadas as actividades actuais da maioria dos profissionais do campo. Logo se defrontará com os limites, como se fossem fronteiras físicas. Para efeito da produção da sociologia centrífuga, admitamos sem repugnância considerar a hipótese de a sociedade moderna ser apenas um estádio mais avançado de um desenvolvimento de sociedades sujeitas à “organização”, isto é, ao uso regular e íntimo (além de bélico, que é mais evidente) da violência para condução das pessoas e das sociedades. Evolução que dura há cinco mil anos, e não há duzentos anos ou há trinta anos (como parece ser o caso da sociedade pós-moderna ou neo-liberal para muitos autores). Admitindo isso, poderá colocar-se a hipótese de estarmos a viver um modo de organização social fundado na misoginia, no elitismo e na dissimulação. (Insisto: evite-se a repugnância que uma descrição tão crua e tão verdadeiramente básica das sociedades faz sentir. Reconheça-se antes ser estranho que o estudo racional e objectivo das sociedades esqueça tantas vezes a evidência desta verdade básica, dificilmente refutável com argumentos. Facilmente refutável com a repugnância). A organização e as civilizações são fundado na produção e reprodução de discriminações de género, de privilégios atribuídos a pessoas em posições de comando e de aparatosos sistemas de justificação de discriminações e privilégios Na modernidade, os privilégios e as discriminações, são alegadamente ponderados racionalmente. Embora na prática, não é possível deixar de o reconhecer, a irracionalidade partilhada através de estados de espírito discriminatórios (por exemplo, a misoginia ou o racismo) e de naturalização dos privilégios (por exemplo, através de critérios de mérito ou de excelência, mas também de exclusão ou de desigualdades estruturadas de oportunidades) seja ensinada e reproduzida de forma emocional e argumentativa a níveis informais (nas famílias e entre colegas) e organizada (pelas escolas e pelas intervenções públicas). Imaginar uma sociedade em que a misógina, o elitismo e a dissimulação sejam desconhecidos, ou ao menos secundarizados, é um desafio intelectual de racionalização da própria ciência, cujos resultados práticos podem também ser benéficos para a sociedade, na medida em que poderá passar a dar mais relevo à razão (da justiça, do respeito pela dignidade de todos e cada um, dos direitos humanos, por exemplo) nas suas decisões práticas. A níveis macro, meso e micro. A crítica da teoria social, por exemplo, a crítica à fixação de dimensões sociais tomadas por Parsons – a política, a economia, a sociedade e a cultura – deverá passar não apenas pela identificação dos pontos de atrito e conflito actuais – como sugeriu Giddens quando estabeleceu um novo quadro de dimensões sociais apropriadas ao capitalismo avançado (a fase da história europeia que se desenrolou a partir dos anos 80 do seculo XX) que incluía duas dimensões que enfatizavam a violência (violência interna, controlo social pelas forças repressivas do estado, enfatizada pelos movimentos de direitos humanos, atentos às violações; violência externa, belicista, enfatizada pelos movimentos pacifistas) e duas dimensões sobre o relacionamento das sociedades com a natureza (industrialismo, enfatizado pelos movimentos ecologistas) e consigo própria (capitalismo, enfatizado pelos movimentos de trabalhadores). A crítica da teoria social deverá aprender a considerar a centralidade de sugestões bem menos evidentes no terreno do presente, mas que podem servir de guia para o futuro. Para o futuro das teorias sociais e para o futuro das sociedades. A teoria social deverá não perder de vista que o presente mais não é do que a conjugação das múltiplas heranças num quadro de expectativas, elas próprias herdadas mas, ao mesmo tempo, instáveis em períodos de euforia, que interrompem períodos de depressão e períodos de apatia. A recursividade biologicamente imposta ao desfrute da humanidade não deve ser ignorada pelas teorias sociais. Ou reduzida apenas às aparências mundanas. As civilizações, apesar das suas profundas diferenças, têm em comum a misoginia, o elitismo e a dissimulação. As lutas contra estes defeitos, que são ao mesmo tempo a estrutura da vida social dominante, são centrais para a vida e história sociais. Como o mostram a libertação das mulheres (e os movimentos de protecção das crianças e LGBT), ou a democracia, a racionalização das decisões políticas abertas ao escrutínio público e político. A história das organizações base das civilizações (de homens hierarquicamente organizados e protegidos por justificações emocionalmente eficazes) tem pelo menos cinco mil anos. E precede, evidentemente, lógica e cientificamente, os problemas específicos da modernidade. Não os invalida. Coloca-os em perspectiva, no quadro de processos mais longos (e mais curtos, como a educação) que considerem a produção de heranças e de expectativas parte integrante do presente. Neste quadro, cada sociólogo é chamado a explicitar as suas próprias heranças e expectativas, a elaborá-las de modo atento e transparente, capaz de abrir campo a uma sociologia centrifuga, isto é, interessada e desejosa de reunir conhecimentos e saberes úteis à consecução de processos de concretização das expectativas de que é produto e autor. Lição 8. Análise de níveis de realidade, 24-11-2016 Os níveis de realidade social são logicamente de três tipos. De cima para baixo: a) os níveis de ambiente ou os caracterizados por comandos normativos do geral para o particular; b) os níveis sociais propriamente ditos, caracterizados por dialécticas ou diálogos entre o ambiente e os mecanismos sociais, entre as estruturas e os agentes, entre o longo prazo e o curto prazo, entre o geral e o particular, entre os grupos e os indivíduos, entre as identidades sociais e as circunstâncias do momento; c) os níveis dos mecanismos sociais ou os caracterizados pela instabilidade psico-biológica das pessoas, incluindo a sua capacidade de crescer, se alimentar, actuar socialmente, identificar-se com os grupos e as sociedades, de resistir às doenças, de se reproduzir biologicamente. Estes níveis são separados entre de si de forma empírica, de acordo com as pessoas, grupos, instituições, sociedades, momentos históricos, horas do dia. Tomá-los como resultados do método de análise aplicado – macro, meso, micro – em vez de alvo de inquérito resulta em preconceitos. Em tomar por objectivo aquilo que foi, de facto, resultado de processos de naturalização e encobrimento social, a que a ciência deve responder com descobertas, em vez de reforço científico dos preconceitos. Deve responder com rupturas com o senso comum. A naturalização da separação entre os diferentes níveis resulta, na prática, em que se parte quase sempre do princípio que as pessoas alvo da atenção e de estudo vivem a mesma separação geral de níveis de realidade social que os sociólogos e os seus leitores, quando isso não corresponde à verdade. Isso explica porque a maioria dos sociólogos são especializados em analisar classes baixas e situações micro (isto é, pessoas e situações com influência normativa limitada, devido à sua incompetência própria produzida pela opressão social) e as tomam como classes iguais às outras, em particular iguais às classes médias a que os próprios inquiridos se referem quando perguntados, e às classes em que os próprios sociólogos se incluem a si mesmos. As declarações dos inquiridos são, a respeito do seu posicionamento relativamente às fronteiras entre o social e o normativo, frequentemente tomadas como formalmente equivalentes a pessoas com a experiência social dos sociólogos e seus leitores. Mas tal pressuposto é frequentemente falso. Já que os níveis de segurança ontológica, por exemplo em termos de oportunidades de desempenhar diferentes papéis sociais ou de acesso a recursos cognitivos e normativos, como compreender o funcionamento das burocracias e distinguir diferentes níveis de administração, ou de conhecimento da geografia das cidades com a autonomia que dá um transporte próprio, não são iguais para todos os cidadãos. A capacidade crítica e a tolerância das autoridades repressivas são igualmente muito diferentes consoante as experiências sociais de cada um. Usar inquéritos presumindo a igualdade da experiência empírica das classes relativamente aos diferentes níveis de realidade, sem caracterizar especificamente os meios sociais de constituição das pessoas alvo de pesquisa, torna inviáveis análises sociais rigorosas. Mas garante-lhes, ao mesmo tempo, não haver contraditório. Pois às pessoas objecto de estudo falta-lhes autoridade para o fazer. As injustiças sociais estruturais são frequentemente reduzidas a diferença de competências, no quadro de uma visão meritocrática e funcionalista das sociedades, e desse modo justificadas e até valorizadas moralmente como se isso fosse neutro ou até positivo (punitivo dos maus comportamentos individuais). Os autores podem avisar e reconhecer os estigmas, preconceitos e discriminações e revelarem-se, ao mesmo tempo, incapazes de evitar reproduzi-los nas suas análises. Fazê-lo significaria elucidar e denunciar as injustiças sociais gerais e particulares, próprios do ambiente e também dos mecanismos. Próprios do ar da época – como a discriminação social que passa a ser orgulhosamente explícita e, portanto, aumenta com a chegada do Trump a Washington – e das práticas sociais quotidianas que produzem e naturalizam as injustiças (incorporadas nas vítimas), como as distinções sociais reforçadas pelas práticas da assistência social e da repressão policial. Como a condução das pessoas a meios residenciais mais ou menos fechados, conforme o prestígio e valor dos bairros e residências (ao ponto de, em Portugal, haver grande excesso de habitações e grande número de sem abrigo). Para sair deste labirinto cartesiano que trata como radicalmente separados a) os mundos superiores, dos deuses ou dos senhores com capacidades de imposição normativa legítima (com as suas formas de sedução e de repressão capazes de impor as suas normas em nome da sociedade, contra os alegados violadores da lei tomados individualmente como provocadores, marginais, criminosos), b) os mundos sociais – onde vivem as pessoas normais, normalizadas, como os sociólogos – e c) os mundos mecânicos, instintivos, ciganos, africanos, pobres, sem educação, tolerados mas sujeitos a segurança do estado, há que inquirir as fronteiras empíricas que condicionam a vida de todos e cada um. Logo se verificará como tais fronteiras são diferentes conforme as pessoas, as classes, os lugares de residência, etc. Que culpa terá uma criança de nascer numa zona deprimida ou num ciclo baixo das crises económicas, como as centenas de milhares de emigrantes dos últimos anos, em contraste com os retornados dos tempos da revolução de Abril integrados na sociedade portuguesa? Porque será que a sociologia das crianças e da igualdade de oportunidades está tão pouco desenvolvida? Porque será que a sociedade portuguesa está tão indiferente à fome e à pobreza que afecta grande parte das suas crianças – e suas mães? Essa situação, porém, continuará a ter consequências a longíssimo prazo para a sociedade portuguesa, enquanto essas crianças forem vivas (ainda hoje 5% dos residentes em Portugal são analfabetos, quando noutros países europeus já deixaram de colocar a pergunta nos censos por ser desnecessária). E terá consequências para as crianças ainda por nascer enquanto não se tratar do assunto frontalmente. É moralmente difícil reconhecer como as crianças são (ab)usadas pelas sociedades, incluindo as modernas e incluindo pelo estado. Isso é evidente no caso das crianças usadas pelo negócio da vigilância contra a violência doméstica na Grã-Bretanha, recentemente denunciado pela TVI. Além dos abusadores tradicionais mais ou menos invisíveis, como aqueles denunciados pelas campanhas das últimas décadas por terem organizado institucionalmente abusos sexuais de crianças à sua guarda, o estado organizou, no quadro da intervenção social, as suas próprias formas de abuso. À sombra da mesma cobertura institucional e desinteresse sociológico que tornou e torna viáveis os abusos sexuais sem notícia ou conhecimento. A análise da instabilidade, concentrada em compreender os problemas de afirmação existencial das pessoas contra a precariedade da vida, que ocorre em todas as classes mas de formas diferentes, deverá encontrar formas de religar os três tipos de níveis de análise social às circunstâncias concretas e empiricamente observadas e verificadas que correspondam a experiência de cada objecto de estudo. Havendo para isso a possibilidade de identificar dinâmicas próprias de cada nível de realidade (por exemplo, racionalização de direitos a nível superior, institucionalização de punições a nível inferior, cadinhos de ideias revolucionárias a nível intermédio, como nas empresas ou nas universidades). Dinâmicas influentes e influenciadas por dinâmicas holistas que tomam as sociedades por épocas, como as modas.
Lição 7. Os prisioneiros, 17-11-2016 Sair da prisão teórica da sociologia Human, filme de Yann Artus-Bertrand (ver 3:51 e 1:15:00) Modernização das prisões - apresentação Rafael Sociologia da instabilidade coloca a estrutura social nos genes, em vez de vir de cima para baixo. O que permite espelhar a igualdade fundamental de cada humano, parte de uma espécie sem raças diferenciadas. Mas nem por isso uma espécie protegida por Deus, como há quem pense. Como todas as outras espécies de vida, a humana luta contra a extinção. Cada ser humano luta pela sobrevivência desde que é gerado, isto é, é uma máquina, digamos assim, de contrariar o princípio geral de entropia, a instabilidade espontânea das associações abandonadas ao acaso. É o programa genético que organiza a negentropia própria da vida. Essa será, portanto, a fonte onde se deverá procurar a razão da repetição de certos modos de associação que permitem o nascimento e crescimento de seres humanos. Não apenas no aspecto físico da existência humana mas também no aspecto mental e social. tendo em conta, naturalmente, que a existência humana é parte e continua a ser parte do processo evolutivo, nomeadamente através dos processos epigenéticos, isto é, a incorporação da experiência nos próprios genes, em parte apenas efectiva nos indivíduos, em parte transmitida para as gerações futuras. Trata-se de conceptualizar a sociedade humana como uma das muitas formas de associações existentes, como as que unem átomos, células, formigas, abelhas, etc. Claro, as sociedades humanas têm características próprias. Nomeadamente são criadas por pessoas que aprenderam a diferenciar socialmente os mundos práticos dos corpos, dos mundos virtuais das ideias. Porque as pessoas têm capacidades especiais, como a expressão e leitura faciais ou a linguagem ou a grande quantidade de células espelho que nos fazem imitar uns aos outros de forma inconsciente. Estas e outras capacidades fundam as nossas possibilidades necessidades de construir sociedades com uma profundidade de incorporação de papéis sociais que não conhecemos noutras espécies vivas. Capacidades que se transmitem de geração em geração, não apenas através dos genes mas também através de culturas inscritas em instituições. Outro mecanismo humano particular é a recursividade ADDIN Mendeley Bibliography CSL_BIBLIOGRAPHY (M.C. Corballis, 2011. The Recursive Mind – The Origins of Human Language, Thought, and Civilization, Princeton: Princeton University Press), isto é, a capacidade-necessidade de criar um relato histórico sobre a nossa vida individual e colectiva centrada na nossa identidade pessoal e num conjunto de expectativas que organizam o futuro em função do passado, sem o qual os processos de homeostasia, os processos biológicos e sociais de manutenção da vida individual, entram em crise. É como se cada um de nós fosse constituído, para além do corpo, por um jogo de espelhos atrás e à frente que se reflectem eternamente um ao outro. E tivéssemos de fazer sentido disso para nós mesmos, defendo as nossas fantasias em sociedade. Exigindo respeito sem perder a face e beneficiando de amor de outros seres humanos. Esta conceptualização foi feita a partir da investigação das prisões e da situação dos presos e dos guardas prisionais, precisamente a quem é negado o respeito e a dignidade que permitem manter a face (por terem sido presos ou condenados ou por estarem a cumprir um papel social equiparável ao de carrasco, embora modernizado e suavizado) limitando o amor que possam receber a mínimos que podem ajudar a explicar taxas de suicídio, práticas de auto-mutilação, greves de fome, que se praticam nas prisões em escalas desconhecidas no exterior. A prisão, a privação da liberdade, é uma violência radical porque isola a pessoa dos seus laços sociais de que é parte integrante. Não é apenas uma violência para o preso (e o guarda) mas também para a rede de sociabilidade de que fez e faz parte. Generalizando, é uma violência contra a sociedade. E, por isso, o risco de encarceramento não é generalizado mas, ao contrário, bem localizado. Como se costuma dizer, as prisões (e os seus protagonistas) vivem num mundo à parte. Quere-se com esta frase referir o facto de serem não os pobres ou as pessoas com menos qualificações (infelizmente em grandes quantidades no nosso país e na Europa) mas grupos de pessoas selecionadas entre os pobres (os ciganos, os descendentes de africanos ou outras etnias colonizadas, sobretudo os adultos que se formaram a partir de crianças abandonadas, isoladas, que já viviam em condições de privação de liberdade e de amor antes de serem condenadas). Grupos de pessoas que se tornam perversamente dependentes das prisões, como mostram os números de reincidência em qualquer sistema prisional (vulgarmente bem acima dos 50%) e, pelo menos no caso português, a quantidade de filhos de presos que acabam eles próprios presos (estima-se que metade dos presos sejam filhos de pessoas que já estiveram presas). O isolamento social, dentro e fora das prisões, é uma extrema violência, mesmo que não haja contacto físico entre pessoas. Por isso as sociedades modernas escolheram o regime penitenciário como pena condenatória para quem cometa crimes. E por isso desde o século XIX, quando a ideia começou a ser aplicada primeiro nos EUA, as reformas prisionais nunca deixaram de se auto-justificar como formas de humanizar aquilo que é desumano: o rasgar as relações sociais das pessoas. Ainda hoje as reformas prisionais continuam a justificar-se como formas de minimizar danos, sem conseguirem. Porque, evidentemente, a cultura penal actual reclama mesmo a construção institucional de dano nas pessoas presas. A teoria social não explica nem o dano provocado pelo isolamento social nem a razão pela qual são homens que vão presos (95%) e não as mulheres, em sociedades em que a discriminação em desfavor das mulheres é prevalecente. De que modo, pois, a prisão de homens acaba por ser discriminatório contra mulheres? A hipótese de resposta à luz da sociologia da instabilidade é evidente: a ruptura de laços sociais penaliza todas as pessoas envolvidas. A pessoa presa fica a cargo do estado. As outras pessoas ficam por conta própria, muitas mulheres e crianças, sem quem as ajude a obter rendimentos para sobreviver e sair da pobreza, de que efetivamente são uma parte importante.
Lição 6. A violência e as crianças da Rua 10-11-2016 As crianças de rua nos anos 80 foram identificadas com delinquentes e criminosos, ao menos potenciais. Apesar do autor denunciar os preconceitos que determinam os medos sociais suscitado pela existência de crianças a viver naquelas condições, não é claro que o resultado final se tenha libertado desse constrangimento cognitivo. Numa sociedade em rápida transição de um regime ditatorial para um regime democrático, em que as crianças eram separadas com 10 anos ou menos entre aquelas que iam trabalhar e as que seguiriam os estudos e passaram a ser objecto de direitios, muitos anteriormente medos emergiram. A proibição do trabalho infantil, o aumento correspondente da escolaridade obrigatória, as novas distinções de classes operadas na infância – por exemplo, o novo prestígio das escolas privadas, que deixaram de ser as escolas para onde iam os cábulas, cujas famílias tinham dinheiro para os empurrar a continuar os estudos, para serem as escolas mais prestigiadas para alunos protegidos pelo dinheiro dos pais da massa de crianças sem recursos – são traços estruturais que condicionam a vida e a percepção social do que são crianças. As crianças deixaram de ser indiferenciadas e de usarem a rua como recreio público. Passaram a ser controladas pelas respectivas famílias, de modo a não correrem os riscos que se passaram imaginar existir nas ruas. Crianças abandonas na rua deixaram de ser invisíveis e banais, como eram no país da Europa mais jovem, que foi Portugal naquela época, para serem os restos das famílias que não tomam conta das suas crianças. Famílias que não se deram conta da nova importância que a sociedade passou a dar às crianças. E aos direitos das crianças. A descrição da violência provocada pelas crianças – fortemente simbólica, temor e irresponsabilidade da sociedade fechada nas famílias “estruturadas” – na verdade incluiu violência doméstica e familiar, prostituição, má nutrição, abandono, abuso policial, abuso sexual. Isto é, toda uma panóplia de violência terrível contra pessoas indefesas, que criam laços entre si para alimentar a ténue e insegura identidade social de abandonados. Mas a imagem final continua a ser a necessidade de intervenção do Estado para proteger a sociedade dos perigos resultantes do crescimento destas crianças – a pobreza, a delinquência e o crime. Falta Estado capaz de acabar com as crianças de rua – é a mensagem geral do estudo. Faltam políticas públicas atentas a este fenómeno particular. Como faltará sempre estender as políticas públicas a mais domínios. Enquanto a ciência procura entender a verdade. Isto é, as raízes da existência de fenómenos como estes: o que eles nos dizem sobre a sociedade que somos. Sociedade portuguesa e sociedade humana. A discussão das estruturas sociais separadas das agências, da vontade e liberdade individuais, permitem compreender traços importantes do fenómeno em análise. Por exemplo, as crianças têm mobilidade limitada, por causa da falta de recursos para usar transportes mas também por razões afectivas e de protecção emocional e real que se faz entre pares. Isso torna as crianças, os grupos de crianças, mais temíveis (parece ridículo, não é), tanto para as populações que as temem, por elas existirem – desejando apenas que deixem de existir – como para as polícias, segurança social e estado, a quem se reclama actuação para acabar com aquilo. Por exemplo, internando as crianças. Sabendo bem o Estado o significado desse internamento, frequentemente, não ser compatível com a dignidade das crianças. Ser apenas uma forma de ocultar do público essas pessoas. A autonomia das crianças é limitada por razões de maturação, pobreza e identidade. As fantasias a respeito da sua pré-delinquência são prognósticos conformistas que ninguém parece disposto, nem a sociedade nem o estado, a enfrentar – serve de exemplo o caso de Inglaterra e a maneira como tratam o assunto das crianças, como veio a lume a propósito de uma reportagem televisiva com o objectivo declarado de resgatar crianças retiradas aos pais (portugueses) a viver naquele país. Não se trata de casos isolados nem problemas que ficam resolvidos. Trata-se de problemas de civilização e de problemas que são manipulados e escondidos. Uma das formas que tornam estes fenómenos invisíveis é o jogo teórico de separação e contraposição entre estruturas e agências, como se as sociedades não fossem as pessoas e as pessoas as sociedades. Como se a espécie humana não tivesse características próprias – nomeadamente infâncias muito longas e com profundos impactos para toda a vida adulta – e que estas não fossem usadas para efeitos de segurança ontológica das diferentes classes sociais que se opõem, nomeadamente no desarmar das proles de terceiros para facilitar a luta pela estabilidade social e pessoal da prole daqueles que já estão mais bem posicionados. A sociologia da instabilidade, das crianças de rua mas também do resto da sociedade, ajuda a compreender melhor porque a intervenção do estado nos anos oitenta não resolveu mas apenas arredou para novas circunstâncias, teoricamente mais controladas – o que o caso Casa Pia mostra ser controverso. Há que abrir o estudo do problema das crianças nas nossas sociedades e à sua igualdade de oportunidaes às ciências médicas, nomeadamente aos estudos neuro-biológicos e sociais, mas também ao direito – os direitos humanos das crianças – para que as ciências sociais possam abrir as suas perspectivas e escapar eficazmente dos preconceitos sociais dominantes. A favor dos mais favorecidos, claro.
Lição 5. Transgénero, 3-11-2016 A sociologia centrífuga, aquele que abre as portas a diálogos íntimos com a biologia e o direito, num quadro de cientificidade alargada a todos os níveis de realidade, desde a química orgânica até às emoções e doutrinas que orientam a vontade, pode permitir-se colocar perguntas como a seguinte: será que a estrutura básica das sociedades está nos genes? Não se trata de negar a importância da cultura. Ao contrário. Trata-se de colocar a hipótese de a cultura ser uma forma de condicionar os genes, através da sua influência na organização das experiências de vida e, portanto, na epigenética. A abertura da sociologia implica, evidentemente, a abertura da biologia e das disciplinas doutrinárias, como a teologia, a filosofia ou o direito. Sim, aquilo que pensamos com os outros, em sociedade, a inteligência colectiva ou os estigmas, influencia os genes, através da impressão que as experiências socialmente conduzidas têm nas pessoas, através de processos de incorporação e excorporação, processos de adesão a práticas e valores alheios e processos de actualização ontológica do ser que cada um procura ser para si próprio, como forma de reagir à instabilidade essencial da vida, a luta contra a negentropia. O genes ser a base da estrutura social significa que a espécie humana foi resultado da evolução da vida na Terra e que essa evolução esteve em condições de estabilizar seres extraordinariamente sociáveis. Sociáveis de maneiras mais intensas, profundas e mutuamente influentes na plasticidade com que cada individuo luta para se tornar ele próprio ao longo da vida. Espécie que formou civilizações e colonizou o planeta a ponto de interferir com a sua história climática. Tendo isto em mente, apresentou-se o trabalho de Sandra Saleiro, pioneiro no estudo do transgénero em Portugal. A própria autora apresentou o seu trabalho, começando por enfatizar a obscuridade radical do tema na sociedade portuguesa antes do caso do homicídio da Gisberta, no Porto de 2006, por parte de jovens movidos por ideologias transfóbicas. Ideologias assumidas por pessoas entre os 12 e 16 anos a viver em asilos conduzidos por católicos. Foi a revolta que o caso suscitou que lhe permitiu, ao frequentar vigílias, ter acesso a pessoas que a pudessem informar daquilo que nem as organizações LGBT faziam ideia do que fosse. Na verdade, durante o processo do caso, nos tribunais e na opinião pública, os activistas sentiram necessidade de promover auto-formação sobre o assunto. Dado terem verificado estar a expressar mensagens discriminatórias sem terem essa intenção. Surpreendeu a apresentação pela dificuldade da assistência em seguir a flexibilidade dos comportamentos e das necessidades humanas relativamente ao sexo e ao género (expressão social de conformidade ou não com os dois géneros reconhecidos, ser homem ou ser mulher). A violência com que o estado desclassifica e desprotege as pessoas que se identificam com géneros não oficiais. A invisibilidade dessas situações e problemas, ocultadas pela ignorância e pelo preconceito, nomeadamente a nível do sistema de saúde e do sistema de identificação civil. Que afecta igualmente as pessoas desejosas de usar preconceitos e amesquinhar terceiros (como os jovens torturadores e homicidas de Giberta) ou os pais que querem ajudar crianças que começam cedo (2, 3 anos) a exprimir o género de forma não conforme o padrão maniqueísta adoptado como invariante histórica nas sociedades tal como as conhecemos. Cabe aqui a pergunta: será que nós que não conhecemos nem vemos a diversidade de género na nossa sociedade, nos nossos dias, somos capazes de ver a diversidade de género de sociedades já desaparecidas? Ainda que os vestígios dessa diversidade estejam eventualmente presentes, na Grécia ou na Roma Antigas? Sendo o trabalho de Sandra Saleiro pioneiro para Portugal, em 2006, há trabalhos feitos a nível dos estudos clássicos? Caso admitamos abrir o espaço tempo de análise a toda a experiência humana, e não a limitemos ao estudo da modernidade, caberá então perguntar que consciência de género teriam os gregos, os romanos e outros povos clássicos, e outros antes deles e outros depois deles. Que sabemos disso? No meu caso, nada. Mas é preciso procurar. Para dirimir a questão: a espécie humana, por natureza, é misógina (isto é, impõe a hierarquização dos dois géneros oficiais e ignora como se fossem do género feminino todas as outras expressões de género não oficiais)? Estará isso inscrito nos genes? Ou será antes uma invariante histórica decorrente de práticas culturais? Se estiver inscrita nos genes, estará a misoginia ao alcance de um trabalho cultural de transformação através do uso da epigenética? Se a misoginia for cultural, o que será uma cultura não misógina? Já que existe a ideia de esta misógina com que lutam as sociedades modernas ser uma questão de poder, imbuída nas estratégias patriarcalistas, duas perguntas de impõem: a misoginia é estruturadora do poder social? Se sim, desde quando? Desde sempre ou a partir de certo estado de evolução das civilizações? Todas ou só algumas? Haverá civilizações não misóginas? Segunda pergunta: como é possível que um problema ao mesmo tempo tão central e tão fundamental esteja encoberto? Qual o papel das ciências sociais nesse encobrimento? Será que a sociologia centrífuga admitiria novas práticas científicas mais transparentes e capazes de contribuir para a luta contra a misoginia? Caso a estrutura social esteja (também) nos genes, isso pode significar que o sexo, a reprodução sexuada, é uma característica instável da espécie humana. Cada individuo e a própria sociedade trabalham arduamente para estabilizarem, por um lado, a identidade de cada ser humano e, por outro lado, as oportunidades de reprodução da espécie (preocupação actualmente nitidamente diferente, dado o excesso de população e também as possibilidade médicas de construir por medida a reprodução humana). As pessoas lutam pela própria sobrevivência. O que incluiu a construção artesanal, digamos assim, da sua própria identidade ontológica perante si e perante terceiros – é isso que nos provam as vidas dos transgéneros à evidência, como aquele professor que “não aguentou mais”, e em vez de ir para a escola tomou o caminho do isolamento social da família e dos amigos e da prostituição, por saber que essa seria a única forma socialmente aceitável de poder exprimir o seu género. Isso acontece com todos nós. Mas quem não se conforma com o género atribuído, quem não é cisgénero, sente essa luta com outra acuidade nesta sociedade misógina. A parte cultural da estrutura social, aquilo que foi identificado por Durkheim, de cima para baixo, como solidariedade etérea que coage as pessoas a comportarem-se de determinadas maneiras regulares, iguais entre si, incorpora-se nas pessoas através de treinos, sansões sociais e processos epigenéticos. Lição 4. Aplicações da sociologia da instabilidade, 27-10-2016 Foi definido, nas primeiras 3 aulas, o objectivo pedagógico do curso: testar o valor relativo das abordagens da sociologia da instabilidade e da clássica. A abordagem clássica procura fazer convergir as concepções estruturalistas (sociedade como forma de constrangimento e orientação da acção social) e accionalistas (sociedade como resultado pragmático das múltiplas decisões de cada individuo, somadas ou subtraídas, multiplicadas ou divididas). A abordagem da sociologia da instabilidade procura abrir os campos sociais tradicionais de investigação às influências externas que os cruzam, por vezes sem serem notadas, outras vezes como tempestades. Na sociologia da instabilidade, a estrutura é biológica, genética, resultado da evolução da vida na Terra. As sociedades são formas particulares de associação entre humanos, que devem ser comparadas com outras formas de associação, nos chimpanzés e nos bonobos, nas formigas e abelhas, nos órgãos e nas células, nas moléculas e nos átomos. A acção é orientada pelas necessidades de manutenção das sociedades, átomos, moléculas, células, órgãos, colmeias, colónias, grupos de primatas, personalidades individuais, posições sociais reconhecidas, associações de poder ou económicas. A sociedade de redes ou coerciva da sociologia clássica é resultado prático das estruturas evolutivas na acção individual e colectiva das pessoas no quadro geral da evolução do planeta. Cuja retroacção está actualmente a ser muito influente, por exemplo, a nível ambiental, decorrente do grande número de pessoas vivas, das indústrias, da extração de minerais e de florestas, das guerras, das injustiças sociais. O papel da sociologia da instabilidade é abrir a análise social focada num campo ou objecto específico a, por um lado, os saberes biológicos que possam informar-nos sobre o que é a estrutura social humana. Por outro lado, precisa também de se abrir aos saberes normativos para explicar como se chegou à actual situação – em geral, aquilo que se chama crise, um certo mal-estar que parece desnecessário e provocado por más intenções – e como se podem organizar novas orientações de acção social mais profícuas, oriundas de “cima” ou de “baixo”. O primeiro objecto tratado foi o caso de um abrigo de Estado para jovens em risco (na altura dizia-se "menores delinquentes"), nos anos 80 em Portugal, onde, além dos educadores profissionais, eram recrutados por seis meses renováveis jovens monitores (no quadro de políticas de redução do desemprego). Os educadores eram oriundos do campo, sem formação, com dificuldades em compreender quem eram as muitas dezenas de jovens fechados na instituição, eventualmente por terem sido abandonados e/ou mal tratados pelos cuidadores directos e pela sociedade. Tinham medo dos jovens. Relacionavam-se com eles de uma forma tensa. Chegaram a usar chibatas para aplicar castigos corporais antes de enviar para a solitária quem entenderam ter-se portado mal. Imaginavam riscos e ameaças onde não as havia. Não havia qualquer perspectiva de organizar a vida dos jovens em liberdade. Ao fim de seis meses de presença do estudante que relatou esta sua experiência, o ministério da Justiça não renovou os contratos, excepto o de um monitor que ia armado com uma pistola para o seu trabalho. Este relato trouxe à baila o caso Casa Pia e o silêncio antigo e actual sobre o abuso sexual de crianças, as razões explicativas para o surgimento do escândalo naquela altura (exploração dos media, situação política, antigas negligencias do Estado perante as denúncias ao governo e aos tribunais, etc.). E trouxe à colação a função social do Estado e dos profissionais alheados e em contradição com os interesses de ressocialização das crianças e dos jovens em risco. Centrados nos seus próprios problemas pessoais de integração social e temerosos do contacto, da contaminação, dos perigos representados pelas pessoas abandonadas pela sociedade com que têm de contactar, por via da sua função dita social. A análise por via clássica divide-se em duas grandes vertentes: análise macro (em que as crianças e jovens são tratadas como minorias por serem pouco influentes nas lutas pelo poder) e as análises micro (em que as crianças e jovens são responsáveis, quiçá as únicas, pela situação de exclusão em que se encontram e de que a sociedade apenas tem que se defender. Admitindo a possibilidade de reintegração assim as crianças e jovens (ou os adultos que os continuam) se manifestem capazes de viver autonomamente em sociedade, como as outras pessoas). A sociologia da instabilidade propõe outra abordagem: as crianças e jovens desestabilizadas até aos seus genes (epigenética) pela experiência de vida adquirem modos de se manter vivos (porque há os que morrem no processo) que podem passar pela doença da institucionalização (só se sentem seguros dentro de uma instituição como aquelas a que fizemos referência anteriormente, como as prisões para os adultos) ou por complexos de inferioridade vividos de diversas formas. Em todo o caso escondendo, reformulando, embelezando, o seu percurso de vida de si próprios e dos outros. Como acontece com as vítimas de abusos sexuais, de reprovações escolares, de desqualificações profissionais, torturas, tornando praticamente invisíveis às sociedades as sevícias, mesmo quando estão banalizadas. Inventando personalidades para si próprios que poderiam ter sido formadas se tivessem tido outra experiência de formação existencial e que possam imitar. Reprimindo o seu “verdadeiro” eu, negando as suas origens sociais e as suas experiências pessoais formadoras. Evitando o estigma social produzido socialmente para todos os relatos de “má vida” e a exclusão social associada. Há um efeito de exclusão de si mesmo da pessoa que consegue integrar-se. Com a dissonância existencial respectiva. Muitos não conseguem evitar viverem submetidos às dissonâncias, incapazes de imporem alguma disciplina a si próprios. Incapazes de oferecerem fiabilidade comportamental a quem com eles confraterniza ou colabora. Entre a doença da institucionalização e a dissociação de si de si mesmo, há toda uma variedade de arranjos existenciais que favorecem mais ou menos os segredos de cada um e que são trabalhados politicamente em sociedade segundo orientações políticas e modos de vida diversos. Revelar esses segredos, como mostrou o caso Casa Pia, pode ser um assunto emocionalmente muito intenso e perturbador. Para as sociedades e para os investigadores. Quem pode ser legitimamente responsabilizado pelas experiências traumáticas que viveu? Sobretudo na infância? Ou quando é vítima de torturas? Eis outra diferença substancial entre a sociologia clássica e a sociologia da instabilidade. A revelação se segredos sociais na sociologia clássica é um acaso, que pode ocorrer. Mas em que não se insiste – Pierre Bourdieu não insistiu na sua descoberta da função reprodutora das instituições (escola) e Giddens ainda insistiu menos na sua descoberta do papel central da violência na organização das sociedades do capitalismo avançado. A sociologia da instabilidade, como a psicanálise, deve precisamente explorar os segredos sociais com vista a aquisição de material consciente susceptível de recompor os equilíbrios pessoais, institucionais e sociais em função das vantagens existenciais de evitar a dissociação inconsciente (socialmente cercada e reforçada) das pessoas. A vivência dessa dissociação torna-as temerosas de participar activamente nos trabalhos de orientação das suas vidas e da vida social em geral. Do estudo dos marginais, como estamos a ver, não decorre, para a sociologia da instabilidade, a caracterização mecânica das suas diferenças em relação à população normal. Não há lugar ao reforço científico dos estigmas e da justificação da legitimidade das exclusões sociais. Ao contrário. Ao tratar dos marginais como seres humanos, estruturados como todos os outros pela evolução da vida na Terra, podemos ver no estudo dos marginais os segredos que não queremos nem podemos ver em cada um de nós, professores, alunos, sociólogos, pessoas que podem – por enquanto – pagar as suas despesas e arranjar tempo para estudar. Lição 3. O que pode ser a sociedade?, 20-10-2016 A sociedade é uma estrutura (tipo nuvem mais ou menos coerciva, tipo Estado ou instituições)? Ou sociedade é a acção que os seres humanos fazem (tipo elásticos virtuais que ligam as pessoas)? Toda a acção humana é social? Toda a estrutura (por exemplo, um edifício) é social? O macro é mais social que o micro? O macro pode ser mais distintamente social e o micro pode ser mais multidisciplinar? Os quantitativos são mais objectivos e os dados qualitativos mais subjectivos? Ou vice-versa? A sociedade resulta da evolução ou é o principal instrumento de evolução? Existem pessoas fora das sociedades? Porque os primatas têm relações mais densas que a maioria das outras espécies? Há alguma base genética para a moral? As pessoas são feitas de carne e osso, pelos genes, e, depois, por experiências de incorporação e excorporação ao longo da vida. Outras pessoas observam e mimam ou interpretam as incorporações e a excorporações alheias (por exemplo, através do treino). Estabelecem-se relações sociais entre o mundo virtual (os papéis) e o mundo físico (os corpos instáveis mas resilientes das pessoas). As pessoas separam dois mundos: o mundo dos cuidados de si e o mundo do virtual. Cuja conjugação complexifica a vida de todos e cada um, tornam-nos (os únicos?) seres recursivos, no tempo e no espaço. Os diferentes níveis de realidade são empíricos e não cartesianos (arbitrários, teóricos, dados por Deus). Dependem do ritmo e dimensão dos mecanismos biológicos e metabólicos de funcionamento produzidos por efeito da evolução da vida. É, pois, natural que a sociedade seja uma referência verbal a um nível de realidade que existe acima dos níveis de consciência e abaixo dos níveis de espiritualidade. Níveis que podem ser identificados objectivamente através da detecção dos seus impactos biológicos e fisiológicos durante a incorporação e a excorporação. Ver conceito de estado de espírito. Lição 2. Sociologia centrífuga, 13-10-2016 O que acrescenta ao saber sociológico a noção de sociedade com base na ideia de Durkheim, em vez da de Weber? O método analítico de Max Weber – tipo ideal + referências cartesianas a 3 níveis de realidade abstractos e 4 dimensões da realidade – deixa de fora muita coisa – os objectos de praticamente todas as sociologias especializadas e o estudo dos períodos de transição entre “normalidades”. Isto é, a sociologia weberiana é uma sociologia forense preparada para descobrir e enfatizar as práticas diferentes (sociologias especializadas) sem as relacionar com a sociedade produzida em abstracto. A sociologia da instabilidade faz da sociedade mais um instrumento produzido pela evolução para lutar contra a entropia geral. A sociedade é a capacidade de reunir matéria e energia para contrariar a dispersão de matéria e energia. Para produzir corpos maiores e mais poderosos sem finalidade que não seja a de conservar aquilo que funciona em ambientes determinados. As sociedades humanas são formas particulares de sociedades que se podem observar no mundo da física, da química, das plantas, dos animais. Terão, pois, características semelhantes a todas as outras sociedades – que podem ser investigadas sistematicamente – e características específicas, próprias da espécie humana. Espécie que foi constituída há centenas de milhares de anos, como evolução de outros primatas, e que se estabilizou no homo sapiens sapiens durante um certo período de tempo, que ainda não acabou. Mas, como qualquer outra espécie, estamos em risco de extinção e somos, com certeza, uma praga para o ambiente da Terra. As sociedades estabilizam a espécie mas, ao mesmo tempo, evoluem também. Nas últimas décadas a evolução social tem sido vertiginosa. A instabilidade aumentou muito. Por que razão a sociologia, ciência nascida dessa instabilidade, não a enfatiza e prefere enfatizar a estabilidade mais característica de sociedades tradicionais? Prefere ser uma contribuição para o efeito estabilizador, negantrópico, da sociedade, tornando-se, desse modo, uma ideologia de apologia da estabilidade moderna, focada num tempo curto da existência humana e alheada dos problemas modernos – entre os quais os morais e os ambientais e os de organização e os de guerra. A sociologia da instabilidade procura abrir-se ao conhecimento, como prioridade. Alargando o espaço de investigação à luta mais geral da vida contra a entropia, no quadro da evolução geral da matéria, da energia e das espécies e, portanto, tomando a espécie humana como um exemplo singular de estudo dos efeitos do universo, digamos assim. Trata-se de substituir a sociologia centrípeta por uma sociologia centrifuga. Aquilo que é extraordinário para a sociologia centrípeta, e merece pouco atenção ou, em vez disso, uma atenção especializada isolada das teorias dominantes, para a sociologia centrífuga será o alimento dos debates científicos sobre as potencialidades e as limitações das teorias sociais existentes. Como é a melhor prática nas ciências. Na prática, aquilo que é extraordinário, como um comportamento desviante, deve passar a ser motivo de explicação da melhor teoria social em vez de remetido para a criminologia, para não incomodar as pessoas normais com os crimes cometidos quotidianamente nos seus empregos, nas suas casas, na sua frente, com o seu assentimento ou mesmo colaboração. Lição 1. Da sociedade humana; 6-10-2016 Marx, Durkheim e Max Weber simbolizam a diversidade de entendimentos que dividem os sociólogos sobre o que seja a sociedade. Será algo em transformação numa sociedade sem classes? Um facto etéreo que aparece e se soma quando algumas ou muitas pessoas se juntam? As redes de relações interpessoais? A sociologia dominante tem favorecido a convergência entre as tradições marxistas e weberianas em torno da discussão de indicadores estatísticos disponíveis sobre as dimensões sociais tradicionais, a saber, a economia, a política, a cultura e o estatuto social. A discussão conceptual do que é, afinal, a sociedade não é feita. A influência da teoria dos sistemas, da estanquicidade (ao menos relativa) das dimensões sociais leva a que da sociedade sejam expurgadas dimensões como a psicológica, a económica, a tecnológica, a política. Podendo parecer que a sociedade é, ao mesmo tempo, aquilo que sobra depois de tirar todas as outras camadas de realidade e aquilo que suporta e cola todas as outras dimensões da existência. A sociedade é aquilo que há de mais perene e estável na vida. Isso é verdade, do ponto de vista de não ser possível encontrar uma pessoa que tenha sobrevivido fora da sociedade. A sociedade, portanto, está lá sempre, quando há uma pessoa. Porém, ao contrário da ideia de resistência à mudança tantas vezes associada à sociedade, a instabilidade seria uma melhor maneira de representar a sua natureza. A sociedade é uma das formas, como a consciência, de lidar com a instabilidade existencial própria da condição humana. A mortalidade de cada ser humano, o risco de extinção da família, do grupo, da tribo, da nação, da espécie, seja por causas bélicas ou ambientais, representam riscos que sempre existiram e que hoje existem de outras formas. A instabilidade das condições de saúde e das possibilidades de sobrevivência pessoal, como as limitadas pelo desemprego, por exemplo, acrescem de maneira mais imediata à instabilidade geral. A sociedade é um nível de realidade que oferece simbolicamente e de facto algumas garantias acrescidas de segurança na luta contra a instabilidade. Tanto mais quanto as pessoas estejam em condições e se ponham em posição de usufruir desses benefícios. Conforme as experiências de incorporação que viveram e lhes permitam ter confiança em si e na sociedade e conforme as respostas sociais às formas particulares de excorporação que cada pessoa desenvolve socialmente. A sociedade, portanto, é um nível de realidade da existência da vida – no caso do objecto de estudo da sociologia, da vida humana – capaz de coordenar as actividades conjuntas de muitas pessoas de forma sinergética ou entrópica e, igualmente, capaz de ajustar e corrigir a acção social. |
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